Mais de 23 mil crianças e adolescentes estão em situação de rua no Brasil, segundo dados levantados em 2011 na Primeira Pesquisa Censitária Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua. Publicada no mesmo ano, a Resolução Nº 20 da Secretaria de Assistência Social (SMAS) – atual Secretária Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) – continha cláusulas que permitiam o recolhimento compulsório e a internação forçada desses jovens moradores de rua. Mas, há um ano, a Resolução foi revogada e substituída pela Resolução Nº 64 graças a uma iniciativa do Grupo de Trabalho (GT) Criança e Adolescente da Comissão Pop Rua da Câmara Municipal.
Composto por representantes ligados a órgãos jurídicos e organizações da sociedade civil como o Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI/PUC-Rio), o GT Criança e Adolescente foi criado em 2010 com o objetivo de defender os direitos humanos desse segmento populacional. Após um ano de reuniões, o GT apresentou, em 2015, uma proposta de revisão da Resolução Nº 20 – trabalho que resultou no lançamento da nova lei, em 2016.
Professora do Departamento de Serviço Social e diretora do CIESPI, Irene Rizzini comenta que a Resolução 64 é um instrumento legal que pode ser utilizado, mas que, sozinho, não tem força.
– A lei precisa ser conhecida, precisamos aparelhar melhor as pessoas que estão no mundo real e que se deparam com um menino em situação de rua para que o atendam de forma mais humana. Precisamos não só dar mais visibilidade, mas de uma constante formação desses atores no campo – afirma.
A professora explica que o CIESPI realiza um trabalho de pesquisa de modo a subsidiar políticas públicas, as quais, para ela, são fundamentais para garantir que não haja corrupção e para que os recursos existentes sejam investidos em questões sociais prioritárias. A professora relata que o Boletim Nº4 da série Pesquisa e Políticas Públicas do CIESPI – que será lançado este mês – pretende não só apresentar os estudos em torno das dificuldades dessa população, mas também apontar que há formas de resistência a esse quadro.
– Queremos dizer o seguinte: há um grupo grande que diz basta e que trabalha para contrapor tudo isso, essa violência. E essa é a nossa história no caso da revogação da Resolução Nº20, que foi um exercício articulado de resistência que resultou em um impacto positivo.
Uma das integrantes da Comissão Pop Rua, a defensora pública do Estado do Rio de Janeiro Eufrásia Maria Souza das Virgens aponta para premissas da nova Resolução como a promoção da cidadania e do não tratamento constrangedor das pessoas em situação de rua.
– Respeito parece uma palavra que representa o novo marco normativo, construído com ampla participação de órgãos do poder público e entidades da sociedade civil, valorizando o processo democrático. Diferente da Resolução Nº 20, que foi editada de forma autoritária.
A defensora destaca a importância da abordagem social da Resolução Nº 64 e do tratamento humanitário às crianças e adolescentes moradores de rua. De acordo com Eufrásia, essas novas diretrizes oferecem a possibilidade, para esses jovens, de construírem uma retirada voluntária de uma realidade que viola os direitos deles. Ela ressalta que esta saída deve ser tratada como uma escolha e não uma imposição.
– A escuta qualificada, que garante a participação e protagonismo dos sujeitos de direitos no processo de saída das ruas também representa um avanço. Ofertar acolhimento, e não impor como a única medida, é outro aspecto que deve ser considerado.
Eufrásia chama atenção para as limitações da implementação da nova Resolução, e relata que elas condizem, sobretudo, ao orçamento público no contexto de crise financeira. A defensora aponta que o atual investimento em ações políticas, como programas de moradia e unidades de acolhimento, é insuficiente para atender a demanda da quantidade de pessoas que estão morando nas ruas.
Irene ressalta a influência de fatores como a desigualdade socioeconômica e a pobreza no contexto de vulnerabilidade das crianças e adolescentes moradores de rua. Ela afirma que a falta de oportunidades e de acesso a serviços como escolas e hospitais de qualidade marcam uma trajetória de precariedades na vida desses jovens, e que, muitas vezes, os conduz a situação de rua. A diretora declara que esse cenário é um reflexo das informações expostas no Atlas da Violência, estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que analisa temas como a evolução na taxa de homicídios e violência policial.