Tema da 52ª Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o saneamento básico é apontado por especialistas como o maior problema do país. Saneamento é o controle de todos os fatores do meio físico do homem, que exercem ou podem exercer efeitos nocivos sobre o bem-estar físico, mental ou social, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Menos da metade da população brasileira tem esgoto recolhido em casa, conforme dados do governo federal. Em cinco anos, o quadro avançou apenas três pontos percentuais (de 46% para 49%). O saneamento no país está na 10ª posição entre 17 países da América Latina, atrás, por exemplo, dos vizinhos Peru, Equador, Venezuela e Bolívia, segundo o Instituto Trata Brasil.
Dos R$ 12 bilhões gastos em saneamento no país em 2014, metade (R$ 6 bilhões) foram investidos nas 100 maiores cidades do Brasil, ainda segundo o Instituto Trata Brasil. As principais capitais não estão entre as 10 primeiras nos serviços de saneamento básico. O Rio de Janeiro, com 1.393.314 habitantes e 763 favelas, é o 50º colocado. A sede dos Jogos Olímpicos é o exemplo de um abismo que aumenta cada vez mais entre as regiões desenvolvidas e as menos.
Moradores de comunidades sofrem diariamente com problemas de falta de abastecimento de água, esgoto a céu aberto, pilhas de lixo que se espalham quando chove. Na Zona Sul, esta realidade está presente tanto na pequena favela Parque da Cidade, no alto da Gávea, como na gigante Favela da Rocinha, em São Conrado. A Rocinha tem na rede de esgoto um de seus maiores problemas. Sem considerar a formação de complexos de favelas, a Rocinha é a maior favela do país. Há anos a comunidade tem adensamento populacional e falta de investimento em obras de saneamento básico.
– São diversos pontos com esgoto a céu aberto. A luta da Rocinha por saneamento é de mais de 50 anos. Com o problema de esgoto surgem diversas doenças, como dengue, tuberculose, leptospirose, além de acumular ratos e baratas – relata Davison Coutinho, da Comissão de Moradores, lembrando um dos maiores índices de tuberculose do Brasil: 300 pessoas contraem anualmente a doença, que, como a leptospirose, pode matar. Contam-se cerca de 50 valas de esgoto na Rocinha.
O lixo também é outro problema, embora o caminhão passe diariamente: “A frequência da coleta até que é boa, passam duas, até três vezes. Mas é muito lixo, e a Rocinha não tem estrutura para armazenar, o que faz com que se acumulem pilhas de lixo”. A Comlurb instalou lixeiras novas, mas segundo o morador não têm capacidade para o volume gerado: “Quando chove, o lixo se espalha pelas ruas”.
Estudante de Jornalismo da PUC-Rio e correspondente comunitário, Michel da Silva, nascido na Rocinha há 22 anos, cresceu sabendo que o lixo é um velho problema da Rocinha. Com o crescimento desordenado das casas, muitos canais de esgoto foram cobertos. O descarte irregular de lixo nas ruas e valões contribui para o agravamento do problema:
– Nos anos 70, os moradores organizavam mutirões para limpar as valas. Mas obtiveram poucos resultados porque os moradores continuaram jogando lixo na vala, a Prefeitura não foi capaz de suprir a demanda do lixo na favela. A Rocinha produz 85 toneladas de lixo por dia, e a coleta é mais cara que a do Leblon.
– O governo federal investiu milhões de reais em obras pelo PAC na Rocinha, mas o saneamento básico nunca foi prioridade para os governantes. Acredito que continuaremos pisando no esgoto nos próximos 25 anos – lamenta Michel.
Marcello Farias, fotógrafo nascido e criado na Rocinha, é um dos fundadores do movimento Salvemos São Conrado, em 2012, criado para mostrar os problemas de saneamento do bairro, especificamente ligados à comunidade. Ele cobra ações do poder público, mas ao mesmo tempo a conscientização da população:
– A água da chuva lava a Rocinha. Ocorre muito deslizamento de terra, lixos, várias habitações já caíram. A gente mostra isso tudo na internet, mas, as pessoas não entendem... Todo mundo quer culpar o governo. Só que o povo tem que ter consciência, jogar lixo no lugar certo. Quando chove é tragédia.
Foram chuvas fortes que destruíam, no anos 1980, a Rua 4, atual Rua Nova, abrindo um valão de esgoto ao lado da casa de barro onde moravam a ex-agente comunitária de saúde Rita de Cassia Vieira Smith, 53 anos, e a mãe, Maria Amélia Vieira dos Santos, que já não contavam com água e luz. Em 1983, Maria dos Amélia contraiu tuberculose uma, duas vezes, e morreu. Quinze anos depois, Rita também teve a doença. A dupla experiência a levaram, em 2003, a se tornar agente de saúde, uma das primeiras em combate à tuberculose. “Em 2009, participei da Campanha Fundo Global Tuberculose Brasil, com Tony Ramos e Marieta Severo”, orgulha-se.
Durante décadas, a Rua Nova foi campeã de doenças respiratórias. Era úmida, mal iluminada, com lixo acumulado e sem ventilação, cena que se repete nas atuais ruas da comunidade. Rita aponta a solução com a abertura de ruas, a exemplo da Rua Nova, onde hoje há acesso a ambulâncias, bombeiros, Comlurb, entre outros serviços, e reduzindo os casos de doença:
– Dependendo do local, em algumas horas você pode contrair uma doença respiratória grave. Isso porque nunca tivemos saneamento. Saúde sem saneamento não é saúde – afirma Rita. – Defendi uma obra do PAC, na gestão do presidente Lula, que teve uma grande intervenção em famílias, para abrir a Rua 4, lugar onde uma pessoa magra com a mochila nas costas não passava. Na época, conheci uma comissão que me chamou para falar da tuberculose para o governo federal. Conseguimos mostrar a Rua 4, a falta de luminosidade, de difícil acesso, sem saneamento, e eles resolveram fazer a obra.
Apesar da melhoria, não há uma estrutura sanitária de qualidade. Em 2015, Rita, que chegou a expor fotos dos becos da Rocinha na África do Sul, na Colômbia e no México, se aposentou com deficiência visual, e passa seus dias caminhando pelas vielas do morro, entre vielas e valões, tentando mobilizar os moradores sobre o perigo de construções inadequadas, da má ventilação e de locais úmidos que facilitam a proliferação de doenças. Fala sobre a importância dos tratamentos imediatos de doenças, de educação, do correto descarte do lixo – que ocupa calçadas e não raro se espalha pelas ruas.
– Quando chove é impossível sair de casa e, em alguns casos, é necessário arrombar paredes de casas para a água passar. Mesmo que queira ir para algum lugar, é tanto lixo que não tem como sair de casa. É sentar e rezar. A chuva rompe canos da Cedae, derruba cabos elétricos, o lixo acumulado entope bueiros, causando alagamentos. Imagine no dia seguinte a qualidade da água, da luz e das ruas – lamenta.
Rita persevera, e acredita no poder da educação para mudar hábitos ruins – prevenção sem a qual não há saúde:
– Consegui mudar minha história. Sei que a luta vai muito além. Salvemos São Conrado, mas salvemos também os moradores da Rocinha. O trabalho é vagaroso e demorado. Com vocês nos visitando, já avançamos mais um pouco. Estou perdendo minha visão, vou aproveitar o que tenho dela e seguir lutando para dar voz aos que não têm coragem de dizer ou fazer. O objetivo é nosso e a melhoria, para todos.
Parque da Cidade, na Gávea: falta d’água diária
Na Gávea, um dos bairros de melhor IDH da cidade, (0,970, compatível com o da Noruega, com 0,971), a Favela do Parque da Cidade, onde moram 6 mil pessoas, vive dificuldades relacionadas à rede de esgoto e à falta d’água. O fornecimento só é suficiente para abastecer metade das casas ao mesmo tempo: assim, a outra metade fica diariamente sem água. O revezamento é controlado por um registro, conhecido como manobra, dentro de uma caixa trancada. “Enquanto o registro fica aberto para metade da comunidade, a outra metade fica sem água e vice-versa”, conta o vice-presidente da Associação de Moradores, Luiz Carlos Mendes.
Mendes, que mora no Parque da Cidade há 66 anos, explica que a estrutura é praticamente a mesma desde os anos 1980, quando surgiu a comunidade. Em 2000 começaram obras do Favela Barrinho, programa de infraestrutura da Prefeitura em favelas menores, justamente para implantar redes de água, esgoto, drenagem, entre outras melhorias. No entanto, segundo Mendes, o projeto foi interrompido, prejudicando o escoamento do esgoto, que deveria desaguar em uma via principal que ficou inacabada.
O pedreiro José Dutra, de 64 anos, morador do Parque da Cidade há 10, relata a situação da comunidade em dias de chuva:
– É complicado de sair de casa quando chove. O que mais me incomoda é quando eu desço e vejo os bueiros com as tampas levantadas. Aí vem uma criancinha e tem que pisar naquela água suja. É muito triste que a comunidade tenha crescido tanto e a tubulação não tenha acompanhado esse crescimento.
Agora, a comunidade espera a retomada das obras dentro de outro programa municipal, o Morar Carioca, criado em 2010 com o objetivo de “promover a inclusão social, através da integração urbana e social completa e definitiva das favelas do Rio”. As obras de urbanização incluem a implantação de redes de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial, iluminação pública e pavimentação, além de prevenir a construção de áreas de lazer e paisagismo, eliminação das áreas de risco e regularização urbanística e fundiária.
A Secretaria Municipal de Habitação informou, por meio de sua assessoria, que a Favela do Parque da Cidade será beneficiada pelo Morar Carioca. Está em andamento um plano de intervenção, que deverá ser seguido de um projeto básico para só então a obra ser iniciada, ainda sem prazo previsto.
O lixo também incomoda os moradores, que contam com apenas um gari para a limpeza de toda a comunidade. “A Comlurb prometeu mais dois garis, que não apareceram até hoje”, lamenta o presidente da Associação de Moradores, Waldir Cavalcante, que mora no Parque da Cidade desde que nasceu. A companhia de limpeza urbana, por sua vez, alega que um gari é suficiente: “A Comlurb informa que um gari atende devidamente a rotina de limpeza da comunidade Parque da Cidade. Havendo alguma eventualidade, a Gerência de Limpeza irá atender com número maior de trabalhadores. Lembrando que os moradores também devem contribuir para melhorar a limpeza da área, acondicionando bem o lixo domiciliar e dispondo-o devidamente para a coleta”, respondeu a assessoria, por e-mail. Nossa equipe viu moradores lançando sacos de lixo e detritos por cima de um muro que divide a favela de um terreno baldio.
– As pessoas têm preguiça de ir até a lixeira. Jogam e pronto. Já pagamos até um morador da própria comunidade para limpar aqui, mas não respeitam nem ele – conta o presidente da associação.
Na Mandela, crianças brincam no esgoto
A Favela do Mandela, no Complexo de Manguinhos, tem Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) inferior ao de países africanos como Gabão (0,755) e Argélia (0,754) e ilustra de forma clara o descaso com o saneamento básico em locais específicos da cidade. Não é difícil se deparar com crianças brincando com o lixo espalhado nas ruas, moradores convivendo com o esgoto a céu aberto, animais transitando entre escombros, além de focos de mosquito. Em 2012, o fotojornalista Bruno Itan, morador do Complexo do Alemão, registrou cenários onde é possível enxergar as péssimas condições. Leia Mais: “Papel do fotojornalista é reproduzir sentimentos”