A convite de Vinicius de Moraes, um grupo de artistas negros subiu pela primeira vez ao palco do Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, para encenar a peça Orfeu da Conceição, sucesso de público, em 1956. Decorridas cinco décadas da exibição do espetáculo que abriu as cortinas para a parceria entre Vinicius e Tom Jobim, a inovação do poeta na literatura e na música brasileira é evidente: Ele escreveu mais de 400 poemas, reunidos em 12 livros e várias antologias pessoais; e revolucionou a canção popular, com a Bossa Nova e os afro-sambas.
Entre a diplomacia e os versos de poeta apaixonado, Vinicius aprendeu a amar. Na vida do poeta, os relacionamentos amorosos foram fundamentais para ele declarar que “poesia sem paixão pode ser tudo – menos poesia” e escrever versos eternizados: “Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”. Há cem anos, em 19 de outubro, nasceu o poetinha do amor.
Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes nasceu na Rua Lopes Quintas, antigo número 114, então Gávea e hoje Jardim Botânico, próximo à chácara do avô materno, onde habitou a lenda que aprendeu a cantar antes de falar. Entre o som do piano da mãe, e o do violão do pai, o poetinha foi criado em um ambiente sem luxo. O pai, Clodoaldo Pereira da Silva, era poeta, e a mãe, Lídia Cruz de Moraes, pianista. Durante a infância e a juventude, residiu nos bairros Jardim Botânico, Ilha do Governador e Botafogo. Aos nove anos, acompanhado pela irmã mais velha, Lygia, o menino foi ao cartório na Rua São José, no Centro do Rio, e alterou o nome para Vinicius de Moraes.
Dos quatro filhos, Vinícius foi o que recebeu educação diferenciada. Em 1924, ingressou no colégio de padres jesuítas Santo Inácio – na Rua São Clemente, em Botafogo –, onde integrou o coral dos estudantes. Ali, compôs as primeiras canções, com os irmãos Haroldo e Paulo Tapajós. Em 1928, escreveu a primeira música, Loura ou morena, gravada em 1932. Naquela época, namorou muitas amigas da irmã Laetita. O jornalista Paulo Cesar de Araújo, do Departamento de Comunicação Social, professor de música popular brasileira, afirma que a canção de Vinicius, nessa primeira fase, era mais tradicional.
- O Vinícius de Garota de Ipanema é um Vinicius Bossa Nova – ressalta Araújo, acrescentando que as composições do poeta, no fim da década de 50, foram influenciadas pelos arranjos do violão do cantor João Gilberto:
– Depois que ele ouviu o ritmo e a batida de João Gilberto, percebeu que aquilo pedia uma poesia mais leve. O Vinicius de “olha que coisa mais linda” ou “ela é carioca” é adaptado a esse novo ritmo.
Vinicius definiu como casamento a relação de trabalho e amizade com os principais parceiros, Carlos Lyra, Tom Jobim, Edu Lobo, Toquinho, Chico Buarque, Francis Hime, João Gilberto e Baden Powell. Com o último, inaugurou outra metamorfose como letrista: As canções dos afro-sambas popularizaram as paixões dos Orixás. Nessas músicas, o violão sonoriza o batuque de um instrumento típico da capoeira, o berimbau. Em 1970, a sétima mulher do poetinha, a atriz baiana Gesse Gessy, apresentou-lhe o candomblé. Na Bahia, em visita ao terreiro, Mãe Menininha de Gantois se tornou guia espiritual do poeta. Com os ensinamentos da ialorixá, Vinicius perdeu o medo de viajar de avião.
Em 1943, o ingresso no Itamaraty lhe permitiu conhecer o mundo – foi diplomata nos Estados Unidos, França e Uruguai. À revelia de ir à Rússia, o primeiro posto diplomático foi em Los Angeles, onde permaneceu, entre 1946 e 1950, sem voltar ao Brasil. Lá, Vinicius pôde estudar cinema com Orson Welles e Gregg Toland. O jornalista José Castello, escritor da biografia Vinicius de Moraes: o poeta da paixão, explica que, naquela época, o cargo diplomático era favorável para a dedicação a uma carreira literária. Castello recorda que a profissão oferecia baixa jornada de trabalho – em média quatro horas -, excelente salário e experiência de vida, a partir de viagens e contato com outras culturas.
– João Cabral de Melo Neto me disse: “Ele escolheu a carreira diplomática sem nenhum amor pela diplomacia”. Escolheu porque achou que era a melhor carreira para um poeta. Vinicius odiava levar uma vida burocrática, andar de terno, fazer tudo certinho. Cumpriu suas tarefas, mas não tinha nenhum interesse em crescer na carreira – analisa Castello, que lembra a exoneração do poeta do Ministério das Relações Exteriores, em 1969, época de recrudescimento do regime militar, com o AI 5.
O Estado brasileiro não admitia um representante da ditadura se envolver com música popular e com bebedeira noite afora. No período em que integrou o Itamaraty, Vinicius foi obrigado a cantar de terno e gravata e proibido de receber dinheiro em shows.
Sobre a escolha de Vinicius de viver nove casamentos e atravessar a vida em viagens, a esmo do amor pela poesia e da arte de viver, o poeta Carlos Drummond de Andrade argumentou: “Foi o único de nós que teve vida de poeta”. Na rica geração de poetas do século XX, formada por Drummond, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Murilo Mendes e Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes foi quem teve mais versos traduzidos no mundo.
Com popularidade, Vinicius recebeu alcunha de poetinha, apelido tanto carinhoso para uns – ele também costumava chamar os amigos pelo diminutivo – quanto pejorativo para outros. Castello observa que, na época das vanguardas, havia o preconceito à pluralidade. Vinicius escreveu poesia metafísica e sobre o cotidiano, e compôs afro-sambas, letras para bossa-nova e canções infantis. O jornalista atribui, ainda, mau julgamento dos intelectuais.
- São defensores da ideia de que Vinicius estava vendendo a alma à música, para ganhar dinheiro e mulheres.
O professor Miguel Jost, do Departamento de pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento, concorda com o argumento de Castello, no qual o apelido poetinha designa, para alguns, um poeta menor, sem intelectualidade – que rimava beijinho com peixinho -, preocupado apenas com assuntos mundanos.
– Esse julgamento de muitos intelectuais da época era pelo fato de ele ser um compositor popular. Nos anos 70 e 80, Vinicius acaba não ocupando lugar de cânone na literatura brasileira. Ao longo de anos, ele não é colocado no mesmo patamar de João Cabral, Manuel Bandeira e Drummond.
Uma vida escrita entre encontros e desencontros
Durante uma reunião social na casa do diplomata Afrânio de Mello Franco, Vinicius, então com 23 anos, conheceu o poeta Manuel Bandeira. Apelidado de paizinho, Bandeira frequentava a Lapa com Vinícius. Mas quem encaminhou o poeta à primeira paixão foi o pintor Cândido Portinari. O artista apresentou Vinicius a Beatriz Azevedo de Mello, a Tati, que se entregou ao encanto do poeta com quem teve dois filhos, Pedro e Suzana. Na ocasião do encontro, o poeta acabara de publicar o quarto livro, Novos Poemas.
Com Tati, ele viveu o casamento mais longo, entre 1939 e 1946. Preenchido por divagações metafísicas, o poeta enveredou, durante o primeiro casamento, por temáticas mundanas, com a publicação do livro Cinco Elegias, em 1943. Castello supõe que Tati foi a mulher mais importante para a poesia de Vinicius.
– Tati era o oposto de Vinicius. Ela era independente, materialista e não tinha grandes dilemas religiosos. Era feminista e de espírito livre. Era uma mulher com pé no chão, e o arrastou para o mundo. Tirou o Vinicius dessas divagações, dessas torturas metafísicas – que ele dizia – e trouxe-o para o mundo real. Ela marca a transição da poesia metafísica para a poesia da realidade – aponta Castello.
De acordo com Jost, a escolha por uma vida dupla transformou a poesia de Vinicius.
– Essa mudança veio a partir do contato com alguns intelectuais. Vinicius conhece o Manuel Bandeira, que o influencia com sua obra. Há também o fato de Vinicius ter uma vida dupla. Naquele período, ele frequentava a Lapa e o carnaval. Ele flertava com uma experiência urbana do Rio de Janeiro que tinha a ver com essa rotina do cotidiano.
Em uma tarde de 1951, a convite de Rubem Braga, Vinicius chegou, às pressas, ao bar Todo Azul, no Posto Seis, em Copacabana. Ali, o jornalista acompanhava duas belas mulheres. Uma delas, Lila Esquerdo Boscoli, era fã dos versos de Vinicius. À mesa, Braga foi enfático: “Esta é Lila Boscoli, este é Vinicius de Moraes. E seja o que Deus quiser”. Terceira mulher do poeta, Lila deu à luz Georgiana e Luciana.
Vinicius conheceu a atriz baiana Gesse Gessy, em 1969, no bar Pizzaiolo, na Rua Montenegro, em Ipanema. Acompanhada pela cantora Maria Bethânia, ela resistiu às primeiras investidas do poeta. Tímida, recusou-lhe, a princípio, o pedido de cantar. Em outro encontro, porém, revelou os dotes musicais: gravou uma música de Toquinho e entregou a fita a Vinicius. O poeta enlaçou mais uma mulher, 26 anos mais nova. Mudaram-se para a Bahia, em 1971, um ano após o nascimento da última filha, Maria, fruto do casamento anterior, com Cristina Gurjão. Naquela época, Gesse apresentou o candomblé ao poeta, que compôs Tarde em Itapuã, com o último grande parceiro, Antonio Pecci Filho, o Toquinho, 33 anos mais novo que Vinicius.
– Curtíamos a vida – afirma Toquinho. – Colocamos sempre a vida na frente da arte. Do nosso cotidiano prazeroso e livre, brotavam os temas das canções. Sempre atentos a tudo: amigos, mulheres e comidas. Vivíamos empolgados com nosso trabalho, que se confundia quase sempre com o imenso prazer de curtir a vida.
No poema Receita de mulher, o poeta versa sobre o prazer pela beleza feminina: “As muito feias que me perdoem / mas beleza é fundamental”.
Certa vez, afirmou que se casou com nove enciclopédias inacabadas. E completou: “Quando terminava um casamento, eu levava apenas a escova de dente, no bolso”.
– Ele não era materialista, ele gostava das coisas boas da vida. Nunca se preocupou com dinheiro, sempre foi a família que se preocupou com isso. Antes de morrer, ele orientou o que queria que fosse feito com a obra dele – destaca Maria, homenageada com a canção Olha Maria.
Em 9 de julho de 1980, Vinicius morreu na banheira, em casa, na Gávea, vítima de edema pulmonar. Após varar a madrugada, com Toquinho, para finalizar o segundo disco da Arca de Noé – dedicado às crianças –, Vinicius deu o derradeiro suspiro com a mão apertada à de Toquinho. Em uma vida banhada por música, poesia, amores, intelectualidade, jornalismo e dramaturgia, a pluralidade de Vinicius justifica a autodefinição: “Se eu fosse um só, me chamaria Vinicio de Moral”.