Registros de uma marginalização
16/12/2016 17:45
Julia Novaes

Professores de História organizam acervo digital de manifestações culturais swahili no norte de Moçambique para auxiliar o papel dos professores de incluir povos marginalizados nas narrativas históricas ensinadas nas escolas. 

Dança Tufo, manifestação cultural swahili em Moçambique. Foto: Acervo Digital da História e Cultura Swahili no Norte de Moçambique

Único projeto da área de história entre os 15 selecionados no edital ProÁfrica do CNPq, de 2014, o Acervo Digital da História e Cultura Swahili do Norte de Moçambique busca auxiliar professores brasileiros e moçambicanos na construção de narrativas históricas menos centralizadas na Europa. Desenvolvido pelo Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (Nirema) e o Laboratório Interdisciplinar de Memória e Patrimônio Cultural (Leehpac), o programa tem o objetivo de reunir registros dos povos swahili no país africano e construir uma plataforma on-line de amplo acesso a escolas, pesquisadores e qualquer um que se interesse pelo assunto.

A iniciativa, que, a princípio, terá duração de dois anos, foi planejada pelas professoras do Departamento de História Iamara da Silva Vianna e Juçara da Silva Barbosa de Mello, que lecionam a cadeira de Ensino de História, e Regiane Augusto de Mattos, de História da África, em parceria com Alberto Calbe Jaime e Chapane Mutiua, pesquisadores da Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, capital de Moçambique.

O começo foi em maio de 2016, quando foi organizado na PUC-Rio um seminário com os pesquisadores moçambicanos, que vieram ao Brasil para trocar experiências de pesquisa. Segundo Regiane, na segunda fase do projeto, as professoras passaram o mês de julho no norte de Moçambique para coletar material – como fotografias, vídeos, entrevistas, cópias de documentos históricos mantidos pelas famílias. Depois da sistematização do material bruto, tudo estará disponível em um site.

– Fizemos também um seminário na Universidade Lúrio (Nampula, norte de Moçambique) com professores e alunos da universidade e de escolas da região. Também estavam lá lideranças locais, autoridades da prefeitura e o diretor do museu histórico.

Os swahilis são um grupo étnico-cultural que surgiu no norte de Moçambique durante a expansão muçulmana para a África, com a entrada, no século IX, de árabes e persas na região. Regiane explicou que, gradualmente, essa comunidade foi deixada na base da hierarquia das culturas no país por algumas questões: devido ao fato de ela ter sido comerciante de escravos, às imposições da colonização portuguesa e, na descolonização, quando houve formação de uma identidade nacional moçambicana. Juçara destaca que isso se reflete no ensino de história nas escolas do governo, feito de uma perspectiva eurocêntrica.

– Uma jovem nos disse que se questionava por que não se falava da cultura dela na escola. É como aqui. As crianças aprendem a cultura da família em casa, mas se isso não é passado na escola, de forma meio automática, ela assimila que sua história é menos importante.

De acordo com Iamara, mesmo marginalizados, esses grupos ainda vivenciam fortemente as manifestações culturais e saberes tradicionais, e existe a preocupação em passar esse conhecimento para as novas gerações. A língua materna, por exemplo, ainda tem muita força, apesar de o governo moçambicano impor o estudo do português.

– Em casa, as crianças falam o narrara (variação do swahili). Só aprendem o português quando vão para a escola. Nas madraças, escolas muçulmanas, aprendem o árabe. Mas quando saem da aula, voltam a falar o narrara.

Reunião das mulheres da confraria muçulmana Shadhiliyya. Foto: Acervo Digital da História e Cultura Swahili do Norte de Moçambique

Segundo Juçara, o ensino da história também poderia aumentar a autoestima dos swahili e fazê-los desenvolver uma reflexão crítica sobre como a cultura é vivenciada e vista na sociedade. Nesse sentido, um outro objetivo do Acervo Digital é ajudar a problematizar a transformação dessas manifestações em patrimônios culturais, o que, para ela, pode revesti-las com um ar de excentricidade.

– Não sei até que ponto o reconhecimento como patrimônio foi algo positivo para a população. Isso significou uma inclusão ou só serviu para mostrar aos turistas?

No âmbito legal, no Brasil, o ensino da disciplina e cultura afro-brasileira nos colégios e universidades se tornou obrigatório em 2003, com a promulgação da Lei Federal 10.639 – apesar de a aplicação ainda encontrar obstáculos. Para Iamara, a situação entre os dois países é próxima, e o projeto, ao buscar a reflexão do papel do ensino de história africana para reverter a marginalização do povo swahili oferece oportunidade ao Brasil de aperfeiçoar o que já foi feito.

– Há muito de Brasil em Moçambique, e muito de Moçambique no Brasil.

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