Mais de um ano após o rompimento da barragem de Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, próximo ao município de Mariana, Minas Gerais, os sinais de restabelecimento e recuperação do local são lentos. O desastre, que culminou na morte de 18 habitantes e centenas de desabrigados, causou tanto efeitos instantâneos – como perda de casas e a fragmentação de famílias – quanto danos ao ecossistema, que se estenderão por anos. Por hora, discutem-se as sanções a serem aplicadas aos culpados, a melhor forma para a recuperação das áreas devastadas e a relocação dos moradores das regiões arrasadas pelos detritos oriundos das barragens.
Em entrevista ao Jornal da PUC, o advogado Marcelo Abelha Rodrigues, representante de famílias atingidas pelo desastre e professor de Direito Ambiental da Universidade Federal de Espírito Santo, critica duramente a Proposta de Emenda à Constituição nº 65, de 2012, estritamente ligada ao caso do rompimento da Barragem do Fundão. A PEC 65/12 assegura a continuidade de obras públicas após ser concedida a licença ambiental. Caso vigore, basta ao empreendedor apresentar um estudo de impacto ambiental (EIA) ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), uma vez dada a concessão, o empreendimento não poderia mais ser parado. A retirada das etapas do licenciamento – licença prévia, licença de instalação e licença de operação – resulta, na opinião do especialista, numa flexibilização das leis que beneficia apenas as mineradoras. A Proposta de Emenda Constitucional, de autoria do senador Acir Gurgacz (PDT-RO), já recebeu a aprovação para ser votada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
Para Abelha, a medida é inconstitucional, pois cria um retrocesso em relação aos direitos humanos e ambientais e, principalmente, é contrária às normas básicas do direito ambiental:
– Ela [PEC 65/12] desonera estudos ambientais que são necessários para fazer uma avaliação de impacto. Ela simplesmente torna tudo muito rápido, como se um estudo prévio não fosse necessário.
Outra alteração prevista na PEC é abrir caminho para que as mineradoras modifiquem seus relatórios anuais de lavra (RALs), que hoje seguem os padrões propostos pela DNPM (leia a entrevista abaixo). Ele alerta que adulterar tais relatórios não contradiz somente a legislação do meio: o ecossistema também é afetado pelos rejeitos descartados durante o processo.
Em Aula Magna a alunos do Departamento de Direito da PUC-Rio, no dia 23 de setembro, o advogado abordou questões como o Estado Socioambiental de Direito, que determina alternativas de posicionamento em relação às necessidades ambientais presentes e futuras; problemas socioeconômicos – desde a brusca queda no turismo local e na atividade de pesca artesanal dos ribeirinhos até o atraso do cultivo de cacau em Linhares (ES).
A quebra da Barragem de Fundão é responsabilidade da Samarco Mineração S.A., controlada por uma associação entre a BHP Billiton Limited & Plc, mineradora e petrolífera anglo-australiana, e a brasileira Vale S.A. Entre as acusações estão: descumprimento do acordo feito com as famílias atingidas, ampliação indevida do limite anual da barragem, lançamento de resíduos tóxicos a biodiversidade e desmatamento irregular. O valor inicial das multas direcionadas à mineradora soma R$ 250 milhões.
Abelha recebeu denúncias de que outras empresas estão despejando rejeitos tóxicos na Barragem de Fundão, e recebendo minério de ferro da mina de Germano, localizada no município de Mariana. De acordo com o professor, a população também vem buscando medidas contra os rejeitos que atingem casas, praias e reservas nos arredores do Porto de Ubu, no litoral do Espírito, e o uso do Tanfloc SL, anticoagulante de sulfato de alumínio aplicado pela Samarco na decantação do minério, que poderia contaminar a água:
– A decisão judicial só dizia que a Samarco deveria fornecer a água para os habitantes, mas não existia na decisão judicial uma especificação de como seria fornecida e sobre alterações no cheiro, gosto e cor da água.
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Jornal da PUC: A PEC que assegura a continuidade de obras públicas vale mesmo se o empreendimento apresentar riscos?
Marcelo Abelha: Existe um princípio do direito ambiental chamado princípio do não-retrocesso. Alguém admitiria, por exemplo, o retorno de determinadas substâncias de agrotóxicos que já estão proibidas? Quer dizer, mesmo que uma lei venha a dizer isso, essa lei criaria um retrocesso ambiental, um retrocesso aos direitos humanos, aos direitos ambientais, que a torna ilegítima, natimorta. Então essa medida [PEC 65/12] é absolutamente inconstitucional. Porque ela desobriga estudos ambientais que são necessários para fazer uma avaliação de impacto. Ela simplesmente torna tudo muito rápido, muito simples, como se nenhum estudo seja necessário, como se um estudo prévio não fosse necessário. Ela é contrária às regras mais comezinhas do direito ambiental.
Isso também abre espaço para a alteração dos Relatórios Anuais de Lavra (RALs)?
Sim. Se admitirmos que uma PEC como essa possa vingar, cria-se um precedente horroroso, não só em matéria ambiental, mas em qualquer outro tipo de direito, como em qualquer outro tipo de conquista que já tenha sido incorporada ao patrimônio da sociedade.