O Limite de Mário Peixoto
29/04/2008 15:00
Sabrina Gregori

Em seu centenário, cineasta é lembrado por seu único filme

Capa da revista 'Vu' que inspirou Mário e o close inicial do filme
Numa viagem a Paris, Mário Peixoto viu num quiosque a revista Vu. Na capa, o rosto de uma mulher de frente com um olhar fixo e duas mãos masculinas algemadas em primeiro plano. Era o início do filme Limite. Sensibilizado após uma briga com o pai, Mário viu "um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada a ela". Era o final do filme considerado uma das obras-primas do cinema brasileiro. Se estivesse vivo, Mário completaria cem anos no dia 25 de março, mesma data em que David Lean - diretor que mais admirava - tinha nascido. Limite é o único filme de Mário Peixoto.

Para Hernani Heffner, conservador da Cinemateca do MAM, Limite é um filme muito particular dentro do cinema brasileiro e mundial. "A grande questão é com que ele dialoga. Ele dialoga com o modernismo, dialoga com uma forma cinematográfica mais contemporânea. Mário é um artista moderno, antimoderno, revoluciona o próprio cinema ou dá um passo adiante do próprio cinema? Não é mais ponto de discussão se Mário Peixoto realizou um grande filme. Isso já é ponto pacífico", diz Heffner.

Mário fez o filme entre amigos. Raul Schnoor, ator principal, e Brutus Pedreira, que cuidou da parte musical, eram seus amigos de teatro. Edgar Brazil, fotógrafo, e Rui Costa, assistente, se tornaram também grandes amigos de Mário. Limite foi um dos últimos filmes silenciosos no Brasil. Ficou pronto em janeiro de 1931, já em vigor sonoro. O longa-metragem estreou por intermédio do Chaplin Club, fundado por seus amigos de infância, entre eles, Octávio de Faria, seu consultor teórico de cinema, e Plínio Süssekind Rocha, responsável pela primeira restauração da película na década de 60. Limite jamais teve exibição comercial.

 

Edgar Brazil e Mário Peixoto nas filmagens de Limite (1930)
Na verdade, Limite só chegou até nós graças a Edgar Brazil. Toda vez que um pedaço do filme deteriorava, Mário o chamava para reproduzir o pedaço e o substituía. Depois da morte de Edgar, Plínio, que se aproximara de Mário na década de 40, passou a exibir o filme na Faculdade Nacional de Filosofia, onde era professor, inclusive de Saulo Pereira de Mello que o ajudou no processo. Hoje, Limite passa por outra restauração, movida pela ONG de Martin Scorcese World Cinema Foundation.

A vida de Mário foi marcada por diversos projetos cinematográficos mal-sucedidos. Um dos mais famosos foi o scenario (roteiro) de Onde a Terra Acaba, em parceria com Carmen Santos, atriz e produtora que ele conheceu na montagem de Limite. O filme, caro e amplamente anunciado na imprensa, foi deixado por Mário por um desentendimento com Carmen. Outros vieram, como Inconfidência Mineira, projeto feito novamente em parceria com Carmen, numa reconciliação, e Maré Baixa, com Pedro Lima, seu amigo, que também não foi à frente por desavenças antigas de Pedro com Adhemar Gonzaga, grande incentivador do cinema brasileiro na época, convidado por Mário para ajudar no filme.

O criador de Limite vivia da herança da família rica e nunca trabalhou. Mário não queria ser cineasta. Na verdade, queria ser escritor. De fato, como escritor teve mais obras concluídas e publicadas. Publicou em 1931, Mundéu, livro de poemas que foi criticado por Octávio de Faria, Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Escreveu contos e até uma peça de teatro. Em 1933, Mário publicou um volume de O inútil de cada um. Até pouco antes de morrer, em 1992, ele havia expandido de um para seis volumes esse mesmo livro, acrescentando outros poemas e escritos. Desses, somente o primeiro foi publicado. Outra obra importante de Mário, A alma segundo Salustre, é um roteiro cinematográfico. Essa obra, que já teve os nomes de Maré Baixa e Sargaço, passou por quatro versões. A última ganhou uma edição da Embrafilmes, em 1983. Os scenarios existentes e demais documentos e livros de Mário estão no Arquivo Mário Peixoto, fundado em 1996 por Walter Salles. Mário morreu em seu apartamento em Copacabana, recebendo ajuda financeira do próprio Walter Salles.  

 

Obra sem precedentes

Saulo Pereira de Mello (Reprodução TV PUC)
O encontro de Saulo Pereira de Mello com Limite e Mário aconteceu na Faculdade Nacional de Filosofia, onde ele é formado em Física e Filosofia. Apesar de dar todo o crédito pela primeira restauração de Limite a Plínio Süssekind Rocha, seu professor e amigo de Mário, sem Saulo Limite não teria chegado aos dias de hoje. Saulo fala um pouco para o JORNAL DA PUC sobre o filme de Mário e como isso chegou em sua vida.

JORNAL DA PUC: Como Mário está inserido na história do cinema brasileiro?
Saulo Pereira de Mello:
Vinícius de Moraes uma vez escreveu um artigo, numa revista chamada Renovação, para o qual Carlos Scliar desenhou uma árvore do cinema. O grande tronco era Grifith, o cinema soviético, o cinema americano, o cinema alemão, etc. E quando ele quis botar o Mário Peixoto, ele não encontrou lugar. Então, ele botou uma pomba voando. O Mário Peixoto é uma pomba. Não que ele seja o Espírito Santo. Ele não tem lugar no cinema brasileiro. Ele esvoaçou em volta. Você não encontra nenhum outro filme anterior a Limite que prepare a chegada dele, em que você pode dizer "Olha, Limite está chegando".

JP: Quais as influências cinematográficas de Mário?
Saulo:
O Mário, como todo artista extremamente talentoso, sofria pouca influência. Não que não houvesse. Você está inserido num meio que aquilo entra pelos seus olhos. Mas ele tinha uma inabilidade, quem dizia isso era o Paulo Emílio Salles Gomes, tinha uma inabilidade de copiar. Mas ele sempre proclamava que o cinema alemão era muito chegado a ele. Filme alemão silencioso, é claro. Era o cinema que ele mais gostava, mais via. Mas do cinema americano ele não pode ter fugido à influência, porque era o cinema que todos nós víamos. Era o cinema que dominava o mercado totalmente.

JP: Limite só foi possível graças às amizades de Mário?
Saulo:
Limite só foi possível, em primeiro lugar, porque ele tinha talento e muito talento. Em segundo lugar, ele tenha dinheiro. Em terceiro lugar, ele tinha uma sorte, nasceu virado para a lua, porque encontrou na vida dele um cara chamado Edgar Brazil. Na confluência dessas três coisas ele fez o que quis, sem que ninguém enchesse a paciência dele. O Edgar Brazil era um homem talentosíssimo. Era alemão, desenhista, mecânico, homem de laboratório, fotógrafo. Tem lá no arquivo Mário Peixoto, um desenho dele, em plano médio, do Mário feito a carvão, por Edgar Brazil, que é um primor. Mecânico, inventava aquelas traquitanas para a câmera fazer assim e assado. Ele fazia tudo que podia para que a idéia de Mário pudesse ser realizada. Isso demonstra primeiro a grandeza do caráter e, segundo, a compreensão cinematográfica do Edgar Brazil. Ele sabia que aquilo era um menino de 22 anos, mas não era um idiota. Ele leu o roteiro e percebeu que tudo aquilo tinha sentido.

JP: Por que Mário não queria dirigir o próprio scenario (roteiro)?
Saulo:
O Adhemar Gonzaga dizia que o Mário era perseguido pelo demônio do tédio. Ele precisava ter alguém que fosse o "espírito de orelha". O cara que fala "Vai!’, "Vamos, levanta!". Que desse entusiasmo: "Você é bom! Porque você está aí?!" Esse homem era Brutus Pedreira, que, não literalmente, pegava ele pela orelha e obrigava a trabalhar. Se ele pudesse, delegava tudo para todo mundo. Delegou o próprio dinheiro e ficou pobre. E outro espírito de orelha que ele queria era eu (no roteiro de Jardim Petrificado). Ele queria que eu fosse, simultaneamente, o Edgar Brazil, o Brutus Pedreira e sei lá quem mais.

JP: Por que Limite se chama Limite?
Saulo:
Eu perguntei isso pra ele. Ele disse "Eu vi aquelas imagens e me deu aquela sensação de limitação humana. Tudo preso, tudo limitado. Só podia ser Limite."

JP: O que você diz da narrativa e da plástica de Limite?
Saulo:
A plástica é muito bonita, mas é menor. Muito bonita, mas como contribuição ao filme é menor. Narrativa quase não existe. Aí você me pergunta "O que sobrou?". O ritmo. A direção dos atores. A sucessão de imagens. A montagem.

JP: Como você começou a restaurar Limite?
Saulo:
Um dia, Plínio exibiu Limite, na FNF, sem as três primeiras partes porque estavam se deteriorando. Plínio veio até mim e disse "Se nós não fizermos alguma coisa, esse filme vai se perder. Você vai deixar isso acontecer, Saulo?" Eu disse "Olha, professor, eu não sei, mas nós juntos podemos tentar". Tentamos e conseguimos. Mas depois o filme começou a ter a síndrome do vinagre. A hidrólise estava formando ácido acético no filme de acetato. Mas aí eu tinha um trunfo que era o Walter Salles. E é ele quem está salvando Limite pela segunda vez. A minha colaboração foi mais técnica e estética também porque eu sabia o quer era um contraste e tinha que manter isso para conservar a textura do filme. Plínio era um homem catedrático que queria um garoto de 17 anos na tarefa. Ele me dava algum valor. Mas foi Plínio quem mobilizou todo mundo.

 

Edição 198