Foram águas turbulentas as que levaram Ulysses Guimarães quando o helicóptero em que ele viajava mergulhou no litoral de Angra dos Reis. Naquele dia, o mar calou o homem que permitiu o encontro do Brasil consigo mesmo: desde 12 de outubro de 1992, o país convive com o silêncio de Ulysses. Mesmo assim, um dos principais responsáveis pela conquista da democracia brasileira ainda navega no inconsciente político nacional. Se, em 1992, Ulysses acompanhava o afastamento de Fernando Collor, agora, quando completaria 100 anos, o Brasil volta a passar por momentos conturbados, diante de um novo processo de impeachment e de um Congresso cheio de crises.
Talvez, em meio ao caos do presente, o homem que promulgou a Constituição de 1988 conseguisse organizar tantas vozes perdidas. Pois ele não só calava para ouvir, mas atuava quando sentia que era necessário. Reconhecido como figura consagrada na época de Collor, transformou-se no grande conselheiro do processo de impeachment, e muitos viam nele um oráculo. O jornalista Luiz Gutemberg, autor da biografia Moisés Codinome Ulysses Guimarães, considera que Ulysses continua vivo não como um modelo a ser repetido, mas como alguém que pode inspirar as pessoas de hoje:
– O doutor Ulysses praticava a famosa trilogia de James Joyce para organizar seu comportamento: silêncio, exílio e astúcia. Ulysses inspira com sua história, que é uma coisa muito rica. Quem conhece a história não repete os erros do passado.
A história de Ulysses Silveira Guimarães se confunde com a da própria República. Político profissional por 45 anos, foi eleito 11 vezes deputado – uma como estadual e dez como federal – e só perdeu uma eleição na vida: a de presidente do Brasil. Ferrenho crítico da ditadura, tornou-se um líder natural no processo de redemocratização. Em 1973, auge do Regime Militar, lançou-se como anticandidato e percorreu o país a fim de “denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição”, como declarou no discurso Navegar é preciso. Para Gutemberg, doutor Ulysses era um estrategista e articulador político:
– Ulysses era uma pessoa astuta politicamente. O grande mérito dele, como líder do MDB, foi aproveitar as oportunidades. Os militares, como não tinham orientação ou regra, não seguiam uma linha comum. Eles não queriam ser chamados de ditadura e deixavam brechas.
No caminho para que a soberania popular retornasse ao jogo nacional, talvez o mais importante atalho aberto por Ulysses tenha sido a criação do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Devido às crescentes vitórias eleitorais de políticos oposicionistas, o Ato Institucional Número 2 (AI-2), de 1965, dissolveu os já enfraquecidos partidos existentes. Assim, Ulysses foi obrigado a deixar o Partido Social Democrata (PSD), cuja seção paulista havia sido fundada por ele, em 1947.
Sem justificativas para acusá-lo de subversivo, os militares tentaram cassá-lo por corrupção, mas nada foi comprovado. O AI-2, no entanto, gerou mais uma brecha, uma vez que instituiu um sistema bipartidário, a fim de mascarar a ditadura com o argumento de que havia alguma forma de oposição ao governo.
Diretor de documentários como o premiado Jango e Tancredo – A Travessia, o cineasta Silvio Tendler explica que, em resposta à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido criado pelo Regime, aqueles que não simpatizavam com os militares fizeram um esforço para formar o quanto antes o MDB.
– Era um partido com pouca sustentação, porque poucos deputados tiveram coragem de ir ao MDB. Então, Ulysses é um dos que têm essa coragem. E é nesse momento que ele ganha o papel de protagonista de liderança da oposição - diz Tendler, professor do Departamento de Comunicação Social.
Ao lado de nomes de peso como Tancredo Neves (PSD) e André Franco Montoro (PDC), Ulysses fundou o MDB com o desafio de unir uma oposição heterogênea em prol de um objetivo único. Mesmo assim, a legenda chegou a eleger diversos senadores e deputados. A caravana da anticandidatura promoveu e elegeu os candidatos oposicionistas nas eleições majoritárias para o Senado em 15 estados. No MDB, Ulysses conseguiu a façanha de abrigar desde membros do Partido Comunista até liberais conservadores.
– O MDB era o “partido ônibus”: todo mundo entrava, todo mundo cabia lá. Hoje, nenhum partido é liderado por um sujeito como o Ulysses, com a habilidade, com a astúcia dele. Ele juntava tudo. Esse camarada tinha apoio no MDB da direita à esquerda. Ele convivia com todo mundo - ressalta Gutemberg.
Durante a redemocratização, quando o pluripartidarismo foi admitido novamente, o MDB passou a se chamar PMDB, e as variadas ideologias contidas nele se viram livres para trilhar rumos próprios. Foi o caso do PT, que surgiu no final dos anos 1970, e o PDT, criado em 1979, para abrigar parte do setor trabalhista. Professor Fernando Sá, do Departamento de Comunicação Social, avalia que, nesse momento, fugiu ligeiramente das mãos de Ulysses a articulação do partido construído por ele. Por outro lado, os políticos que permaneceram não encontraram uma ideologia comum, fato que até os dias atuais se reflete no peemedebismo.
– Ulysses tentou administrar um conglomerado de políticos regionais. O que é o PMDB hoje? São 27 PMDBs. Ou seja, como você não tem uma identidade partidária, cada cacique local tem seu poder. Esses PMDBs locais têm uma autonomia muito grande.
O sistema pluripartidário, reestabelecido em 1979, resultou em um número expressivo de legendas. A consequência foi o chamado “presidencialismo de coalizão”, presente até hoje, que obriga o partido no poder a costurar alianças com outros que não necessariamente têm a mesma linha política. Professor Eduardo Raposo, do Departamento de Ciências Sociais, argumenta que, embora essa variedade permita a diversificação dos grupos ideológicos, a articulação se torna mais difícil para o Executivo.
– Para criar base de apoio no Congresso, para suas leis passarem, o governo tem que negociar com uma pluralidade muito grande de partidos. Quando você diminui partidos, talvez você diminua representatividade nacional, mas você melhora a governabilidade – aponta Sá.
Seria difícil imaginar como Ulysses lidaria com a necessidade das coligações caso chegasse à presidência do país. De qualquer modo, quando teve a chance de alcançar tal posição, sequer ficou entre os favoritos. Ulysses viu o seu fracasso nas urnas, quando, em 1989, ficou em sétimo lugar na eleição vencida por Collor - para muitos, uma traição que sofrera pelo próprio partido. O senhor Diretas foi candidato a presidente da República a contragosto dos colegas do PMDB, muitos dos quais acreditavam que o tempo de Ulysses já havia passado. Segundo Gutemberg, o velho político teve de encarar a decepção do baixo apelo popular que seu nome carregava:
– A razão para Ulysses ter sofrido derrota tão expressiva nas eleições de 1989 é uma coisa paradoxal, típica do caráter brasileiro. Para entender a sociedade política do Brasil, as pessoas devem ler Macunaíma, de Mário de Andrade, que retrata o caráter brasileiro. Ou melhor, a ausência de caráter.
Essa não foi a primeira vez que o PMDB deixou Ulysses de lado. Em 1984, foi Tancredo, e não ele, o escolhido para as eleições indiretas. Além do antimilitarismo escancarado do senhor Diretas, delineava-se uma manobra dentro do partido para que Tancredo fosse o candidato. Apesar das declarações de apoio a Ulysses, o jornalista Jorge Bastos Moreno, autor do livro A história de Mora: A saga de Ulysses Guimarães, revela que Tancredo já articulava a própria candidatura. Mas, mesmo traído, Ulysses apoia o político mineiro:
– Tancredo, na verdade, estava se preparando para ser candidato em plena Diretas Já. Ulysses, quando vê que é inevitável a candidatura de Tancredo, assume a campanha do companheiro de partido. Mas, mesmo com uma certa disputa dentro do PMDB, no fundo, os dois se entendiam muito bem. Doutor Ulysses costumava falar que, em política, até a briga é combinada.
As votações indiretas frustraram aqueles que torciam pela aprovação da Emenda Dante de Oliveira, rejeitada a despeito da mobilização nacional e dos esforços de Ulysses. O movimento das Diretas Já foi resultado da insatisfação popular que surgiu no início dos anos 1980. À beira de um colapso financeiro que desgastava o sistema, os militares não viram alternativa senão iniciar uma redemocratização “lenta, gradual e segura”, o que abriu espaço para o povo ocupar as ruas. Fernando Sá esclarece que, apesar de nunca ter se notabilizado como um líder de massas, a credibilidade acumulada ao longo dos anos de chumbo levou Ulysses a encabeçar o movimento, o que lhe rendeu o apelido de senhor Diretas:
– Ulysses nunca foi um político de palanque. Aliás, as críticas que faziam a ele em São Paulo eram pela pouca ligação com suas bases eleitorais. Ele fazia a grande política de Brasília, com a Constituinte, as Diretas, essas coisas.
Ulysses ainda sofreria um último golpe do partido que presidiu por 20 anos: em 1991, é defenestrado da presidência do PMDB por Orestes Quércia, à época governador do Estado de São Paulo. De acordo com Moreno, a derrota é consequência da imposição da própria candidatura a presidente da República, em 1989. Segundo o jornalista, embora Quércia não quisesse disputar o cargo de chefe de Estado, ele tinha a intenção de indicar outra pessoa. O então governador era quem mais tinha recursos financeiros para bancar um eventual candidato.
– Quércia ficou com ele, financiou a campanha, mas para cumprir um dever partidário. E, depois que o Ulysses teve esse desempenho fraquíssimo, as pessoas que eram ligadas a ele se deslocaram e impuseram a campanha do Quércia à presidência do partido. Aquilo foi um choque para Ulysses. Ele foi abandonado pelo partido com requintes que eu considero de crueldade - afirma Moreno.
Entretanto, o impeachment de Collor devolveu Ulysses ao centro do poder. O senhor Diretas, senhor Constituinte e senhor Impeachment não precisava mais de cargos para manter o comando. Uma liderança que, para Raposo, está em falta nos dias de hoje, embora as instituições tenham de fato se fortalecido após a redemocratização. O professor pondera que, quando as instituições estão envelhecidas, como era o caso da passagem do regime autoritário para o democrático, a autoridade pessoal dos homens públicos adquire um significado fundamental.
– Agora, os homens são fracos e as instituições são fortes. Mas, naquele momento, as instituições estavam fracas e essas lideranças tiveram uma importância extraordinária. E o Ulysses Guimarães foi uma dessas figuras, que fazem falta no Brasil em que vivemos - conclui Raposo.