Todos os dias, Cristiano Sales fazia o mesmo trajeto. Deixava o trabalho em Mariana às duas da tarde e cumpria os 35 quilômetros rumo ao distrito de Bento Rodrigues, onde morava. No dia 5 de novembro do ano passado, um atraso salvaria-lhe a vida. Ao voltar pela estrada de terra até Bento, Tiano, como é conhecido, sentiu um cheiro forte de enxofre. Desconfiou de que fosse da mineradora ali instalada (Samarco, controlada pela Vale e pela anglo-australiana BHP). Em seguida, avistou uma fumaça esbranquiçada cobrindo parte do distrito. Estava a 200 metros da entrada da cidadezinha, quando viu a lama descer da Barragem do Fundão e arrasar tudo. Teria tempo de ouvir uma derradeira badalada do sino da igreja, enquanto era carregada pela enxurrada de barro.
– Se eu tivesse dois minutos adiantado, tinha ido embora na lama – conta.
O alívio não suaviza, contudo, as marcas visíveis e invisíveis deixadas em Tiano e nos seus conterrâneos pelo desastre ambiental sem precedentes no país. Uma tragédia cuja caligrafia vai além das 19 mortes que pagaram por negligências de prevenção e fiscalização. Não se traduz só no inventário de destruição imposta pelo mar de lama aos habitantes, à fauna e à flora de dezenas de cidades mineiras e capixabas. Marcas tão ou mais profundas da tragédia ecoam intangíveis nas rotinas daqueles que, como Tiano, tentam reencontrar a vida dizimada pelo barro. Parte deles compõe uma romaria quase diária até os montes de pó onde ficavam os lares tragados na correnteza. Garimpam vestígios que possam devolver sentido ao mundo.
Os 35 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos que vazaram da barragem formaram um tsunami de 20 metros de altura. Soterraram 80% das edificações de Bento. De uma hora para outra, os moradores da pequena comunidade foram drasticamente removidos do berço. Partiram das casas só com a roupa do corpo. A maioria sequer tinha a dimensão da tragédia. Muitos acharam que logo voltariam.
A lama destruiu vidas, histórias, objetos. Enterrou sonhos. Apesar disso, Bento continua viva para Tiano e as dezenas de outros moradores. Só puderam ver a sobra da destruição um mês depois do tsunami ter batido às portas. Desde então, Tiano refaz frequentemente o trajeto que percorria todos os dias antes do desastre:
– De vez em quando, saio do trabalho e vou para Bento. Faço isso para ver que aconteceu. Porque tem hora que eu acho que não aconteceu. A ferida não cicatriza. Então eu volto para lembrar. Falam que Bento acabou. Mas, para mim, não acabou, não. Eu volto lá e vejo. Sinto-me bem em ir lá e ver. Mesmo que esteja tudo destruído – revela Tiano, com os braços arrepiados de emoção.
Tiano e dezenas de outros moradores feitos órfãos da antiga Bento Rodrigues extraíram da lama a sublimação de ver, em vez de escombros, uma cidade que ainda está lá. Uma outra Bento, reconstruída pelas memórias diariamente projetadas naquele horizonte desértico. Nesta cartografia do invisível eles resistem, enquanto tentar juntar os cacos das rotinas pessoais e profissionais.
Devido ao forte simbolismo daquelas ruínas, o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana (Compat) iniciou, no fim de abril, um processo de tombamento de Bento, Paracatu de Cima e Paracatu de Baixo, outras localidades devastadas pelo rompimento da barragem. A criação de um memorial pavimentaria o vínculo dos moradores com o passado tragicamente subtraído. Sem novas referências, eles retornando cotidianamente à terra arrasada. Por meio deste ritual, tentam recuperar parte do que a lama lhes roubara. Assim fizeram, de forma orquestrada, no feriado de Tiradentes.
– Antigamente, chegava aqui e pensava “Ufa, estou em casa”. Do alto, dava para ver toda a cidade. Hoje, vemos pedaços de Bento espalhados pelo pasto de lama – lamenta Tiano.
Aos pedaços espalhados no pasto de lama, soma-se uma vastidão de pedaços de passados projetados ali no meio do nada, e assim recria-se uma Bento Rodrigues alheia a indenizações, socorros, promessas oficiais. Um esforço quase hereditário. “Ali que era a casa da vó?”, pergunta Ingrid, de 11 anos, à mãe, Lucinéia Silveira. A inevitável dificuldade em identificar algo próximo ao vestígio de uma casa deixou a menina sem uma resposta concreta. Mas, de alguma maneira, elas encontram certo conforto no garimpo de fragmentos de um mundo plausível. Provavelmente jamais haverá, para Ingrid e Lucélia, um feriado de Tiradentes como aquele.
Weberson Santos chega logo depois. Usa boné e traz uma mochila nas costas. Quer refazer o trajeto da lama, à cata de algum pertence:
– Se eu achasse pelo menos o tablet para tentar recuperar o cartão de memória. Ali eu havia registrado o passo a passo da construção da minha casa, fora as fotos dos meninos, da Primeira-Comunhão. Agora me resta correr atrás dessas lembranças, porque até a roupa com a qual conseguimos sair daqui teve que ser descartada – recorda.
A romaria atrás de vestígios do mundo abreviado pela lama não raramente transforma-se em aventura. Para driblar a fiscalização nas áreas de acesso proibido, passam por trilhas alternativas. Brincadeira de criança, diante do horror que viveram no inesquecível 5 de novembro. Para entrar no distrito sem que os seguranças percebessem, Weberson atravessa o riacho que corta Bento. Só não consegue escapar dos lembretes do desastre que se estendem, sob diversas formas, na região: partículas de minério acumuladas no fundo do leito brilhavam ao sol.
Enquanto caminha no barro vermelho e seco, Weberson conta sobre a antiga rotina, os fins de semana no bar da Sandra, as conversas com amigos na pracinha, as festas de igreja. Recordações ainda pulsantes, tão essenciais quanto o esforço quase diário de escavar o passado no monte barrento outrora chamado de lar.
Ao reencontrar a rua onde toda a família morava, ele reencontra o presente congelado na memória. Fala como se tudo ainda existisse:
– Ali é a casa do meu primo, lá é a casa da minha cunhada. Mais ali é a casa da minha irmã. A minha casa é aqui, a piscina fica aqui.
Diante do vazio da perda, Weberson é coberto por uma anestesia ao rever o que resta da casa na qual morara e a qual ajudara a construir.
– Dá uma sensação de incapacidade. O cérebro fica neutro, a gente não consegue pensar nem positivo, nem negativo. Parece que o cérebro fica paralisado.
Depois de procurar por duas horas, em vão, o tal tablet e outros resquícios tangíveis da vida em Bento, Weberson toma o rumo da saída. Ao longe, vê os pais e mais seis familiares descendo o morro para atravessar o riacho e também entrar em Bento. Dali a pouco, chegam outras pessoas. Carregam enxadas. Também cumprem a recente sina de remexer as sobras das antigas casas em busca de migalhas do passado.
Neste momento, a movimentação é percebida por um segurança, que se posiciona para impedir o acesso dos moradores. Determinados, gritam que “ninguém os impedirá de entrar”. Evocam o direito a propriedades que, embora tenham ingressado num inventário intangível, estão vivas tanto na memória quanto na batalha por ressarcimentos.
– Ah, vamos entrar aí, sim. Isso aí é nosso ainda. Não recebemos nenhum dinheiro pelas nossas terras – argumenta um.
– Ninguém vai conseguir me tirar daqui. Hoje eu entro na minha casa de qualquer jeito – esbraveja outro.
– Liga para a (mineradora) Samarco e fala que o povo do Bento chegou – ironiza mais outro.
Alguns evocam não só direitos legais, e o direito de rever vestígios das vidas que tinham antes da erupção de lama, mas o reconhecimento por terem evitado drama ainda pior. A ausência de dispositivos que alertassem a população em caso acidentes poderia ter matado muita gente não fosse o heroísmo de certos moradores. A diretora da Escola Municipal de Bento Rodrigues, Eliene dos Santos, tornou-se a estandarte desses heróis anônimos. Avisada pelo marido, conseguiu retirar os 58 alunos que estavam na escola. Em poucos e decisivos minutos, ela guiou as crianças até a parte alta da comunidade. De lá, assistiu à escola na qual estudara e da qual era diretora desde 2013 ser destruída pela força da lama. Tudo parecia perdido, pensou ela.
Escola de Bento é um laço da comunidade com o passado
Mas 11 dias depois do tsunami mineiro, as aulas voltaram. A Escola Municipal de Bento Rodrigues e a Escola Municipal de Paracatu de Baixo, também afetada pela tragédia, passaram a funcionar no prédio da Escola Municipal Dom Luciano, em Mariana. Durante os três primeiros meses, funcionários e alunos foram assistidos por psicólogos.
A diretora avalia que a retomada da rotina escolar “foi muito positiva na recuperação das crianças”, ainda traumatizadas pelas perdas. A importância daquele espaço escola não contemplou, contudo, só as crianças. A escola tornou-se um elo entre os sobreviventes.
– Bento era uma comunidade pequena. Todo mundo se via o tempo inteiro. Depois da tragédia, nos separamos e ficamos espalhados pelo município de Mariana. A escola virou o ponto de encontro da comunidade: o vínculo, a amizade, o contato, o abraço amigo, acontecia aqui – conta Eliene.
A educadora parte para nova reconstrução. Pretende resgatar, num livro, a identidade e da história de Bento Rodrigues. Levar para o papel, as lendas, os retratos e as histórias.
– Bento acabou. A história dela, não. A gente foi protagonista de um episódio ruim, mas temos que sair dele. Não pode me seguir até o final da minha vida.
População deslocada enfrenta dificuldades de se acostumar à nova rotina em Mariana
Outra heroína anônima é Paula Alves. A moradora compensou com o gogó a falta de uma sirene ou de outro alerta formal. "Era o dia mais bonito que já tinha feito em Bento", lembra-se. Quando soube do rompimento da barragem, pegou a moto e saiu gritando pelas ruas: “Corre que a barragem rompeu, a barragem rompeu, a barragem rompeu”. Mesmo depois de ter avisado a família e ficado sem combustível, ela continuou a alertar os vizinhos. Só quando não viu mais ninguém, correu, empurrando a moto, até um local supostamente seguro.
– Quando olhei para trás, não tinha mais Bento. Só tinha lama – resume.
Paula trabalhava em uma empresa de reflorestamento, terceirizada da Samarco, cuja sede ficava numa fazenda também soterrada. Continua trabalhando para a mineradora. Cuida agora do galpão com cachorros resgatados em Bento e em Paracatu de Baixo. Limpa o galpão, lava, trata e passeia com os animais. Paula conta que “no começo não gostava muito”, mas reconhece que a nova função ajuda, ao lado dos amigos e parentes, a “ocupar a cabeça” e a estimulá-la a “seguir em frente”. Ela diz que, apesar de a família estar dividida na cidade de Mariana, ficou ainda mais unida.
Paula passou a morar com os pais e com o filho João Pedro em uma casa alugada pela Samarco, no centro de Mariana. Recebem da mineradora um auxílio financeiro geral de R$ 1.800 por mês, mais 20% deste valor para cada integrante da família. Ainda assim, mostra-se incomodada com o novo custo de vida e as novas rotinas:
– Uma folha de couve aqui custa 1 real. Lá em Bento, a gente não comprava nada – compara.
A casa onde morava com a família em Bento Rodrigues tinha um pomar e uma horta. Plantavam couve, alface, almeirão, tomate, cebola, limão, laranja, ameixa, pêssego. Hoje, na casa alugada, plantam apenas tomate e jiló. Não há espaço para ter uma horta. Paula sonha “com o dia em que vai receber a chave da nova casa em Novo Bento, comunidade que será construída pela mineradora para abrigar definitivamente os moradores deslocados, de forma compulsória, para Mariana, depois da tragédia.
O pai de Paula, Antônio Alves, de 70 anos, diz ter medo “de não viver para ver esse dia”. Ele morou em Bento a vida toda. Todos os dias, acordava cedo, regava a horta, tratava das galinhas, capinava o quintal, cuidava do pomar. Vida de roceiro. Hospedado em Mariana, capinou os quintais de duas casas, menos pelos caraminguás do que tentativa de reviver a antiga rotina. Um problema de saúde o impediu de continuar tentando.
– Rezo, agradeço a Deus por mais um dia e fico andando pela casa. Às vezes, saio na rua. Mas fico cismado e com medo. Na cidade, você não sabe quem está ao seu redor. Não sabe quem é gente do bem – aflige-se Antônio.
O filho de Paula, João Pedro, de 5 anos, mudou completamente a rotina. Em Bento, estudava de manhã e à tarde brincava com os amigos, andava de bicicleta e ajudava o avô na horta. Agora estuda à tarde e, separado dos colegas, encontra companhia na televisão.
– Nas férias foi pior ainda. Ele ficou com saudades dos coleguinhas. Não via ninguém, pois nenhum deles mora mais perto – recorda a mãe – Quando nos mudamos para cá, João tinha medo de vento, de chuva e de caminhão. Achava que era o barulho da barragem estourando. Outro dia, ele pergontou assim para mim: “Mamãe, aqui em Mariana não tem barragem, né? Porque eu não quero correr mais não” – revela Paula.
Tiano também não superou ainda a mudança. Guarda no pendrive uma coletânea de fotos e vídeos com imagens do lugarejo antes e depois da tragédia. A trilha musical – Era uma vez, de Toquinho – reforça a nostalgia e indica o vazio que assola as vítimas do desastre.
Como se não bastasse o trauma recente das vidas soterradas pela lama, o recomeço longe de casa é cercado não só de nostalgia e do vazio que procuram dirimir com a romaria diária até o lar transformado em montanhas de barro, mas ainda tão palpéval para aqueles sobreviventes. Eles enfrentam também problemas práticos de adaptação aos novos cotidianos sociais, econômicos e profissionais. Para Weberson, “não tem sido fácil” a inclusão em Mariana:
– Em Mariana, a gente escuta o povo falando mal da gente. Que a gente está na vida boa. Eles não sabem como a vida da gente era. A nossa vida em Bento não era ruim.
Aos 84 anos, Orides da Paixão de Sousa toma um caminho diferente da maioria dos antigos vizinhos de Bento, onde morava três filhos e oito netos, todos na mesma casa. Orides não voltou à terra arrasada. O que ela queria de lá mesmo, ninguém achou: o retrato do falecido marido, “única lembrança que guardava de Raimundo”.
– Não quero voltar para lá, para não ver nada. Ficar sem ir lá é melhor. Assim a gente vai esquecendo as coisas. Tudo que eu tinha de valor foi embora.
O refúgio de Orides é a fé. Todos os dias, reza para Nossa Senhora e assiste à missa pela televisão. Como a perna anda ruim, fica difícil sair de casa. Antes, o irmão de Paula Alves, Toninho, a levava para missa.
Orides reserva energias para participar da tradicional carreata, no dia 12 de outubro, até a capela na estrada de terra entre Bento Rodrigues. Desta vez, se a perna permitir, partirá de Mariana. Parte da reza se volta para aquele que se tornou o “maior sonho” da senhorinha: morar em Nova Bento:
– Peço a Deus para que eu viva até lá.
Moradores querem transportar elementos da comunidade destruída para “Novo Bento”
No dia 7 de maio, 223 das 226 famílias do distrito escolherem o terreno conhecido como Lavoura para a construção de Novo Bento. A área 350 hectares (3,5 quilômetros quadrados) fica a oito quilômetros de Mariana e a nove da antiga Bento Rodrigues.
– Pelo menos, esse lugar fica no trajeto que era da gente. No mesmo sentido de Bento – alegra-se Weberson.
As obras de reerguimento da comunidade devem durar três anos. A próxima etapa do processo é a aprovação do projeto arquitetônico e urbanístico. Eliene, contudo, pretende ficar em Mariana:
– Quero refazer minha vida em um local com melhores condições. Em Lavoura, Bento não seria a mesma – justifica.
Ela se diz especialmente saudosa da casa que projetou quando ainda namorava o marido. O sonho deles, conta, era um segundo andar. Começaram a construí-lo em 2013. O marido trabalhava na obra nos finais de semana. Pouco tempo depois de acabado o novo quarto do casal – “enorme, do jeito que sempre sonhei” –, veio a lama.
O mar barrento afogou também a satisfação de Paula com a casa onde morou por 36 anos. Na primeira vez que voltou ali, ela conta que teve medo de entrar.
– Ficou uma escuridão dentro da casa, uma tristeza. Antes ali tinha vida. Podia até não ter luz, mas tinha vida.
Apesar de estranhar a velha casa, toda vez que volta, Paula sente vontade de “limpar tudo e ficar por lá”. Se pudesse, levaria duas coisas para Novo Bento: a escada de pedra e o pé de manacá plantado pelo avô na frente da casa, ambos centenários.
– A única coisa irreparável é a vida. Se a gente não perdeu a vida, do resto das coisas a gente vai correndo atrás – diz Paula com um leve sorriso no rosto.
* Enviada especial a Mariana e Bento Rodrigues.