Para Fernando, com uma lágrima
26/07/2024 16:40

O jornalista Caio Barretto Briso fala sobre a importância de Fernando Ferreira em sua vida  

Caio Barretto Briso*

Professor Fernando Ferreira com presente

Bati na porta da sala do Fernando para me desculpar. Sentia vergonha por ter atrasado a entrega de uma reportagem, principalmente porque isso fez com que o título saísse errado. O erro não foi meu, mas o atraso que o provocou, sim. Estava lá, na última página do Jornal da PUC: “Em busca de matérias e tempos perdidos” em vez de “Em busca de mistérios e tempos perdidos”. Fernando sempre foi minucioso, um jornalista da palavra exata. Era um texto sobre a viagem que eu havia acabado de fazer, quando saí pela primeira vez do Brasil, sozinho, em uma volta pela América do Sul durante as férias. Embora o Jornal se restringisse, com raras exceções, ao dia a dia da universidade, eventos acadêmicos e entrevistas com professores, Fernando me incentivou a escrever um texto em primeira pessoa, o que até hoje é algo pouco comum no jornalismo profissional. Eu não queria decepcionar aquele homem. Ele me ouviu em silêncio, contou que o jornal seria impresso novamente – milhares de exemplares iriam para o lixo por aquele engano – e prestou atenção quando propus não receber meu salário de estagiário até quitar minha “dívida” com o Projeto Comunicar. Sem cerimônia, sugeriu que eu enfiasse o dinheiro em um lugar, digamos, impublicável, e tudo acabou em riso. Mas ficou uma lição, sempre ficava.

Fernando Ferreira foi o professor mais importante que tive na PUC-Rio, meu orientador de monografia, meu mestre. Ele nos dava seu tempo, seu conhecimento e, posso dizer, sua amizade. Passei horas intermináveis em sua sala no Comunicar em conversas sobre cinema e literatura. Algumas vezes fomos embora com a universidade quase fechando, muito depois do meu horário de estagiário e do dele de professor. Eu ouvia com entusiasmo sobre sua entrevista com o escritor Graham Greene, seu encontro com o cineasta Werner Herzog, seus muitos anos como crítico de cinema do jornal O Globo, sua piada com o censor da ditadura ao deixar a velha redação da Rua Irineu Marinho, 35, onde trabalhei anos depois. A piada: cansado da censura e da estupidez humana, disse que sairia para tocar oboé. Embora fosse amigo e amante da música erudita, nunca tocou oboé, mas sabia que o milico, com seu conhecimento de baixo calibre, nem imaginava o que era isso. À época, já tinha alunos devotos e havia escolhido outro caminho: ensinar. E como ensinava bem. Um dia ele entrou na redação e leu o início das notas do PUC Urgente. Todas começavam do mesmo jeito modorrento, com artigo definido. Concluiu: “O que seria do Ancelmo Gois se ele começasse cada nota da mesma forma? Morreria de fome”. Reparem: a maioria dos textos e parágrafos jornalísticos começa com “o”, “a”, “os” e “as”. É vício de linguagem, saída fácil para um problema difícil. Pode parecer simples, mas ele nos deu um ensinamento para a vida inteira – mais um.

Uma vez fui à casa do Fernando. Eu já conhecia Mara, sua companheira da vida inteira – 62 anos de amor –, e naquele dia conheci Elisa, filha tão querida. Comemos, bebemos, conversamos e assistimos ao filme O Homem que Matou o Facínora. Fernando tinha devoção por John Ford, rei do western e único diretor a vencer quatro Oscars. Talvez Federico Fellini fosse seu segundo predileto, mas não havia ninguém, para ele, que chegasse perto do americano. Influenciado por Fernando, vi muitos filmes de Ford, como As Vinhas da Ira, Como era Verde o meu Vale, Rastros de Ódio, O Céu Mandou Alguém. Cada filme assistido rendia uma semana de conversa. E eu amava cada conversa com Fernando, saía maior do que entrava em todas elas.

Quando soube, pela professora Carmem Petit, que ele estava internado e que sua morte se aproximava, era noite de sexta-feira, dia 12 de julho. Demorei a dormir, revendo um filme dos últimos 20 anos, história que começa nos corredores da Ala Kennedy e que tem seu plot twist quando Fernando me acolhe como um dos novos repórteres do Jornal da PUC, no dia 1º de setembro de 2006, iniciando muito mais que minha vida profissional. Foi no Comunicar que passei a conviver com Clarice, meu amor, mãe do meu filho. Foi lá que conheci um grupo de amigos que se mantém unido mesmo quando está distante. E Fernando… Acordei no dia seguinte e dirigi até o Hospital São Vicente de Paulo, na Tijuca. Não estava no horário de visita da unidade semi-intensiva, mas autorizaram minha entrada. Lilia, uma de suas três fiéis escudeiras, estava lá. Embora parecesse inconsciente, eu o sentia presente. São coisas que não se explicam. Quando segurei na sua mão, ele apertou a minha. Comentei no seu ouvido que João já completaria sete anos, que não tenho visto bons filmes recentemente, que estava com saudade dele. Coloquei Clair de Lune, de Debussy, para ele ouvir um pouco de boa música. Depois, algumas trilhas sonoras de filmes do Ford. Seu batimento cardíaco subiu de 55 para 75. Abracei-o. Agradeci por tudo. Beijei sua testa e, sem querer, fui embora. A pedido do médico de plantão, prometi que só ficaria dez minutos, por estar fora do horário de visita. Acabei ficando 50. Foi a conversa mais rápida que tivemos.

Fernando morreu sete dias depois, em 20 de julho – curiosamente, o Dia do Amigo, como observou Adriana, sua filha e também uma das responsáveis pelo Comunicar ter se tornado uma escola de jornalismo dentro da graduação. No velório antes da cremação, na capela 7 do Memorial do Carmo, havia amigos com idades entre 6 anos, considerando meu João, e quase 90. Mara estava forte, mesmo sabendo que saudade é faca afiada. Bernardo, também professor e único filho que eu só conhecia de vista, e Alice, neta de Fernando, projetaram trechos de filmes de Fellini e, claro, Ford. A última cena foi a de encerramento de Rastros de Ódio, com o ator preferido do Fernando, John Wayne, afastando-se no velho oeste após seu personagem resgatar a sobrinha que fora raptada. A canção final, de Max Steiner, que faz referência ao título original (The Searchers), não poderia ser mais tocante para o momento: “Um homem irá procurar seu coração e alma / Irá procurar muito longe / Sim, paz de espírito ele sabe que vai encontrar / Mas onde, oh Senhor, onde? / Vá embora, vá embora, vá embora”.

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