de 1800 a.C. a 1200 d.C. Ônibus em La Paz, a R$ 0,25 centavos. As llamas, que costumam ser confundidas com
alpacas e vicunhas, todos camelídeos. O Trem da Morte, como é conhecido: 22 horas de viagem. Praça
Murillo, no centro de La Paz. No caminho da montanha Chacaltaya, a 5500 metros de altitude
No dia 18 de janeiro tomei um ônibus do Rio de Janeiro a Corumbá, numa viagem de quase 30 horas de duração. Dormi, li e escrevi, enquanto deixava para trás a cômoda vida de quem mora com a mãe, distante da realidade social de um país onde ter comida na geladeira é coisa para poucos. Cheguei a Corumbá no dia seguinte. Atravessei a fronteira entre Brasil e Bolívia caminhando e fui à estação ferroviária de Puerto Quijarro. Comprei uma passagem na Primera Clase do famoso Trem da Morte, que de primeira tem apenas o nome, onde crianças, idosos e mulheres grávidas dormem no chão, estirados no piso imundo do vagão.
Viajei ao lado de Jacqueline, uma missionária camaronesa da Igreja Presbiteriana, que ia à Bolívia resolver um problema com seu passaporte. Ela falava pouco, mas contou-me de seus quatro filhos e da saudade que sente de seu país. "Por que saiu de lá?", perguntei. "Por Deus", respondeu-me, sem dizer nada mais. A cada parada, dezenas de crianças entravam nos vagões vendendo comida, em geral frango assado com batata frita, prato diário dos bolivianos. Não vi crianças brincando: apenas trabalhando.
Cheguei em Santa Cruz de la Sierra 22 horas mais tarde, e lá passei apenas uma noite, num hotel próximo à Praça 14 de Setembro. Santa Cruz é uma cidade muito distinta do resto do país: as pessoas têm feições menos indígenas, traços mais delicados, e quase todos aparentam ter muito dinheiro. Pelas ruas circulam carros caros, algo raro num país onde grande parte da população ganha entre U$ 60 e U$ 70 por mês. No dia seguinte, parti para Cochabamba, numa emocionante viagem de quinze horas de duração à beira de precipícios imensos, com uma tempestade infindável e, como se não bastasse, um motorista que, pela forma como dirigia, parecia embriagado.
Cheguei à rodoviária assim que amanheceu e, quando desci para pegar minha mochila, ela não estava no bagageiro. Falei com o motorista, que pediu minha passagem. "Você devia estar em Cochabamba", disse ele. "Mas estou em Cochabamba", respondi. "Não, está em Sucre", retrucou em tom definitivo, seguido de um silêncio interminável. Por desatenção minha, e por uma informação errada da funcionária da empresa de ônibus, em Santa Cruz, entrei no carro errado.
Ao descobrir que a mochila estava em Cochabamba, tomei um ônibus na mesma tarde, para outra viagem de quinze horas em busca da mochila aventureira. Viajei na cabine do motorista, sentado no chão, ao lado de três senhoras indígenas, e paguei metade da passagem por isso. Enquanto elas dormiam, eu, na janela, olhava o céu com suas cem mil estrelas, sentindo o vento no rosto e um sentimento que, talvez, possa chamar de felicidade, apesar das circunstâncias adversas.
Se perder a mochila, compro um casaco, algumas cuecas, e sigo em frente, pensava. O otimismo durou até a chegada em Cochabamba, às quatro da manhã. A empresa que estava com minha mochila a mandara de volta a Santa Cruz. Para manter a tranqüilidade, contei até dez, enquanto tentava lembrar-me de um mantra indiano que, segundo um amigo, "desperta o sol interior". Caminhar sem peso fez-me bem, e a mochila finalmente voltou às minhas costas na manhã seguinte.
Em Cochabamba, li nos jornais que o presidente Evo Morales, depois do gás e do petróleo, nacionalizará as minas e os trens do país. Na praça principal, uma manifestação contra o assassinato de dois líderes cocaleros chamou-me a atenção: eles foram mortos, acredita-se, por opositores de Evo Morales, a quem estão ligados os produtores de coca. Os camponeses pediam a saída de Manfred Reyes Villa, governador de Cochabamba, filiado a um partido de direita, supostamente envolvido na perseguição aos coca-leros. Pessoas discutiam em voz alta. Dois homens trocaram socos. Um mendigo bêbado gargalhava. Um bebê chorava no colo da mãe.
À noite a cidade era outra: uma multidão alegre assistia ao show de dois palhaços argentinos, no centro da praça. Conheci cinco bolivianos, que me convidaram para um café num bar ao lado da Catedral. Tomamos café e comemos pão, enquanto falávamos sobre a vida, enquanto a noite caminhava sobre nós, cinco homens e uma mulher, compartilhando o que tínhamos de mais precioso, talvez nossa única posse: as experiências pelas quais passamos.
No ônibus que me levava a La Paz, conheci Alejandro, um boliviano de Potosí que trabalhou por quatorze anos nas minas da cidade natal. Mesmo quando sorria, a expressão de seu rosto revelava um peso, uma densidade que, pouco depois, comecei a entender: entrava no trabalho às 6h, parava para almoçar ao meio-dia, voltava em seguida e terminava apenas às 19h. Mais grave é a situação das crianças que, a partir dos 10 anos, são contratadas para trabalhar nas minas, sob as mesmas condições dos adultos. Não há mais prata nas minas de Potosí: os espanhóis levaram tudo. Sobrou o estanho, rejeitado pelos europeus. Alejandro ganhava U$ 60 por mês.
Em uma parada na estrada, ele pagou-me uma gelatina de morango. Em outra, pagou-me o almoço. Dividi com ele minha água, a única coisa que tinha. Alimentei-me não da comida que Alejandro gentilmente me comprou, mas da humanidade que vi nascer entre dois homens, em tão breve tempo, no olhar atento e triste de meu amigo.
Em La Paz passei quatro dias. Conheci bem os arredores, as ruínas Tiwanacu e seus mistérios, as ruas estreitas e abarrotadas de gente, os ônibus dos anos 60, as folhas de coca. Ao entrar numa padaria, ao lado do alojamento onde fiquei por R$ 6 a diária, descobriram minha nacionalidade e começaram a me perguntar sobre novela, futebol, capoeira. Fui, por duas horas, embaixador da cultura brasileira. Saí de lá com uma garrafa de refrigerante, alguns pães e presunto, que eles me deram de presente. E descobri, por eles, que me hospedara numa das zonas mais perigosas da cidade.
Voltei à estrada, rumo a Copacabana, onde conheci alguns brasileiros e quatro argentinas – com elas, fui para a Ilha do Sol na manhã seguinte, e ficamos hospedados à beira do Lago Titicaca, o lago navegável mais alto do mundo, a 3.800 metros de altitude. O azul cristalino do lago, as noites estreladas, Sofia, a malabarista argentina que conheci na ilha, o peixe que cozinhávamos juntos no fogo à lenha, tudo isso era um convite para que eu permanecesse. Mas segui viagem, uma vez mais sozinho, como no início, e fui a Puno, no Peru.
Esse encontrar-se e despedir-se sem fim é uma grande experiência de viagem; um exemplo pequeno, mas significativo, de algo inerente à vida. São estranhas as forças que aproximam e afastam as pessoas, num tempo que parece chegar, sempre, ou muito cedo, ou muito tarde. Cheguei à Bolívia como um estrangeiro, mas na medida em que entrava no país sentia-me caminhando por minha própria terra, sobre meu chão, sob meu céu. Deveriam ser mais fortes os laços que unem Brasil e Bolívia, países de problemas tão parecidos, como parecida é a trajetória colonial que ambos percorreram.
Fui descobrindo lentamente o Peru, cuja riqueza vai muito além de Machu Picchu, mas isso é conversa para o próximo jornal.
Edição 184