Além da Catequese
05/03/2015 00:00
Michele Feritas / Foto: Pedro Myguel Vieira

Mais que evangelizar, o auxílio dos jesuítas na colonização do Rio de Janeiro fomentou a economia, as artes e o ensino.

No saguão do Colégio Santo inácio, em Botafogo, estão expostas imagens deitas para a primeira igreja do Rio de Janeiro

Entre os atores principais da fundação da cidade do Rio de Janeiro estão os integrantes da Companhia de Jesus, responsáveis por evangelizar os índios. Além da catequese, os jesuítas desenvolveram outras atividades: administravam fazendas, eram professo1res, artesãos que esculpiam as imagens usadas nas capelas, escreviam gramáticas utilizadas nas aulas e ministravam as missas e demais atividades religiosas.

A produção das fazendas jesuíticas aquecia a economia interna da cidade, que se formou em torno do complexo jesuítico construído no Morro do Castelo. O complexo contava com a Igreja de São Sebastião, que foi a primeira Sé, e o Real Colégio de Jesus do Rio de Janeiro.

Pouco tempo depois de a Companhia de Jesus ser fundada pelo espanhol Ignácio de Loyola em 1534 e reconhecida pelo Papa Paulo III em 1540, um primeiro grupo de missionários jesuítas partiu para o que era conhecida como a América Portuguesa. Quando padre Manuel da Nóbrega desembarcou em Salvador, em 1549, na mesma nau de Tomé de Souza, que se tornou o primeiro governador-geral, a Coroa Portuguesa vivia um momento de grande preocupação e organização para administrar as possessões americanas.

A chegada da Companhia de Jesus com o primeiro governador–geral demonstrava a importância do papel que eles poderiam cumprir naquela nova realidade. Durante o regimento de Tomé de Souza, a Igreja Católica, por meio desses religiosos, ficou responsável por cuidar da catequização dos índios.

Quando o grupo se fixou em Salvador, os religiosos tiveram noção do que era a colônia como um todo. Mesmo sem pisar em solo carioca, padre Nóbrega foi informado da existência da Capitania de São Vicente e de outros lugares distantes já habitados. A professora Eunícia Fernandes, do Departamento de História da PUC–Rio, conta que o jesuíta chegou a ter aspirações de conhecer esses locais e, especialmente, os índios que ali viviam.

— Logo que chega e tem a determinação de cuidar dos indígenas, o padre Nóbrega ouve dizer que os índios Carijós são os mais afeitos a um processo de catequese, e esses índios eram encontrados exatamente na região mais ao Sul, conhecida como capitania de São Vicente. Ela ficava em um espaço difuso que poderia compreender um pouco de Minas Gerais, do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Documentos e registros da época, em particular as cartas datadas de 1560 que foram trocadas entre os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, são os que, de fato, fornecem notícias mais precisas da permanência dos jesuítas no Rio de Janeiro.

A presença dos religiosos já estava vinculada e articulada a um movimento conflituoso entre indígenas, os Tupiniquins e os Tamoios, e entre europeus, os portugueses e os franceses, que invadiram o litoral carioca em 1555 e fundaram a França Antártica.

Os padres da Companhia de Jesus estavam no meio de uma tensão e, inclusive, assumiram em vários momentos um papel de mediadores entre os indígenas e entre os europeus.

— Eles chegam a essa localidade, que viria a se tornar o Rio de Janeiro, entre o fim da década de 1550 e o início da década de 1560. Considerando que a fundação da cidade será só em 1565, podemos concluir que os jesuítas estão ali antes mesmo da fundação da cidade. Bem próximos da configuração do que constitui sua formação — comenta a professora.

As três primeiras viagens de jesuítas à América Portuguesa estão registradas nos catálogos que eles elaboravam ao partir para grandes missões em diversos continentes. Em 1549, com o padre Manuel da Nóbrega havia seis representantes da companhia, entre eles padres, estudantes e irmãos. Em 1550, chegaram mais quatro e, em 1553, outros sete, entre eles José de Anchieta. Depois disso, não existe um registro muito preciso, pois parte dos documentos do século XVI se perdeu.

— Nesse momento inicial da década de 1560, ao qual nos reportamos à formação da cidade do Rio de Janeiro, o número de jesuítas não era maior do que 20 pessoas. Eles estavam distribuídos em vários pontos da ocupação colonial. Por isso, é preciso pensar com cuidado a forma de atuação deles em termos de intervenção e a capacidade de infl uência ou de articulação política, porque, fi sicamente, eles eram muito poucos.

Alguns ficavam dentro dos aldeamentos, formados por eles. Outros viviam mais próximos das cidades, com a função de erguer os colégios, que eram os locais fundamentais de articulação estratégica, e alguns trabalhavam na formação das fazendas jesuíticas. Eles acabaram se desdobrando entre os espaços, as ações da catequese e a administração do território, e a religiosidade dos colonos.

Os aldeamentos e as fazendas foram criados para facilitar o processo de conversão dos indígenas e de incorporação dos paradigmas religiosos. Além das habitações, existiam uma capela e uma escola, e os índios de diferentes origens tinham uma rotina de trabalho, estudo e práticas religiosas.

Durante os dois primeiros séculos, os jesuítas estabeleceram diversas propriedades rurais nas áreas periféricas e na região do entorno do Rio de Janeiro. A maioria foi criada por meio do regime jurídico de Sesmarias, estabelecido pela Coroa, que permitia a doação de terras a quem se comprometesse a cultivá-las. Nelas, eles obtinham os itens necessários às atividades jesuíticas, como cerâmica e madeira para a cozinha do colégio, e alimentos, o que aquecia a economia da época. As principais foram a Sesmaria de Iguaçu, criada em 1565, na Região do Engenho Novo; a Fazenda de Macacu ou Papucaia, de 1571, e a Fazenda de Santa Cruz, de 1596.

Na época da consolidação da cidade, o representante jesuíta do Rio de Janeiro, padre Gonçalo, fundou a Casa Jesuítica e a primeira igreja, dedicada a São Sebastião, que seria a primeira Sé do Rio de Janeiro. Isso reforçou a importância e a influência da Companhia de Jesus naquele momento. Segundo o diretor do Centro Loyola de Fé e Cultura, padre José Maria Fernandes, coautor de um livro sobre a arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial, a migração para a zona central, logo após a fundação da cidade, foi uma questão estratégia de defesa contra invasões inimigas.

— O padre José de Anchieta tem uma participação nessa nova fundação do Rio de Janeiro. Foi ele que, quando aqui esteve, deu a sugestão de sair daquela região vulnerável e trazer a cidade para o fundo da Baía de Guanabara, por uma questão de segurança. Naquela época, ainda havia o risco de invasões de piratas, feitas principalmente por franceses.

Em meados do século XVII, a cidade já estava instalada no entorno do Morro do Castelo, onde foram construídos a igreja dos jesuítas, a primeira Sé dedicada a São Sebastião, e o Real Colégio de Jesus, que deu início ao projeto educacional, mas foi interrompido em 1759 quando os jesuítas foram expulsos de todos os territórios portugueses.

Segundo a professora Eunícia Fernandes, o uso da língua geral, uma mistura de tupi com português, bastante difundida entre os missionários jesuítas que precisavam lidar com os indígenas, passou a ser um problema para Portugal.

— Na nova configuração de Estado, começam a surgir várias críticas à Igreja, de uma maneira geral, e aos jesuítas, de uma maneira específica. Acreditava–se que os jesuítas eram os grandes conspiradores contra a figura do rei. Um grupo que era e manteve–se  como exemplar na capacidade intelectual, formativa e de organização política, era visto como uma ameaça.

Como mantinham os colégios e exerciam grande influência sobre diversos setores da sociedade, eles eram um grupo de religiosos que passou a ter um capital, não apenas financeiro, mas sobretudo um capital humano altamente qualificado e com uma rede de relações políticas e de famílias importantes. Assim, eles eram constantemente acusados de possíveis motins contra o rei ou contra o governador. O fato de eles preservarem a mão de obra indígena também se tornou um impasse para os colonos.

Por outro lado, em toda a Europa uma série de motivos para a expulsão da Companhia de Jesus surgiu em vários países, e o Papado foi pressionado por diferentes coroas para a dissolução da Companhia. A ordem só foi redimida e restaurada pelo Papado em 1814, coincidindo com o fim das guerras napoleônicas e a retomada das antigas configurações das monarquias.

— Mesmo com a supressão, eles não perdem a habilidade política na possibilidade de voltar a se organizar como ordem — ressalta Eunícia.

A Companhia de Jesus retornou ao Brasil entre 1842 e 1849, sem, no entanto, conseguir retomar o prédio erguido pela ordem no Morro do Castelo, que seria destruído no início da década de 1920, com a derrubada do morro.

De 1900 a 1902, na mesma casa onde viviam os padres, na Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, foi aberta uma pequena escola primária, que também preparava meninos para a primeira comunhão. Em julho de 1903, os padres se mudaram para um casarão na Rua São Clemente 132, em Botafogo, onde começou a funcionar o Externato Santo Inácio, com apenas nove alunos e um professor. Em 1909, havia 267 jovens matriculados. No fim daquele ano, outras alas foram erguidas em torno do pátio, iniciando a construção do principal prédio do colégio. O imóvel foi tombado em 1990, por causa do seu valor cultural e arquitetônico. O tombamento incluiu a casa vizinha, comprada da família Joppert, onde funcionou a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC–Rio) entre 1940 e 1955.

A Ladeira da Misericórdia é o que hoje resda do Morro do Castelo,a rrastado em em 1922. Lá ficanvam construções jesuítas

Curiosidades de uma época

O primeiro colégio: O primeiro Colégio do Rio foi construído no Morro do Castelo. Ele fazia parte do Complexo Jesuítico que contava ainda com uma igreja e com a Santa Casa da Misericórdia, a única construção que permaneceu após a reforma urbana de Pereira Passos.

Padre José de Anchieta: Apesar de não ter se fixado no Rio, Anchieta teve um papel importante na fundação da cidade. Após participar das batalhas contra os franceses e os Índios Tamoios, ele sugeriu que a cidade se chamasse São Sebastião. Ao voltar para Salvador, informou a Mem de Sá, o Governador-Geral do Brasil, sobre a situação de fragilidade da cidade recém-fundada. Como forma de acabar com os ataques, padre Anchieta propôs transferir a ocupação para o fundo da Baia de Guanabara. Em 1567, Mem de Sá mudou a cidade para o Morro de São Januário, que seria chamado Morro do Castelo, de onde se tinha uma visão privilegiada para a entrada da baía.

Ladeira da Misericórdia: A Ladeira da Misericórdia, que existe até hoje ao lado da Santa Casa da Misericórdia, no Centro, é o que sobrou da rua que dava acesso ao Colégio dos Jesuítas, no alto do Morro do Castelo. Altares: A capela de Nossa Senhora de Bonsucesso, na Santa Casa de Misericórdia, abriga os altares originais da Igreja dos Jesuítas.

Colégio Santo Inácio: O Colégio Santo Inácio, construído no início do século XX, em Botafogo, abriga imagens feitas para a primeira igreja da cidade. O crucifixo e as imagens de São João e de Nossa Senhora estão no saguão do colégio. Feitos em Portugal, eles só chegaram ao Brasil quando a Companhia já havia sido expulsa.

Ponte dos Jesuítas: A Ponte dos Jesuítas, em Santa Cruz, foi um sistema de comportas para evitar inundações naquela região. Elas eram abertas ou fechadas para controlar o fluxo de água da chuva e das marés. Quando a chuva era demais, elas eram abertas e a água escoava para a Baia de Sepetiba, quando a maré subia, elas eram fechadas.

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