No segundo dia do Seminário Internacional No “melhor interesse” de quem? a abordagem contraditória dos conceitos de infância e da criança norteou as discussões. Infâncias roubadas foi o tema da primeira palestra do dia, que expôs experiências de crianças e adolescentes, em situação de rua ou de abandono do lar, em algumas cidades do mundo.
Professora na Universidade de Dundee, na Escócia, Lorraine van Blerk apresentou um estudo dela sobre o crescimento do número de crianças nas ruas da cidade de Accra, capital de Gana. Segundo a professora, a pesquisa evidenciou que o sustento frágil nas ruas, baseado em uma economia local e informal, é a maior dificuldade daquelas crianças.
A professora Irene Rizzini, do Departamento de Serviço Social, focou a análise no contexto social brasileiro. Ela disse que o confinamento das crianças e adolescentes abandonados e de rua em instituições foi construído historicamente e sempre foi visto como solução eficaz para limpeza das ruas por gestões governamentais.
A pesquisadora Marit Ursin, da Norwegian Center for Child Research, abordou pesquisas que realizou na Noruega. De acordo com ela, a alta responsabilidade atribuída às crianças, como serem encarregadas pelas tarefas domésticas, cria consequências como baixa nas notas escolares, dificuldade de aprendizado e até mesmo de concentração.
A professora Mónica Ruiz-Casares, da Universidade McGuill, no Canadá, discorreu sobre como a sociedade, às vezes, infantiliza a criança, ao ignorar as opiniões delas, mas em outras a adultifica, ao dar responsabilidades demais, sem, segundo ela, as colocar no lugar devido da infância.
– Há situações em que as crianças são inocentes dependentes e, em outras, são perigosas e selvagens. Quando elas assumem de fato a responsabilidade e largam a infância, sofrem preconceito, pois há uma visão pragmática sobre isso. Até eles mesmos têm isso internalizado em si.
Vanessa Rojas, mestre em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, abordou o abandono escolar de jovens peruanas em detrimento do matrimônio precoce. Para ela, há pais que estimulam as mulheres a arrumar maridos com boas condições econômicas e deixarem de lado os estudos e a escola antes da formação.
– Há uma urgência em abordar o papel da educação em um contexto de gênero que fomenta preconceitos desde a infância. As crianças devem ser empoderadas para poder entender sua colocação na infância e reduzir esse tipo de pensamento que as afeta diretamente.
Militarização da infância
A segunda palestra do dia abordou os eixos da militarização no mundo contemporâneo. Participaram da discussão a professora Helen Brocklehurst, da Universidade de Derby, no Reino Unido; a conselheira de Proteção de Crianças das Nações Unidas, Dee Brillenburg Wurth; a doutora em Relações Internacionais, Jana Tabak; o ativista do Coletivo Papo Reto, Thainã de Medeiros; e o jovem refugiado congolês Yves Abdalah.
Dee Brillenburg Wurth relacionou a atual questão do conflito no Congo com a presença de crianças-soldados no país, isto é, crianças que participam do conflito armado. O principal objetivo da conselheira é diminuir o número de crianças dos campos de batalha e de recrutamentos. Segundo ela, mais de 6 mil crianças foram retiradas de grupos armados até 2018. Nos estudos para o conselho de segurança da ONU, Dee analisou uma tendência da inserção infantil na guerra.
– O caminho é composto de seis gerações graves: o recrutamento, o sequestro, o abuso sexual, a morte, os ataques a escolas e hospitais e a negação dos direitos das crianças.
Jana Tabak comentou o desvio da militarização das crianças, deslocadas do espaço do jardim de infância para um ambiente de batalhas, tornando-se, para a especialista, ameaças a sociedade internacional. Segundo Jana, a irracionalidade das crianças as transforma em combatentes muito eficientes, pois, obedecem fielmente às regras e, quando são recrutadas para os conflitos, não têm o conhecimento do risco para as próprias vidas e as dos próximos.
Thainã de Medeiros comparou a militarização dos jovens no Congo a situação nas favelas do Rio de Janeiro, como por exemplo, a realidade no Complexo do Alemão. Para ele, é importante a sociedade reconhecer que a questão da infância, correlacionada à violência, está próxima a ela.
– A realidade das crianças com fuzis ocorre ao nosso lado, saber o que está acontecendo no Congo é tão necessário quanto o que está acontecendo na nossa fronteira. Me questiono se esses jovens são apenas percebidos quando carregam armas perto da gente.
Yves Abdalah descreveu a trajetória como criança-soldado no Congo e a chegada ao Brasil, há 11 anos. Segundo ele, o grupo armado incentivou a entrada das crianças nos campos para combaterem o regime ditatorial da época, e para garantirem uma boa alimentação.
– Fui sequestrado, fiquei dois anos no campo de treinamento e um ano no de batalha. O instinto de criança por uma vida mais fácil gritou mais alto, carreguei arma e perdi o contato com a minha família, mas sobrevivi a isso.