A ditadura militar brasileira cometeu muitos crimes de perseguição, tortura e violação de direitos humanos. O primeiro caso após o golpe de 1964, que tirou o presidente João Goulart do poder, foi a prisão de um grupo de chineses, acusados de serem agentes comunistas infiltrados e de porte de armas. Amplamente noticiado à época, o caso caiu em esquecimento. Durante uma pesquisa, os jornalistas Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo encontraram os documentos do processo. Em um esforço investigativo, os dois descobriram como o caso ainda era cercado por ressentimento pelos chineses. O fruto desse trabalho é o livro O caso dos nove chineses (2014, Objetiva), sobre o qual os jornalistas conversaram com alunos da PUC, a convite dos professores Leonel Aguiar e Claudia Rodrigues.
Em 3 de abril de 1964 a polícia política do então governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, invadiu um apartamento e prendeu um grupo de chineses. Foram presos sem mandato judicial, sob suspeita de terem se infiltrado para promover uma revolução comunista no Brasil e comandarem outros agentes, nunca descobertos. Por causa da barreira linguística, o grupo ficou quase incomunicável, mas foi defendido de graça pelo advogado brasileiro Heráclito Sobral Pinto. O grupo era formado por dois jornalistas da agência de notícias Xinhua, dois comerciantes de algodão e outros quatro que vieram planejar uma exposição comercial.
Em setembro de 64 os chineses foram condenados a dez anos de prisão por subversão. Enquanto isso, tanto a comunidade internacional, liderada pela China, como a população brasileira começaram uma pressão contrária ao governo brasileiro, o que levou à suspensão das relações diplomáticas entre Brasil e China. No ano seguinte, o grupo foi expulso do país e recebido na China como heróis.
O caso continua sem desfecho por parte do governo brasileiro. Para Ciça Guedes, revelar casos esquecidos é fundamental para a memória do país:
— Nós nos deparamos com um caso absurdo e totalmente esquecido. Esse trabalho é uma ótima oportunidade para impedir que histórias semelhantes caiam no esquecimento.
Murilo Fiuza e Ciça Guedes descobriram a história enquanto pesquisavam as relações entre Brasil e China para a comemoração dos 40 anos de relacionamento da Vale com o país. Em entrevista com o embaixador chinês, Li Jinzhang, descobriram que os chineses ainda guardam rancor desse caso, pouco lembrado no Brasil. O decreto de expulsão, por exemplo, só foi revogado em 2014. Antes disso, o jornalista Ju Quingdong, integrante do grupo, tentou vir ao país em 1997 para apresentar o país para a esposa, mas foi impedido.
A descoberta dos jornalistas trouxe à tona um acontecimento desconhecido pela Comissão da Verdade, responsável por esclarecer e resolver acontecimentos encobertos do período militar. Após a revelação, os jornalistas foram convidados a depor nas esferas estadual e federal do comitê. O levantamento da lembrança gerou impactos no governo. Logo em 2014, ano de lançamento do livro, o decreto de expulsão foi suspenso e, no ano seguinte, a presidente Dilma Rousseff concedeu a medalha da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul aos chineses. Entretanto, a honraria nunca foi entregue, e os homenageados sequer foram avisados.
Para Murilo Fiuza, a diferença de relevância dada pelos dois países é preocupante, devido à relação entre os dois:
— A China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil. Isso não é pouca coisa. Além da troca de bens, se estabelece uma troca cultural, muito importante para ambos. Enquanto o Brasil se esqueceu, a China tem ressentimento.
O debate, organizado pelo coordenador de Comunicação Social da PUC-Rio, Leonel Aguiar, e pela doutoranda Cláudia Rodrigues, também abordou os desafios da prática investigativa. A jornalista e economista Ciça Guedes reiterou a importância do fator financeiro numa produção:
— Não é fácil. Nós bancamos as passagens, as cópias de documentos, tudo. Depois que fizemos o acordo com a editora, recebemos uma ajuda de custo. Não cobre tudo, mas alivia. Também não é o tipo de história que faz sucesso com o público.
Também historiador, Murilo Fiuza lembrou as dificuldades da pesquisa documental. O tempo e o mau armazenamento podem danificar os documentos arquivados, mas ele enxerga os desafios de futuros pesquisadores na era digital.
— A digitalização ajuda bastante. Mas a questão passa a ser outra: até quando as informações estarão disponíveis na nuvem? Por quanto tempo o dono dela estará disposto a manter isso? Não é tão simples, também custa dinheiro — opinou.