Nascido no Morro da Mangueira, o jovem músico Vitor Art, 29 anos, é um artista que transita entre a tradição e a modernidade. Assumiu o posto de mestre de bateria da tradicional escola de samba Estação Primeira de Mangueira em 2014. Hoje, a agenda de Vitor combina os ensaios para o desfile da escola na Marquês de Sapucaí, na segunda-feira 27 de fevereiro, e os compromissos do Funk Samba Club, projeto musical que criou com o amigo e cantor de soul Thiago Thomé, e mistura funk, pagode 90, hip hop, música eletrônica, sertanejo e samba-enredo. A dupla está envolvida na gravação do clipe Festa de passista, sobre a discriminação que mulheres sofrem nos carnavais, e deve ser lançado antes de fevereiro pelo canal Multishow: “As pessoas hoje não ouvem mais música se não tiver clipe”.
Vitor gosta de se denominar músico: é cantor, compositor, ritmista e percussionista. Com 18 anos entrou no Instituto Villa-Lobos para estudar canto erudito, mas acabou se voltando para percussão: “Durante o curso, estava sempre metido nas aulas dos outros”.
Em casa, Vitor ouve Chico Buarque, Cartola e Nelson Cavaquinho, e presta atenção a tudo que é música, desde as canções da dupla de palhaços Patati e Patatá que põe para a filha, Nina, de 2 anos escutar, até canções gospel, apesar de não seguir nenhuma religião – “as músicas do cantor cristão Leonardo Gonçalves são viscerais”, diz. No carro, quando dirige, só escuta rap: Racionais, Emicida e Criolo estão entre os mais tocados. Nas ruas e em casa está mergulhado no universo do funk. A irmã, que foi rainha da bateria da Mangueira em 2002, é apaixonada por Claudinho e Buchecha. Vitor já trabalhou com os cantores de funk Perla e MC Sapão, e no Funk‘n’Lata, grupo que mistura instrumentos das escolas de samba com funk americano.
– Acham que no Morro da Mangueira a gente só escuta samba. É preciso se permitir a ter influências. É preciso ter ouvido para as coisas. Não existe música ruim. Toda música transmite uma mensagem para alguém. É importante estar atento a isso – afirma.
O talento para a escuta ele atribui à mãe. Em casa, o som sempre estava ligado. Amante de Elis Regina, Tom Jobim e Maria Bethania, ela vivia falando para o filho: “Vitor, presta atenção nessa música, presta atenção nessa letra”. O álbum dos domingos era um acústico do grupo de pagode Art Popular. Solange é cozinheira e canta no coral da Comlurb, empresa onde trabalhou. Sempre levava Vitor aos ensaios do coral. Mas não aceitou quando o filho disse que queria ser músico; preferia que seguisse uma carreira com um “futuro mais certo”, tipo advocacia ou engenharia. Mesmo com a resistência da mãe, Vitor persistiu.
Ele conta que às vezes escuta coisas que ninguém escuta. Certa vez, andando de carro na chuva, começou a prestar atenção ao barulho que o para-brisa fazia. Parou o carro e improvisou uma música com o amigo, que estava no carona.
– Em um momento mais sensível da minha vida, percebi que meu cachorro latia todos os dias no mesmo horário. O latido dele tinha uma frequência e um ritmo. Peguei aquilo e transformei em uma bossa dentro da bateria. As pessoas me perguntavam: “De onde você tirou esse som?”, e eu dizia que era segredo – brinca.
Vitor começou a desfilar na Sapucaí aos 6 anos, pela Mangueira do Amanhã, escola de samba mirim fundada pela cantora Alcione e um dos projetos que compõem o Programa Social da Mangueira. Aos 8, já desfilava na “Mangueira Mãe”.
Na entrada da quadra da escola, um banner estampa trechos de músicas de grandes cânones do samba. Nele está a letra de Sala de Recepção, de Cartola: “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Vitor responde:
– A música não tem limite, nem profissionalmente, nem socialmente. Eu não imaginava o alcance social que um mestre de bateria poderia ter. Eu consigo interferir dentro da casa de uma pessoa, resolver problemas familiares. Tem pais que vêm pedir ajuda para gente, e conseguimos tirar meninos da boca de fumo. A música cria grandes possibilidades. Essa é a maior realização que eu tenho dentro da bateria: o resgate de jovens como cidadãos. A música me pegou pela mão e não me deixou ir para o caminho errado. Perdi vários amigos para o tráfico, alguns muitos talentosos. Saía de casa e tinha alguém segurando um fuzil na porta, tinha o trafico acontecendo o tempo todo lá perto.
Certa vez, assistindo a um DVD de um show da Ivete Sangalo, Vitor viu que um dos diretores era engenheiro de produção. Procurou saber mais sobre a profissão e, aos 20 anos, conseguiu uma bolsa na UniverCidade para fazer o curso. Os amigos não entediam como a engenharia poderia ajudar em sua carreira musical.
– O carnaval é um planejamento eterno, é uma grande engenharia, tem prazo e preço. Os cinco anos de faculdade me trouxeram até aqui. Ajudaram a montar a minha equipe. Tento sempre trazer essa influência para o samba e para a escola.
A bateria ensaia todas as terças, quintas e sábados. Vitor explica que o samba-enredo estabelece o tom do desfile, e o papel da bateria é responder a isso.
Em 2015, o desfile foi prejudicado pela chuva, e a Mangueira ficou na 8ª posição. No ano seguinte, a escola foi a vencedora. “Depois da tempestade vem a bonança”, diz, sorrindo. Para 2017, Vitor conta que 60% do trabalho já foi realizado. “O carnaval é um concurso. Mas colocar o bloco na rua já é vencer”.
Para pesquisadores, gênero "não anda mais sozinho"
A música Pelo telefone, cuja gravação foi lançada ao público em 20 de janeiro de 1917, como preparação para o carnaval daquele ano, marca o centenário do samba. Composta por Ernesto dos Santos, o Donga, e por Mauro de Almeida, em uma roda de samba no famoso terreiro de candomblé da casa da Tia Ciata, foi registrada em 27 de novembro de 1916. Por isso, há controvérsias quanto à data do centenário.
– O lançamento foi a primeira chamada coletiva de reconhecimento do samba como gênero musical. E obteve sucesso; foi cantada e ouvida – defende o pesquisador de Música Popular Brasileira Ricardo Cravo Albin.
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A capa nº 6 da revista Realidade, de novembro de 1966, estampava os rostos de grandes nomes da música brasileira. Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Magro (do conjunto vocal MPB4), Toquinho, Rubinho (baterista do Zimbo Trio), Jair Rodrigues, Nara Leão e Paulinho da Viola eram chamados de “os novos donos do samba”. Na época, o gênero era o mais importante e popular do Brasil. Cinquenta anos depois, comemora-se o centenário do samba, e o cenário é um pouco diferente.
Segundo o historiador Paulo Cesar de Araújo, professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, a capa da revista Realidade marcou uma virada na história da música brasileira:
– Em 1967 essa capa não seria mais possível. O samba perdia a primazia com a chegada da tropicália, da jovem guarda e com a consolidação da MPB. A MPB é aquilo que não é samba, não é bossa nova, não é rock, não é bolero; é uma mistura de tudo, e é uma música de classe média.
Para Araújo, o samba continua sendo símbolo da identidade nacional, mas na prática perde esse domínio de execução, de vendagem, e de lançamento de artistas:
– Em 1966, quando surgiam novos artistas, eles eram automaticamente identificados ao samba. A maior parte das gravações era de samba. O samba dava as cartas, fosse qual fosse sua vertente. Hoje, dificilmente um jovem cantor começa a carreira no samba. Ele vai apostar no funk, no sertanejo, na MPB.
O historiador e pesquisador musical diz que o samba, hoje, precisa de espaço geográfico, antes garantido nas rádios e gravadoras:
– Houve uma redescoberta do samba nos anos 1990, com a revitalização da Lapa e do Circo Voador e outras casas noturnas. Surgiram nomes como Teresa Cristina, Diogo Nogueira, Roberta Sá e o grupo musical Casuarina, que buscava recuperar o samba tradicional. Hoje, o samba se projeta em determinados espaços de resistência.
Araújo ressalta, todavia, que o centenário é a comemoração do samba como gênero de sucesso popular:
– O primeiro samba de sucesso hoje não seria considerado um samba autêntico pela crítica. Pelo telefone é um samba maxixado, com influência europeia. O ritmo é acelerado, tem piano e instrumentos de sopro. Os críticos gostam do samba de raiz. Aquele que está identificado ao Rio antigo, ao Estácio, ao samba de Ismael silva, de Cartola e de Noel (Rosa), todos aqueles bambas da era de ouro (década de 30).
Gênero oficializado em função da celebração do carnaval, o samba remete normalmente aos desfiles das escolas de samba. O samba de quadra e os desfiles também tiveram, por sua vez, suas estruturas e tradições alteradas no decorrer dos anos.
Para Cravo Albin, a grande guinada que o samba sofreu foi com o surgimento do samba-enredo para os desfiles de escolas de samba, em que a melodia antes orgânica e espontânea se tornou, a seu ver, encomendada, limitada e rígida.
– Desfiles de escolas de samba são marca da evolução natural de estratégia de comportamento musical e social da comunidade. Nos anos 30 tínhamos marchinhas de carnaval, que caem nos anos 1970 e têm seu espaço roubado por muitas e vulgares canções. E nos anos 80 as escolas de samba começam com sambas encomendados. O que antes era espontâneo passa a ser marcado pela necessidade de seguir um enredo, e essa foi uma mudança radical, uma fixação decisiva de mudança de comportamento.
O crítico musical Tárik de Souza diagnostica que “o gigantismo” do espetáculo do carnaval, movimentado pela indústria turística, se por um lado deturpou, por outro sofisticou o desfile das escolas de samba. Essa sofisticação se dá desde as composições dos sambas enredo até o momento do desfile. Tárik aponta ainda que o samba de quadra, a principal oportunidade para os compositores de mostrarem suas novidades para a escola, praticamente desapareceu.
Sobre a escolha dos sambas-enredos pelas escolas, o jornalista especializado Lula Branco Martins, professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, aponta a atual preferência das agremiações por escritórios de compositores profissionais:
– Nessas organizações são oito, dez pessoas que compõem o samba e assinam como se fosse só um, no lugar de compositores muito bacanas que não têm dinheiro para levar torcida, por exemplo. Os escritórios não têm nada a ver com raiz, fazem sambas encomendados, de acordo com as demandas do carnavalesco e de sua escola. Muitas vezes a escola fica dominada por ditos escritórios durante anos e anos a fio, sem que o compositor sequer apareça lá. Os escritórios têm recursos, pagam e levam torcidas, pagam a cerveja e levam a bandeira. Os presidentes das escolas se encantam e acreditam que aquele samba é o melhor, quando na verdade é só mais bem produzido.
Quanto ao evento do desfile em si, Lula avalia que houve uma “superprofissionalização”, com foco no marketing e no lucro da escola. Musicalmente, afirma que a estrutura do samba-enredo também foi alterada, tanto para satisfazer a jurados e requisitos da competição como às emissoras de televisão responsáveis pela transmissão. Nos desfiles da escola de samba de 2017, por exemplo, as regras serão outras – todas as escolas devem ter encerrado seus desfiles por volta de 4h30, 5h da manhã, para fins de transmissão, edição e reprise. Nos anos anteriores, o espetáculo terminava por volta das 6h, 7h. “Os sambas serão mais acelerados, mais rápidos, para que a escola possa passar com mais calma e não correr o risco de extrapolar o tempo”, explica Lula.
Cineasta e documentarista, Emílio Domingos ressalta a espetacularização do carnaval como mercadoria turística e o crescimento exacerbado das escolas de samba, desde o número de participantes até a abundância de adereços e acrobacias e na seriedade quanto à competição. Dentro desses números, Emílio inclui a chegada da classe média e da classe média alta às quadra das escolas e ao Sambódromo, na Marquês de Sapucaí: “O samba rompeu barreiras entre as classes sociais”.
Tárik, no entanto, pondera que as baterias, passistas, porta-bandeiras, mestres-salas e principalmente as baianas “mantêm acesa a tradição do samba”.
O carnaval de rua
Deixando de lado o desfile, Cravo Albin pontua a força do carnaval de rua, “fenômeno emergente que deve ser observado”, com a recente multiplicação de blocos, números recordes de frequentadores e agendas, que não se limitam aos meses de fevereiro e março. O pesquisador comenta ainda que há menos lugar para as marchinhas tradicionais, como Mamãe, eu quero, que normalmente vêm acompanhadas por canções de outros gêneros, como rap, funk, hip hop e até de música internacional, “qualquer uma que se possa dançar”.
Para Domingos, o samba ganhou maior autonomia para gravar registar e divulgar, graças a uma revolução de instrumentos elétricos nos anos 70, que culminou na aceleração do ritmo dos sambas, com mais batidas por minuto:
– Anteriormente, nos anos 60, tínhamos sambas mais lentos. Após a invenção de instrumentos elétricos e técnicas de mixagem, no começo dos anos 80, essa melodia, que era mais lenta, começou a acelerar.
Ainda dentro dessa atualização, Emílio aponta ainda para a gradual perda de grandes nomes que o samba da geração antiga perde, como Paulinho da Viola e membros das velhas guardas de escolas de samba tradicionais.
Outro fenômeno que o documentarista considera importante é o valor turístico atribuído a rodas de samba e eventos como feijoadas e ensaios realizados nas quadras das escolas.
Na opinião de Lula Branco Martins, o samba atual se espaçou, generalizou e perdeu valor tradicional. O samba saiu do morro, do seu local de origem e “ficou meio para a cidade, mais palatável à classe média, à classe A”. Diagnostica um samba pasteurizado, coreografado, de temas românticos. Um cenário onde é difícil encontrar um novo talento.
– Aquela imagem romântica que tínhamos, do Cartola falando de amor, agora está mais palatável à classe média e à classe A. O samba se espaçou e generalizou, mas está mudando, como tudo muda.
O lastro cultural profundo acompanha as transformações. Há sempre vozes novas surgindo na cena do samba carioca. Basta ouvir as antologias do Quintal do Pagodinho, comandadas por Zeca Pagodinho, a roda de samba de Moacyr Luz, no Clube Renascença, às segundas-feiras, e as várias casas noturnas da Lapa, onde veteranos e novatos confraternizam, como comenta Tárik. Musicalmente, melodias e ritmos também confraternizam:
– A antropofagia que rege a cultura brasileira em geral também vale para o samba, que se associou ao rock, como com Jorge Ben Jor, Erasmo Carlos, Seu Jorge; ao soul, em Tim Maia, Carlos Dafé, Paulo Diniz; e no rap, com Marcelo D2 e Rapin Hood, na incorporação de outros gêneros, além dos próprios criados em suas entranhas como o partido alto, samba de roda, samba choro ou gafieira, samba de breque, sambalanço, samba enredo, pagode de raiz etc.
Lula, assim como Emílio, observa que os artistas do morro têm preferido o funk, o rap e o hip hop principalmente devido à globalização:
– Colamos nos Estados Unidos, e creio que quem tem talento para a música nos morros neste momento está preferindo fazer funk. O samba tradicional, mais africano, está perdendo espaço para o funk, mais americano.
Cravo Albin completa que o samba “não anda mais sozinho”, caminhando lado a lado com gêneros que não têm suas origens no carnaval, como o funk. Emílio concorda:
– Um estilo não exclui o outro. O funk e o samba dividem a audiência, se retroalimentam. Funk é antropofágico, tem influências do candomblé, até do samba. A juventude, a nova geração aderiu ao funk após seu crescimento nos anos 1980. Existe essa mistura do samba com o funk que é a identidade carioca, brasileira. Assimilou, por exemplo, instrumentos do samba como o cavaquinho e o pandeiro.
Haroldo Costa, ator, escritor, produtor e sambista, completa:
– O samba canta tudo. O samba não é uma unidade, muito pelo contrário, tem várias variantes, são vários ritmos. O samba canta tudo. Canta a mulher, canta o amor, a desigualdade social, o carnaval. É a voz do morro, a voz do povo. O samba canta o funk, canta o rap. Todos cantam juntos.