A Encíclica "Laudato Si", do Papa Francisco, sobre o meio ambiente, foi escrita com a visão intelectual de um grande profeta, com a preocupação com os pobres e como um ato de questionamento à indiferença dos poderosos. Já surgiu como libelo clássico, que permanecerá na história dos esforços voltados à conservação da vida na face do planeta Terra.
Trata-se de uma encíclica para todos, não apenas para os cristãos. Com ela, Francisco lavra mais um tento na sua já longa lista de intervenções fundamentais sobre os problemas do mundo contemporâneo. Pela primeira vez a Igreja publica um documento oficial exclusivo sobre questões do meio ambiente e da sua salvaguarda.
A atual cultura digital dos celulares e computadores nos distancia em excesso das maravilhas do mundo natural. Ao longo dos séculos, muitos homens e mulheres da Igreja e cristãos em geral levaram em consideração o tema do respeito à vida e à natureza, a começar por São Francisco de Assis, citado no próprio título da encíclica. Ele foi extraído do célebre “O Cântico das Criaturas”, obra-prima poética atribuída ao santo de Assis. Mas esse documento faz parte do Magistério (ou seja, do ensinamento) da Igreja. Representa a voz oficial da instituição católica e está impregnado da sua autoridade. A encíclica foi escrita pelo Papa Francisco, que chamou para assessorá-lo um grande número de especialistas e cientistas.
Mas – a premissa é obrigatória – não se trata de um documento científico, e sim de um repto espiritual que convida antes de tudo a uma “conversão ecológica”. A salvaguarda do ambiente é coligada à justiça em relação aos pobres e à solução dos problemas causados por uma economia que persegue apenas o lucro. As três questões não podem ser dissociadas e, com efeito, o tema ambiental é tratado por Francisco num contexto mais amplo, o da doutrina social da Igreja.
O ponto de partida é a análise dos dados científicos, mas Papa Francisco não deseja intervir no debate científico ou estabelecer em qual porcentagem o aquecimento global seja causado pelas atividades humanas. Esses temas constituem apanágio apenas dos cientistas. O pontífice explica que “existe um consenso científico muito consistente que indica estarmos diante de um preocupante aquecimento do sistema climático mundial”, devido em sua maior parte à grande concentração de gases de efeito estufa na atmosfera do planeta. A humanidade deve “tomar consciência da necessidade de mudanças de estilo de vida, de produção e de consumo”.
O Papa também toma em consideração o derretimento dos gelos e a perda da biodiversidade. Os impactos mais pesados “provavelmente recairão nas próximas décadas sobre os países em via de desenvolvimento”. “Portanto, tornou-se urgente e imperativo o desenvolvimento de políticas, de modo que nos próximos anos a emissão de gás carbônico e de outros gases poluidores se reduza drasticamente”.
O quadro descrito por Francisco no primeiro capítulo da sua encíclica é deprimente: deterioração da qualidade da vida humana e degradação social. O ponto de vista do pontífice é o de um teólogo: Francisco recorda que “o ambiente humano e o ambiente natural se degradam juntos”, atingindo, sobretudo, os mais frágeis. Problemas que “não encontram suficiente espaço nas agendas do mundo”. As palavras de Francisco não admitem panos quentes: a seis meses da próxima conferência sobre o clima, que será realizada em Paris, o pontífice convida os grandes da Terra a mudar o tom e o conteúdo do discurso, a dar relevantes passos à frente. Ele denuncia “a debilidade da reação política internacional” e afirma que “muito facilmente o interesse econômico prevalece sobre o bem comum e manipula a informação para que seus projetos e interesses sejam protegidos”.
Existe um “débito ecológico” entre o Norte e o Sul: “O aquecimento causado pelo enorme consumo de alguns países ricos acarreta repercussões nos lugares mais pobres da Terra”. Os países desenvolvidos devem contribuir para resolver esse débito ecológico. Como? O pontífice sugere limitar “de modo importante o consumo de energia não renovável”. Enquanto os países mais pobres “têm menos possibilidade de adotar novos modelos de redução do impacto ambiental”. Tais situações requerem um “sistema normativo que inclua limites invioláveis e assegurem a proteção dos ecossistemas”.
“Os poderes econômicos continuam a justificar o atual sistema mundial, no qual prevalecem uma especulação e uma busca da renda financeira”, hoje “qualquer coisa que seja frágil, como o meio ambiente, fica indefesa diante dos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta”. Diante do exaurimento de alguns recursos vai-se criando “um cenário favorável para novas guerras, mascaradas como sendo nobres reivindicações”. A política deveria estar mais atenta, mas “o poder coligado com a finança” resiste a esses esforços.
O Santo Padre reconhece que existe diversidade de opiniões sobre a situação e sobre as possíveis soluções. Cita dois extremos: quem sustenta que “os problemas ecológicos serão resolvidos simplesmente com a aplicação de novas técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo”. E quem considera que “a espécie humana, não importa qual seja a sua forma de intervenção, só poderá ser uma ameaça e comprometer o ecossistema mundial, de modo que é conveniente reduzir a sua presença no planeta”. Sobre várias questões concretas, a Igreja “não tem motivo para propor uma palavra definitiva”, basta, no entanto, “observar a realidade com sinceridade para ver que existe uma grande deterioração da nossa casa comum”.
Mas a Encíclica não faz nenhuma concessão ao afirmar a responsabilidade moral dos homens que – com os seus comportamentos – influem sobre o meio ambiente, a poluição, o aquecimento global e – em última análise – de como poderemos impedir tudo isso. O Papa conclama a todos para uma conversão ecológica. Instiga a mudarmos de rota: a nos empenharmos pela salvaguarda do ambiente, da nossa casa comum.
Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ