À espera de um reconhecimento
04/10/2013 11:13
Hugo Pernet/Fotos: Gabriela Doria

Descendentes de escravos aguardam titulação de terrenos

A feira organizada pelo Panorama Afro, no Edifício da Amizade, reuniu objetos e comidas típicos da África

Dois milhões de pessoas, 127 mil famílias, 2.278 comunidades distribuídas em 5% do território nacional. Nesse cenário, descendentes de escravos aguardam o Estado reconhecer a posse de terras quilombolas. A legislação brasileira tem dispositivos constitucionais que garantem o título de propriedade desses territórios, alvo da especulação imobiliária e de fazendeiros e grileiros. No Rio de Janeiro, apenas duas comunidades – Campinho da Independência, em Paraty, e Preto Forro, em Cabo Frio – foram registradas, em cartório, como quilombo. As questões que envolvem a regularização fundiária de quilombos foram tema de dois debates promovidos, nos dias 11 e 12 de setembro, pelos departamentos de Serviço Social e de Direito.

A professora Mariana Trotta, do Departamento de Direito, ressaltou que as comu nidades quilombolas não são áreas de negros fugidos, mas um espaço de um grupo social que tem identidade com o território e com a cultura negra. Mariana afirmou que é uma obrigação, em especial da autarquia federal do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) titular essas terras. A Constituição Federal estabelece no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias o direito das terras quilombolas de receber o título de propriedade.

– Existe uma série de conflitos envolvendo os quilombolas hoje no Brasil. Há uma legislação que garante a titulação, mas o Estado efetivamente anda a passos morosos. Isso traz problemas aos grupos, porque eles não têm segurança da posse nem reconhecimento definitivo da propriedade sobre o território. Além de não terem um investimento do governo para reduzir as desigualdades socioeconômicas.

Daniel Sarmento, procurador da República e professor de Direito Constitucional da Uerj, destacou que a sociedade tem dificuldade de aceitar artigos da Constituição que defendam os descendentes de escravos. Para ele, a falta de conhecimento também atrapalha a nomeação de propriedades quilombolas.

– Não consigo entender por que o tema dos quilombos e dos povos indígenas não esteve nas manifestações. A questão de povos tradicionais e terras é muito importante. O governo federal não compra a briga. Por isso, nossa mobilização é importante. Temos que explorar a capacidade humana de nos solidarizarmos, de comprarmos a briga do outro – concluiu.

De acordo com Sarmento, é importante reconhecer o direito das comunidades quilombolas. O professor ressaltou que as gerações atuais e futuras do país perdem com essa confusão judicial.

– Se as coisas continuarem assim, vamos perder acessos a elementos riquíssimos da cultura brasileira. Não é só perder a terra, mas é perder o direito de saber quem você é.

Integrante da ONG Converdgência, Alexandre Nascimento explicou que o processo de titulação de terras, antes de chegar às competências do Incra, passa por dois eixos de reconhecimento: o antropológico da terra e o do espaço como comunidade quilombola, conjunto à Fundação Palmares.

– O que poderia agilizar o processo de titulação é o Incra ter uma posição mais séria em relação às comunidades quilombolas. O órgão trava o processo, porque ele trabalha com a regularização fundiária no Brasil de forma nacional e para todos os povos. Então, os quilombolas que, de fato, estão nos lugares de poder imobiliários muito ricos, devido aos bens materiais e naturais, sofrem pressões do Estado para que não tenham suas terras tituladas.

Com o objetivo de promover a manutenção das tradições negras e o fortalecimento da identidade étnica,o Panorama Afro organizou uma feira, com objetos e comidas típicas.

                                           O testemunho de fatos históricos
                             Quilombola José Geminiano presenciou demolição de casas

José Geminiano sobrevive da pecuária em propriedade quilombola


Deparado com um jipe, continuou a pedalar. Os sacos de leite, amarrados à bicicleta não o dificultavam trilhar as ruas de barro. Em 40 minutos, chegaria à Universidade de São Mateus, no interior do Espírito Santo, e voltaria no mesmo tempo para descobrir o que aqueles homens vindos da cidade dentro do automóvel especulavam em um terreno que já fora habitado por escravos foragidos. Seu José Geminiano – conhecido como Zé do Leite –, então com 28 anos, ficou atônito com a notícia: interessados em plantar cana-de-açúcar, os homens desejavam a posse das terras da comunidade São Jorge.

O episódio ocorreu em 1980, mas o terreno ainda é fértil para estrangeiros instalarem os tratores em “terra de ninguém” – Seu Zé já presenciou a demolição de casas, sem consentimento do proprietário –, principalmente com a crescente especulação imobiliária. Em conflito com interesses de fazendeiros e grileiros, 32 famílias, remanescentes de escravos, aguardam o Incra titular as terras de São Jorge como comunidade quilombola.

Casado e pai de três filhos, Zé do Leite, de 61 anos, sustenta a família com dinheiro da pecuária. As 20 cabeças de gado fornecem leite necessário para arrecadar R$ 400 por mês. Sem habilitação de motorista, o descendente de escravo pedala uma bicicleta para entregar o alimento em uma universidade e em casas de São Mateus.

Com acesso à internet e à linha telefônica, Zé do Leite vive na penúria. Em São Jorge, o saneamento básico é precário.

Edição 274

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