Cem anos é a idade que Angenor de Oliveira, o Cartola, faria este ano. Durante sua vida, o cantor e compositor transitou entre o ostracismo e a fama, a simplicidade e o refinamento e entre o samba-canção de músicas como O Sol Nascerá, regravada mais de 600 vezes, e o samba-enredo, com a criação da escola de samba Estação Primeira de Mangueira e suas cores verde e rosa, há 80 anos. Considerado um dos maiores compositores da história do samba, Cartola compôs mais de 500 canções, que hoje renascem em um público jovem e continuam vivas na memória dos mais velhos.
Sua paixão pelo samba começou cedo. Aos 8 anos, começou a desfilar nos blocos de rua, nos carnavais, onde tocava cavaquinho. Aos 11, se mudou para o Morro da Mangueira, onde morou a maior parte da vida. Aos 15, largou o colégio, na 2ª série do Ensino Fundamental, iniciando sua vida na boêmia. Começou a fazer sucesso com as composições da Estação Primeira de Mangueira e com a venda de suas músicas para famosos intérpretes da época, como Francisco Alves e Carmem Miranda. Admirado pelo nosso maior compositor erudito, Heitor Villa-Lobos, Cartola compôs em parceria com grandes nomes, como Noel Rosa, em Não Faz, Amor, e Carlos Cachaça, em Alvorada, e em sambas-enredo como Tempos Idos, Não Quero Mais e Pudesse Meu Ideal.
No início dos anos 40, o sambista desapareceu do cenário musical e só foi redescoberto, em 1956, quando o cronista Sérgio Porto o encontrou lavando carros em uma garagem de Ipanema e o levou para cantar na Rádio Mayrinck Veiga. Em 1964, Nara Leão cantou O Sol Nascerá, no Teatro Opinião, despertando a curiosidade de todos por se tratar de um “samba do morro”. Em 1976, a gravação de As Rosas Não Falam, pela cantora Beth Carvalho, foi um divisor de águas na carreira do sambista. Para Beth, o sucesso da música de Cartola em sua voz trouxe reconhecimento e trabalho para ambos.
– O resultado foi maravilhoso, marcou nossa carreira e vida. Quando todos achavam que ele estava morto, fui na casa dele, na Mangueira, pedi uma música, porque eu estava gravando um disco. Ele me mostrou Acontece, Corra e Olhe o Céu, o Mundo é um Moinho e As Rosas Não Falam. Gravei as duas últimas e depois passei a gravar sempre, lembra a cantora.
Apesar de pobre e com pouco estudo, Cartola compunha músicas refinadas. Para Beth, todas as canções são de altíssima qualidade: "Ele era um compositor completo: rigoroso, tinha letras sofisticadas e fazia discos bonitos, sem interferência de gravadoras. Também gostava da maneira de cantar dele, com sentimento.” Antigo companheiro de batuque de Cartola, o sambista Nei Lopes concorda.
– Ele é um exemplo de superação. É um artista extremamente refinado, apesar de ter vivido no ambiente pobre, na maior parte da vida. Quem ouve as melodias, não imagina que foi um carente que fez. Fico orgulhoso de ter convivido com ele. Sou feliz por isso, revela Nei.
A cantora Ana Costa lembra ainda que, apesar de sofisticado em termo de harmonia e letra, ele era popular nos temas. Serenos, bucólicos e poéticos, seus sambas-canções falavam da vida simples no morro, de desilusões amorosas, da natureza e do cotidiano. Sambista da nova geração, Ana acredita que os jovens estão buscando mais suas raízes musicais e, portanto ouvindo cada vez mais esses bambas.
Parceiro de Cartola em canções como Velho Estácio, Ciúme Doentio e Deixa, Nelson Sargento acha que os jovens não fazem favor em cultuar a música popular brasileira. "É um dever deles fazer isso, porque nós vamos embora e alguém precisa continuar com as nossas raízes. A participação deles é fundamental", diz Nelson.
Autor da frase "Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve", Nelson declara sua admiração pelo amigo: "Ele é o meu ídolo maior na música popular. Tudo que se fala dele é pouco, porque é realmente genial.” Para Beth Carvalho, Cartola é reverenciado até hoje e sempre o será, porque ele é a essência do samba, assim como Nelson Cavaquinho, Candeia e Ismael Silva. "Esses bambas não vão morrer nunca", acredita a cantora.
Edição 201