“Em um buraco no chão vivia um hobbit”. Há 82 anos, enquanto analisava documentos de alunos que queriam ingressar na Universidade de Oxford, em Oxford, na Inglaterra, o professor John Ronald Reuel Tolkien, ao encarar uma página em branco, escreveu sem saber o porquê as palavras inaugurais de um marco na fantasia moderna. Publicado quase dez anos mais tarde, em setembro de 1937, “O Hobbit”, hoje considerado clássico da literatura universal, antecedeu a aclamada trilogia “O Senhor dos Anéis”, que vendeu mais de 160 milhões de cópias ao longo de quase 60 anos de existência e foi considerado uma das obras mais importantes do século. No dia 2 de setembro de 1973, 40 anos atrás, Tolkien morreu aos 81 anos vítima de uma úlcera.
Natural da cidade de Bloemfontein, na África do Sul, Tolkien nasceu no dia 3 de janeiro de 1892. Aos 3 anos, ele, a mãe o meio-irmão foram para a Inglaterra, terra natal de seus pais e onde foi naturalizado britânico. De tradição católica, ele cresceu lendo e ouvindo contos de fadas em grego e latim. Lutou na Primeira Guerra Mundial e retornou para casa em 1919, aos 27 anos, quando começou a escrever os conceitos, histórias e personagens do que se tornou, mais tarde, “O Silmarillion”. Este livro, publicado postumamente por seu filho, é considerado o antecessor de “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” e foi a obra mais apaixonada do autor, embora não tão conhecida pelo público.
Tolkien ficou conhecido como o pai da literatura fantástica moderna. Muitos autores contemporâneos de fantasia, tal qual J. K. Rowling, autora de Harry Potter, George Lucas, criador da série Star Wars, e George R. R. Martin, que escreveu As Crônicas de Gelo e Fogo, inspiraram-se no universo tolkieniano para desenvolver suas obras. De acordo com Leonardo Berenger, professor do Departamento de Letras da PUC-Rio, a literatura fantástica não tem compromisso com a verossimilhança, e é esse o traço mais marcante que a distingue dos demais gêneros literários.
– Às vezes teremos aspectos sobrenaturais, ilógicos e irracionais. O fantástico rompe com a verossimilhança, que é essa característica que aproxima a ficção da realidade, que mantém a ficção atrelada ao real. O fantástico não se preocupa em parecer real – explicou.
Em “O Hobbit” – “hobbit” é um termo criado pelo próprio Tolkien para designar à raça do protagonista, cujas características mais proeminentes seriam a baixa estatura e a vida em tocas -, Bilbo Bolseiro empreende uma jornada, ao lado do mago Gandalf e de 13 anões, para resgatar o tesouro guardado pelo dragão Smaug. Durante a aventura, as peripécias de Bilbo levam-no a encontrar o anel do poder que vai ser o objeto-tema da sequência de “O Hobbit”. Dividida em três títulos separados, a história de “O Senhor dos Anéis” é protagonizada pelo sobrinho de Bilbo, Frodo Bolseiro, cuja missão é destruir o anel do poder antes que ele caia em mãos erradas.
A Terra-Média é o palco dos principais eventos dos livros de Tolkien. O universo criado pelo autor, onde homens e criaturas fantásticas residem ora em harmonia ora em conflito, é dividido em eras; “O Hobbit” e “O Senhor dos Anéis” tratam do final da terceira era, e “O Silmarillion”, da primeira era. O domínio sobre idiomas clássicos e modernos permitiu a Tolkien criar línguas que seriam faladas pelos elfos, uma das raças que habitavam a Terra Média. Segundo Leonardo Berenger, os livros de Tolkien tendem a ser vistos cada vez mais como clássicos. As razões são inúmeras, como o caráter atemporal, o distanciamento histórico e a polifonia.
– No livro “O Senhor dos Anéis”, por exemplo, Tolkien paga um tributo muito grande à herança literária. É uma obra polifônica, cheia de outras vozes. Ele faz referências ao Beowulf, o primeiro poema épico da língua inglesa, à literatura medieval. O livro “O Senhor dos Anéis” está repleto de possíveis diálogos com outras obras clássicas anteriores a ele. É um clássico que se construiu a partir do diálogo com outros clássicos, nessa roupagem fantástica – observou.
A trilogia de livros de “O Senhor dos Anéis” ganhou uma adaptação cinematográfica dirigida e produzida pelo diretor neozelandês Peter Jackson. Sucesso de crítica e bilheteria, os filmes “O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel”, de 2001, “O Senhor dos Anéis: As duas torres”, de 2002 e “O Senhor dos Anéis: O retorno do rei”, de 2003, ganharam juntos 17 oscars e arrecadaram quase 3 bilhões em bilheteria pelo mundo todo. Em dezembro do ano passado, Peter Jackson lançou o primeiro filme da trilogia que está sendo desenvolvida a partir do livro “O Hobbit”. Denominado “O Hobbit: uma jornada inesperada”, o longa-metragem não conseguiu repetir o sucesso dos demais filmes baseados na obra de Tolkien. Em dezembro deste ano, chega aos cinemas do mundo todo o segundo filme da sequência, intitulado de “O Hobbit: A Desolação de Smaug”.
Cada fã se relaciona com a obra de Tolkien e, por conseguinte, com os longas de Peter Jackson, de uma maneira diferente. Não existe consenso quanto ao melhor livro ou o melhor filme, nem sequer sobre qual o maior mérito que os dois autores legaram aos fãs. Lucas Izumi, de 23 anos, é aluno do sétimo período de sistemas de informação na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), em Diamantina, Minas Gerais. Izumi conheceu Tolkien através da internet e, para ele, o maior mérito da obra tolkeniana não se trata de um livro em particular, mas de todo o universo criado.
– O maior mérito não é um livro em especial, mas todo o universo que o autor criou. Ele é muito criticado pelo excesso de detalhes nas suas descrições, mas isso te faz perceber o quão apaixonado ele era pela Terra Média. A linguagem, escrita e mapas também criados por ele reforçam essa ideia – contou.
De Tolkien, Izumi já leu a Trilogia do Anel, “O Hobbit” e “O Silmarillion”, sendo “O Hobbit” o seu preferido. Já Bruno Borba, de 26 anos, aluno do terceiro período de Comunicação Social da Universidade, leu as três principais obras de Tolkien e “Contos Inacabados” (uma série de histórias sobre a Terra-Média compiladas pelo filho do escritor, Christopher Tolkien), tudo em menos de um ano. Atualmente ele está lendo “Os Filhos de Húrin”, o livro mais recente publicado por Christopher, em 2007. Mas Borba vai além: a paixão pelo universo de Tolkien é tamanha que ele chegou a tatuar nas costas os Portões de Mórdor, um dos locais por onde Frodo passa na missão de destruir o anel. Ele também decorou uma música em adunaico, um dos idiomas criados por Tolkien em “O Senhor dos Anéis”.
Lucas Raiol, de 21 anos, é estudante de Cinema, do quinto período, aqui na Universidade. Foi a avó quem o apresentou os livros de Tolkien, começando pelo “O Hobbit”. Ele tenta não comparar os livros com os filmes, embora tenha gostado de ambos.
– Tento não ficar comparando livros e filmes, porque são obras diferentes. Ter que adaptar um livro de 500 páginas para três horas de filme é muito difícil. São linguagens diferentes. Como filme, “O Senhor dos Anéis” funciona muito bem. A escolha do elenco é muito boa, a trilha sonora do Howard Shore é maravilhosa – disse.
Tão grande quanto a Terra-Média, a legião de fãs de Tolkien está espalhada por todos os lugares. Na internet, o site Tolkien Brasil reúne notícias, artigos, resenhas, vídeos e qualquer tipo de material relacionado ao professor. Surgido de um grupo de Facebook que tentava unir os fãs do autor espalhados por Minas Gerais, o site ganhou proporções e opera com um grupo dividido entre os principais estados do Brasil. Eduardo Stark, advogado e administrador do Tolkien Brasil, elege a amplitude detalhista e realista do universo tolkeniano como o motivo pelo qual Tolkien se tornou um marco na fantasia moderna.
– O fato de ter criado um mundo com tantos detalhes e realismo mudou a percepção e conceitos sobre o que seria fantasia e contos de fadas. Em linhas gerais, pode-se dizer que Tolkien foi um marco da fantasia moderna, pois suas obras são base para praticamente todas as obras posteriores que possuem aspectos de fantasia - explicou.
Edição 274