Ao som da versão de Zeca Pagodinho para Quem te viu, quem te vê, a MPB FM encerrou as atividades na virada do mês. Foi-se embora o Samba Social Clube, sucesso da emissora e um dos poucos programas ainda dedicados ao gênero, que se confunde com a alma brasileira. O fim de um dos últimos redutos do samba de raiz no rádio, emblematicamente consumado no meio da letra daquele clássico, revela-se igualmente simbólico destes tempos em que a música busca se redescobrir noutras ondas. Foi nas rádios que o samba cresceu. Por meio delas mostrou ao mundo Caymmi, Noel, Cartola e outros tantos bambas decisivos na propagação das composições, da cultura e da alma sambistas além do subúrbio e das favelas cariocas. Agora o samba se propaga sob o compasso dos serviços de áudio via internet (streaming) e das mídias sociais, nos quais passa a se concentrar o consumo musical.
Serviços de streaming ganham cada vez mais usuários, especialmente os jovens. Entre os consumidores do Spotify, 75% das músicas mais ouvidas no ano passado foram estrangeiras. O samba não chegou a 2%. Mas, como reitera Nelson Sargento, “o samba agoniza, mas não morre”. Tende a se renovar nas plataformas digitais, acredita o pesquisador na área Marcelo Kischinhevsky, professor do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj. Autor do livro Rádio e mídias sociais: mediações e interações radiofônicas em plataformas digitais de comunicação (Mauad, 2016) Kischinhevsky lembra que o samba tem papel fundamental na construção da identidade nacional e, assim, seguirá relevante independentemente da plataforma de mídia na qual é reproduzido. Ele reconhece, contudo, que os ajustes aos novos comportamentos de consumo de áudio traz desafios ao samba e outros gêneros musicais, como adequação das emissoras às demandas da comunicação na web:
– Os gestores de rádio têm a cabeça ainda do século XX. Sabem que precisam estar na internet, mas não sabem como. A internet propicia uma troca de informações mais intensa com os ouvintes. Eles interagem mais, podem participar de forma mais ativa. Em vez de as rádios aproveitarem isso, elas apenas colocam o conteúdo na internet. É a mentalidade do “eu falo, você escuta”. É possível oferecer mais. A meta tem que ser gerar envolvimento, fazer ações que mobilizem o ouvinte. Não tem uma mágica. Tem que formar vínculo entre a empresa e o ouvinte.
O historiador e pesquisador Paulo Cesar de Araújo, professor da disciplina Comunicação e Música Popular Brasileira na PUC-Rio, acredita que o problema não está no acervo disponível, mas sim na dificuldade que o samba enfrenta para ampliar seu público:
– Antigamente o samba chegava naturalmente até as pessoas. Tenho lembranças da minha infância de ouvir samba sem que fosse preciso ir atrás, e foi assim que comecei a me interessar. Para aqueles que gostam, o samba chega mais forte ainda hoje em dia. Se eu quiser ouvir um samba do Cartola da década de 1940 eu consigo com um clique. O que dificulta a ascensão do samba por meio da internet é a falta de divulgação. O samba não chega a quem não o procura. No shopping tocam música, mas não samba; nenhuma das três principais novelas tem samba na trilha sonora; ou seja, o acesso ao samba reduz cada vez mais, e isso se reflete nas novas gerações da música: cada vez menos jovens produzem samba.
Leia também: Símbolo nacional, samba chega aos 100 renovado
Para o também jornalista e professor Sérgio Carvalho, ex-gerente de programação do Sistema Globo de Rádio e idealizador do programa Rock Bola, na extinta Rádio Cidade, o samba ainda ecoa firme no rádio, mas de forma diferente à observada há 20, 30 anos. Segundo ele, a juventude atual gosta do “samba do ensaio”, os pagodes que tocam nas rádios populares. Caso da Mania, que intensifica a frequência do gênero musical nesta época do ano com os sambas-enredo, aumentando a frequência do ritmo na programação. Carvalho observa que o ouvinte do samba de raiz ainda encontra espaço em programas como o de Adelzon Alves, nas rádios Nacional e MEC AM. Ainda de acordo com o especialista, o podcast tende a ser um “grande aliado” das rádios, não apenas um novo formato de áudio para competir pela audiência:
– Os podcasts são alternativas interessantes. Servem para ampliar o tempo da programação, expandir o conteúdo. É como colocar um livro na prateleira e poder levá-la para qualquer lugar. Mas ainda são pouco explorados por aqui. Para as rádios musicais continuarem influentes, elas vão precisar trabalhar em parceria com a web. Precisar funcionar como um portal para outra dimensão, como uma grande vitrine musical, aliando prestação de serviço à exclusividade. O maior desafio dessas emissoras é competir com redes sociais e serviços que constroem uma discoteca exatamente de acordo com as preferências das pessoas. O conteúdo exclusivo, inclusive de samba, é o que tende a manter a música viva no rádio – projeta.
Um dos obstáculos, talvez o principal, para o avanço do podcast no Brasil está na falta de costume de pagar para ouvir. Todavia, profissionais como o gerente nacional de Esportes do Sistema Globo de Rádio, Robinson Vasconcelos, acreditam que a construção dessa cultura no país, a exemplo do que se observa já em outros países, seja uma questão de tempo.
– Nos Estados Unidos já é um conceito amadurecido, mas no Brasil ainda estamos caminhando em uma segunda onda, que vem forte. É questão de tempo o formato pegar no Brasil. Para se lucrar com ele, é preciso criar um modelo de assinatura, como o Spotify faz, de maneira que as pessoas assinem para ouvir e tenham uma playlist com seus podcasts. A outra maneira de lucrar é pôr anúncios publicitários no áudio, como as rádios fazem.
Apesar de os números indicarem que o samba não vive seu melhor momento entre os mais jovens, são diversos e extensos os conteúdos de samba na internet. Fora vídeos no Youtube e listas musicais no Spotify, por exemplo, os podcasts sobre o assunto têm ganhado popularidade. Também na web, o canal Muqueca de Siri tornou-se referência na área. Em 10 anos, chegou a mais de 140 países. Foi premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) como o melhor programa de rádio online de 2007.
A pesquisadora Lena Benzecry, que defendeu em 2015 a tese de doutorado “A radiodifusão sonora do samba urbano carioca: uma retrospectiva crítica das principais representações construídas acerca desse gênero musical em programas radiofônicos do Rio de Janeiro”, explica que, assim como o rádio foi importante para o samba se consagrar como símbolo nacional, o samba foi importante para consagrar o rádio como meio de comunicação de massa. “Mas existem muitas queixas de que essa relação não foi harmônica, pela falta de representação não só do samba, mas do próprio artista no mercado”, acrescenta.
Lena acredita que os sambistas estão conseguindo tirar algum proveito da proliferação de novas formas radiofônicas, via redes sociais, com espaço para divulgar seu trabalho, mas observa que o espaço de divulgação não se traduz em crescimento. E vê um desequilíbrio de forças nos serviços de streaming – “que mataram outras iniciativas que os artistas vinham usando”, além da manutenção de poder das gravadoras para que suas vozes se tornem conhecidas:
– No Youtube, é perceptível a ascensão de artistas pouco conhecidos expondo vídeos, tocando suas músicas. Mas não vejo o samba representado da mesma maneira nas plataformas de streaming. As redes sociais são o canal, mas para estourar via rede social é muito mais complexo. Sem o aval de uma grande gravadora e sem tocar em emissoras, é muito mais difícil se estabelecer no mercado.
Altos e baixos de um Patrimônio da Humanidade
Com origens africanas, o samba ganhou régua e compasso graças ao virtuosismo de negros, pobres e suburbanos nas esquinas cariocas. O primeiro registro oficial, feito há um século, Pelo telefone, de Donga, ainda com acento de maxixe. Mas foi na década de 1930 que o samba ganhou o Rio e o país. Disseminado pelas rádios, o novo estilo musical falava do cotidiano no subúrbio carioca. Era o fim do domínio das músicas estrangeiras.
O contra-ataque das canções americanas viria entre as décadas de 1950 e 1970. As rodas de samba concentradas também no subúrbio marcaram a resistência do estilo e da cultura que o cercava e, àquela altura, já se imprimia na alma nacional. Algumas das rodas mais concorridas ganhavam a casa de João Nogueira. A experiência desaguou no Clube do Samba, cujos encontros de bambas contribuíram para a volta do samba ao topo da programação das rádios, nos anos 1970 e 1980, e pelo amadurecimento de novas safras de talentos, das quais fariam parte, por exemplo, Zeca Pagodinho. Reconhecido mundialmente, o samba tornou-se Patrimônio Imaterial da Humanidade.
O novo horizonte do samba passa não só pelos ajustes de composições, gravações e programas às plataformas e formatos regidos pela internet. Passa também pela oxigenação de conteúdos e talentos capazes de imprimir tintas novas nesse traço elementar da aquarela brasileira. É o que buscam iniciativas como a volta do Clube do Samba, empreendida pelo cantor e compositor Diogo Nogueira, filho de João Nogueira (1941-2000), uma das locomotivas do gênero Brasil afora. Para Araújo, agora, cabe ao gênero conquistar a materialidade das novas plataformas embaladas pela web.