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Um escritor dividido e muitas traduções
22/03/2013 18:00
Hugo Pernet/Fotos: João Caldas Filho e Flavia Espíndola

A falta de relatos faz do dramaturgo um homem misterioso

A vida particular de Shakespeare é um romance jamais lido, um soneto sem estrofe ou uma peça encenada com os holofotes apagados. Qualquer biógrafo pode mencionar desta forma, sem o receio de receber críticas negativas, o período entre os dias 23 de abril de 1564 e de 1616, data de nascimento e de morte do escritor. Existem poucos registros sobre a vida privada do inglês Willian Shakespeare. Porém, 154 sonetos, 39 peças e dois longos poemas narrativos formam o extenso acervo literário do autor, que atravessa gerações e continentes sem perder a aclamação do público e o diálogo dos críticos.

Filho de um artesão, Shakespeare teve a autoria de seus textos atribuída a pessoas da alta sociedade inglesa, que alimentava o preconceito de o maior escritor do país não ter nascido em berço aristocrático. Na época, a assinatura das obras chegou até o nome da Rainha Elizabeth. Porém, isso não passa de uma especulação referente ao período elizabetano, explica Leonardo Bérenger, doutorando na área de Estudos Shakespearianos e professor da disciplina Introdução às literaturas de Língua Inglesa: Shakespeare, promovida pelo Departamento de Letras para todos os alunos, professores e funcionários da Universidade.

– É importante cada um ter o seu próprio Shakespeare, já que é uma vida tão desconhecida – diz Bérenger.

O diretor de teatro Ron Daniels diz que há infinitas formas de produzir uma encenação shakespeariana. Diretor de seis peças Hamlets, diz, ainda, que tem como objetivo oferecer o mesmo espetáculo visto de outras formas.

– Não há mística para produzir e traduzir Shakespeare – diz Ron , também tradutor da peça Hamlet, em cartaz no Espaço Tom Jobim, às sextas, sábados e domingos. – A peça é falada na forma natural do inglês, então, vou traduzir para a forma natural de falar português.

A maleabilidade da língua inglesa permitiu a Shakespeare criar neologismos, em uma língua, na época, ainda não normatizada, o que hoje dificulta a tradução dos versos ingleses para o português, ressalta Bérenger. Ele diz ainda que o autor das frases – além do famoso “ser ou não ser” – “isso é grego para mim” e “o amor é cego” teve a musicalidade, aliança da poesia de Shakespeare, facilitada pela fonética da língua inglesa. Ron, porém, destaca que no inglês a frase termina sempre com uma consoante, assim, atribui ação ao discurso, e, no português, a última letra é uma vogal, o que cria uma atmosfera “esparramada”.

Para Bérenger, as obras de Shakespeare não precisam ser simplificadas, o que deve haver é adaptação, sem mexer ou alterar a linguagem do autor. Ron tem a sua versão:

– É impossivel traduzir a expressão the quick of the ounce. Quando uma mulher engravida tem um quick, que é uma rapidez que vem da vida. Então, a vida de uma onça não significa nada em português. A solução é cortar. Se eu não entendo, ninguém vai entender.

Segundo o ator Thiago Lacerda, intérprete do príncipe Hamlet na montagem de Ron Daniels, Shakespeare criou em suas obras personagens memoráveis, o que lhe traz entusiasmo ao ato de encenar.

– Todo ator almeja um grande personagem, o que acontece com Shakespeare é que são muitos grandes personagens e as possibilidades de investigação para se contar a história dele.

Da mesma forma que muitos atores encenaram personagens criados por Shakespeare, há muitas maneiras de interpretar a vida privada do autor, perdida entre diálogos em uma sociedade em que o preço do papel era caríssimo.

Segundo o professor, a suposta homossexualidade de Shakespeare se explica por dois caminhos. O primeiro tem como palco a cultura da época: todo artista, para não ser enquadrado na lei de vagabundagem, tinha de ter um elo com um lorde, que, em troca, tinha o nome escrito nas dedicatórias das obras do autor, o que lhe dava prestígio dentro da corte.

– Lorde Southhampton, homem afeminado, foi quem concedeu a Shakespeare o libré, elo que extinguia o título do artista de masterless men, homem sem mestre – explica Bérenger.

O segundo caminho que leva a incertezas sobre a escolha sexual do escritor foi o casamento precoce com Anne Hathaway, homônima da atriz norte americana. Quando se casaram, ele tinha 18 anos, enquanto Hathaway, grávida de gêmeos, completava 26.

– Anne Hathaway era analfabeta, eles não deviam ter grandes assuntos. Mas nunca se soube como foi esse convívio – relata Bérenger.

Porém, no testamento de morte, Shakespeare deixou para a mulher a segunda melhor cama, o que aumenta o foco de luz sobre a hipótese de um relacionamento homossexual com o Lorde Southhampton.

A causa da morte do autor também não está escrita com clareza no script da vida privada do dramaturgo. Bérenger explica que há uma versão em que Shakespeare, após voltar de uma bebedeira com os amigos do teatro, teve febre e morreu, no mesmo dia de seu nascimento: 23 de abril, data de comemoração do padroeiro da Inglaterra, São Jorge. Berenger lembra que em uma sociedade em que as condições sanitárias eram péssimas, a inexistência de antibiótico era fatal a qualquer moléstia.

– Tudo em Shakespeare vira mito. Na Londres, a higiene era precária e não havia saneamento, então, as pessoas despejavam seu pinico pela janela. Por isso, as pessoas andavam com capa para não levar urina e fezes nas costas.

Mesmo com diversos figurinos para interpretar o espetáculo da vida privada de Shakespeare, não é possível analisar a peça que melhor se encaixa na fisionomia do maior dramaturgo inglês. É um ato de mistério, também, decifrar a imagem do rosto de Shakespeare, perdida entre os milhares de papéis do cenário elizabetano.

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