Um país sem habitat
04/12/2015 04:09
Árion Lucas

As barreiras estruturais que o Brasil enfrenta para desenvolver projetos de arquitetura sustentável

Sedes da Google como a de Soho, Londres, são referências na vanguarda arquitetônica (Foto: flickr.com/photos/martinvars) 

Enquanto o mundo discute novas formas de se pensar a convivência entre arquitetura e meio ambiente, alguns arquitetos acreditam que a desigualdade social brasileira ainda impede que haja investimentos significativos nesse setor no país. “Arquitetura, Edificações, Clima” foi o slogan do Dia Mundial da Arquitetura deste ano, comemorado em 5 de outubro. O tema foi anunciado pela União Internacional de Arquitetos (UIA), que, durante a COP21, espera promover ações voltadas para o debate sobre o papel da Arquitetura e do Urbanismo na redução dos efeitos negativos que a Humanidade perpetra contra a natureza.

A coordenadora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio e colaboradora do Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente (NIMA), Maria Fernanda Lemos, estará na COP21 para apresentar um projeto de gestão sustentável dos recursos hídricos na bacia do rio Rainha, na Gávea, realizado pela Universidade. Ela afirma que, ainda que o Brasil contenha recursos naturais abundantes, o desinteresse do setor privado e a falta de planejamento público refletem diretamente em um modo de vida insustentável.

— No mundo inteiro, há várias experiências interessantes para a redução dos gases de efeito estufa. Mas, naturalmente, há uma ocorrência maior em países mais ricos. Isso porque é uma questão de qual a prioridade em termos de investimentos. Os países mais pobres acabam sofrendo mais porque, antes de pensar em arquitetura sustentável, têm que se preocupar com investimentos em educação, saneamento, segurança etc.

Professor de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio Fernando Betim explica que, mais do que pensar em sistemas construtivos ou materiais que podem ser utilizados de forma sustentável, deve-se considerar um tripé baseado nos campos “ambiental, econômico e social”, que leve em conta o contexto do país.

— No Brasil, temos muita água, muita luz, muito vento. Hoje se fala muito de ventilação natural e iluminação natural como um modo de economizar energia e diminuir gastos com os recursos naturais. Mas isso sempre fez parte da arquitetura. A questão maior está em um lado que a gente pouco se aprofunda, que é o lado social.

Professor da UFRJ e arquiteto, Paulo Musa diz que a falta de recursos da maioria da população brasileira se reflete no baixo nível de exigência que as pessoas têm em relação à maneira como vivem, uma vez que estão mais preocupadas em adquirir recursos básicos.

— A imensa maioria da demanda que uma grande construtora recebe vem da favela. E a autoconstrução não tem arquiteto, não tem engenheiro, não tem projetista, não tem nada. Se você melhorasse a renda desse cara e ele passasse a ter um nível de exigência maior, ele poderia ter uma casa mais digna e poderia ser um consumidor. É um problema de renda. No fundo, economia é igual a ecologia.

Descrente em relação ao modo como os investimentos de fundos públicos são geridos no Brasil, Paulo Musa acredita que no setor privado se encontre a solução para que haja novos padrões arquitetônicos. Na visão dele, o planejamento governamental brasileiro vem em geral por vontade política, e não por interesse em subverter a lógica vigente, ao passo que as grandes empresas têm encontrado na arquitetura um caminho para potencializar seus negócios. Ele observa que, embora um projeto sustentável custe em torno de 5% a mais do que um projeto normal, o investimento compensa em longo prazo.

— O seu funcionário vai trabalhar em um ambiente mais propício ao trabalho. Então, ele pode produzir mais. Então, a empresa pode atrair mais talentos. Você cria um ambiente muito mais propício à vida do que simplesmente pensar em caixas de concreto para jogar as pessoas.

O professor da UFRJ avalia que existe uma tendência global em que as grandes empresas, com capacidade de investimento, busquem desenvolver um “habitat” para seus funcionários trabalharem de maneira saudável, como a Google. Ao redor do mundo, a empresa tem inaugurado sedes cuja arquitetura mescla estética e funcionalidade, a fim de criar um ambiente que estimule a criatividade e a convivência entre os funcionários.

— Eu vejo que essa elite, seja qual for no mundo, vai atuar para entender a Humanidade como uma coisa só. Existe uma fatia do mundo que quer os melhores de cada país. É preciso que as grandes cabeças mandem no mundo.

Fernando Betim admite que, inevitavelmente, os setores financeiros vão aprender a lidar com a reinvenção da economia. Todavia, ele ressalta que no Brasil, historicamente, o setor privado é conivente com as atitudes do governo, de modo que uma eventual reinvenção da busca por lucro deve passar por uma economia que não se valha apenas de bens materiais, mas também de um grau de valorização humano. Nesse sentido, o professor analisa que, mais do que pensar em transformações de cima para baixo, é necessária uma mudança comportamental da própria população.

— Falta um olhar coletivo de fiscalização dos nossos legados. A cidade é um espaço público, e é fundamental as pessoas tomarem conta das ruas, questionarem esse espaço, porque é uma maneira delas interferirem sobre um ambiente que precisa ser reorganizado. Acho que essa diversificação vai refletir em uma arquitetura que tem que pensar principalmente nesse bom uso do espaço.

A desigualdade social que acompanhou o processo histórico brasileiro resulta hoje em uma fragmentação espacial, argumenta Betim. De acordo com ele, um desenvolvimento urbano pouco denso não é sustentável, devido à pouca otimização do espaço existente, sobretudo porque as cidades estão estruturadas ainda nesses conceitos de divisão, que constroem hoje uma ideia de separação.

— Falando de sustentabilidade, isso diz respeito ao transporte, circulação, ocupação de áreas degradadas, diminuição dessa característica de espalhamento da cidade, para que ela se concentre mais nos espaços que são permeáveis. E isso não é rápido de se transformar, porque a cidade se modifica muito lentamente.

Paço Imperial, no Rio de Janeiro, um espaço histórico que se mantém vivo pela reinvenção de sua função (Foto: Gabriela Doria) 

Maria Fernanda Lemos defende que, uma vez que as cidades apresentam características diferentes, inclusive no que diz respeito às questões ambientais, as soluções para reformas arquitetônicas dependem de respostas conjunturais que levem em conta localidades específicas. Assim, a professora destaca que os gestores municipais têm papel decisivo na maneira como uma cidade orienta a própria urbanização.

— Não existe uma solução padrão. Então, o apoio tem que vir em escala local, dentro dos municípios. Cada caso tem que ter um bom diagnóstico para tratar de seu cenário específico. A boa notícia é que os investimento que dão conta da redução da desigualdade se refletem em uma mudança de consciência que pode levar a um planejamento sustentável.

Para Betim, compreender as características de cada localidade ajuda a arquitetura a criar sistemas construtivos que sejam mais viáveis de acordo com o que cada espaço tem para oferecer. O professor considera que o reconhecimento da identidade cultural permite que centros urbanos aprendam a articular as diversas realidades.

— É o princípio do acesso a métodos fáceis de serem incorporados, criando cidades que sejam mais inclusivas e que olhem para a conjuntura não sob um aspecto simplesmente de ter um núcleo imobiliário maior, mas de uma maneira que você valorize sua cultura, garanta liberdade para que essa cultura se mantenha viva e ao mesmo tempo faça a cidade funcionar melhor.

Betim acrescenta que, ao considerar o valor dos métodos empregados por pessoas inseridas em suas respectivas culturas locais, abre-se espaço não para uma tecnologia resumida ao passado, mas uma tecnologia que incorpore o conhecimento do passado e o utilize de maneira eficiente conforme a situação.

— Às vezes, é importante garantir que se mantenham simbolicamente alguns aspectos da memória, como o Paço Imperial, que conta a História do Brasil, de muitos séculos de ocupação do país. Em outros lugares, como o próprio centro da cidade, você encontra aterros que abrem espaço para edificações de caráter diferente, de abordagem de uma arquitetura mais avançada tecnologicamente falando.

O Brasil pode realmente aproveitar o potencial que já tem, concorda Musa. Segundo ele, os métodos tradicionais de trabalho são capazes de impulsionar a geração de empregos, de modo que não seja necessário que o país dependa de investimentos em tecnologias que vão além da própria capacidade financeira.

— Por exemplo, eu vejo a construção brasileira, que é basicamente de prédio armado para fazer estrutura, e alguns materiais, como o concreto ou o tijolo de adobe, como altamente sustentáveis. Eu vou industrializar a construção, a construção vai ficar mais sustentável, mais barata, mais rápida, mas eu vou desempregar o pedreiro, o carpinteiro, o cara que fabrica tijolo. E esse impacto, não existe? Se você não der esse tipo de trabalho para o pessoal que não estudou, o que esse cara vai fazer?

Tijolo adobe, um dos mais antigos materiais de construção do mundo, ainda hoje é usado em diversas regiões brasileiras (Foto: flickr.compeoplebyrdiegyrl)

Musa esclarece que, a fim de se constatar objetivamente quão sustentável é um projeto, criaram-se selos de qualidade, como o LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), o qual, no Brasil, é o mais utilizado. Para alcançar esses selos, Musa esclarece que é recomendável, por exemplo, a aquisição de materiais certificados, muitas vezes produzidos em locais específicos. Além disso, o profissional é mais capacitado, com experiência mais longa do que o normal.

— Um arquiteto, quando faz um projeto, não faz sozinho. Ele é quem concebe o projeto e quem coordena o projeto, seja sustentável ou não. Ele aconselha todos esses projetistas a atingirem excelência em seus projetos. Agora, você tem também um consultor de sustentabilidade.

Na visão de Paulo Musa, falta que as pessoas enxerguem um projeto sustentável como algo que permaneça no tempo, ao contrário do padrão consumista da sociedade atual. O arquiteto afirma que a sociedade precisa entender que o meio ambiente é maior de todas as habitações humanas.

— No caso de um prédio, ele só vai ser sustentável se ele cumprir suas funções espaciais, com conforto psicológico, térmico, acústico, todas as condições para criar um habitat para o ser humano. A arquitetura é o nosso habitat. E, quanto mais for sustentável o prédio, mais sustentável será esse habitat.

Sobre a COP21, Maria Fernanda Lemos se diz cética, mas acha louvável que os esforços continuem. A professora julga que o maior desafio em uma conferência dessa magnitude é que os debates cheguem a metas alcançáveis, de acordo com os diversos interesses em jogo.

— Não vejo muita razão para acreditar que essa conferência será diferente das outras. Mas nunca se sabe, porque o mundo muda, e as sucessivas frustrações podem gerar algum incômodo que estimule as pessoas. Ao menos manter a intenção já é alguma coisa. Ajuda a fazer população em geral discutir.

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