Seminário internacional debate direitos humanos, cidadania e segurança
18/09/2017 17:00
Helena Carmona

Desmemorialização move escalada da violência, alerta professor José Maria Gómez. Especialistas destacam necessidade de políticas públicas dedicadas a revigorar a memória da população contra a banalização dos casos de violência.

Alunos reunidos no auditório B8. Foto: Fernanda Maia

O terror imposto por traficantes a moradores da Rocinha, neste fim de semana, reforça o avanço da violência apontado em pesquisas como a do Instituto de Segurança Pública, segundo o qual o volume de homicídios dolosos, no Rio, aumentou 10,2% no ano (2.472 para 2.723, primeiro semestre). A escalada se reflete em números bélicos: entre 2011 e 2015, o Brasil chorou quase 280 mil mortes violentas intencionais, contabiliza o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – cerca de 30 mil mais que na Síria, há seis anos em guerra. Igualmente emblemática, segundo especialistas em segurança pública, tem sido a incidência de policiais mortos: mais de uma centena, no Rio, nos oito primeiros meses do ano. Para professores da PUC-Rio e da Université de Paris – Nanterre reunidos no seminário Direitos Humanos em Crise, o cenário expõe mais do que a ausência ou omissão do poder público: “O Estado brasileiro controla, vigia e mata cidadãos muito mais do que protege”, afirmou o professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) e do Departamento de Direito José Maria Gómez, doutor em Ciência Políticas e Sociais, um dos participantes da mesa sobre anistia. Organizado pelo Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio, que completa 15 anos, o seminário discutiu uma série de outros temas da área, como as implicações raciais no movimento feminista e o asilo político de minorias sexuais. Gómez observa não só a intensificação de casos violentos, mas a crônica concentração sobre negros, pobres, mulheres e jovens, atestada pelo Atlas da Violência 2017.

De acordo com o Mapa da Violência de 2016, realizado desde 1998 pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, 63 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados por dia no país. O número é quase quatro vezes maior do que o verificado entre jovens brancos. Além disso, observam os analistas, a polícia brasileira está entre as que mais matam e mais morrem no mundo. Registra, segundo o 10° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2016), taxa de letalidade de 1,6 morte para cada 100 mil habitantes, e chegou a 499 policiais mortos ano passado, em serviço ou em decorrência da profissão, aponta o Mortômetro da Ordem dos Policiais do Brasil.

– A ditadura se mantém como um fio vermelho na continuidade da violência, que hoje é muito mais intensa, e que tem cor, classe, territorialidade. É um microgenocídio contra negros e pobres que acontece diariamente – disse Gómez, para quem a violência, comparável à de países em guerra, é “permitida” pela sociedade brasileira porque, entre outros fatores, houve uma desmemorialização relativa ao período da ditadura: – O povo brasileiro se lembra muito pouco do que aconteceu nos 21 anos de ditadura no país. Este esquecimento generalizado impede que a violência que perdura seja vista. Por isso, os projetos de memória e reparação da Comissão de Anistia são tão importantes. Enquanto alguém se lembra dessa violência, o nosso conflito é travado no presente.

Comissão de Anistia, instalada no Ministério da Justiça e Segurança Pública em 2001, atua na promoção de políticas públicas de memória e reparação às vítimas das violações aos direitos fundamentais e de atos de exceção praticados entre 1946 e 1988, com o intuito de fortalecer a democracia e os direitos humanos. O papel da comissão ao longo dos anos tem sido reunir documentação sobre a repressão e a resistência no Brasil, sobretudo durante o período da ditadura brasileira (1964-1985), incluindo depoimentos escritos, orais e documentários.

O coordenador do Departamento de Direito, João Ricardo Dornelles, traça um paralelo entre o desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em 2013, na UPP da Favela da Rocinha, e do engenheiro civil Rubens Paiva, em 1971, cuja morte foi confirmada mais de 40 anos depois, em depoimento de ex-militares à Comissão Nacional da Verdade. Para o professor, a população brasileira tende ainda a considerar “pontuais” abusos estatais, embora sejam rotineiros: 100 mil casos do gênero foram denunciados, no ano passado, ao Disque 100, indica balanço do Ministério dos Direitos Humanos. Apesar de representarem exceções, em relação ao procedimento padrão, são encarados com certa naturalidade por boa parte dos brasileiros, avalia Dornelles:

– Quando tinha uns 10 anos, um policial e um salva-vidas levaram um menino suspeito de roubo no bairro para interrogá-lo naquela casinha de salva-vidas. Eu e outras pessoas na rua ouvimos o menino ser supostamente torturado lá dentro, mas ninguém questionou aquilo. Isso está enraizado no nosso país.

Ainda de acordo com o professor, a naturalização da violência no país deve-se, em grande parte, a um "histórico de autoritarismo, exclusão e elitismo". A academia tem o papel, ressalta Dornelles, de impedir a continuidade deste cenário:

— O Brasil se construiu como uma sociedade baseada no genocídio e na agressão, sem sequer uma pausa. Nossas revoluções sempre foram passivas, foram pactos feitos pela elite. Cabe ao âmbito acadêmico apontar caminhos para a não repetição, encorajando a criação de políticas públicas de memória, por exemplo.

Minorias encontram dificuldades ao tentar asilo político

Márcia Bernardes, Thula Pires, Adriana Cruz e Daniel Borrilo Foto: Fernanda Maia

O professor de Direito Daniel Borrillo, da Universidade de Paris Nanterre, falou sobre as dificuldades que minorias enfrentam ao tentar asilo político em outros países. Pessoas LGBT encontram barreiras ainda maiores, por não estarem necessariamente associadas a um grupo ou comunidade, explica:

– Se você é negro, sua família é negra. Se você é judeu, sua família também é. Mas ser homossexual não depende da sua linhagem, na verdade o preconceito vem também da sua família, o que dificulta mais ainda que essa comprovação seja feita. Isso impede a proteção de muitas pessoas que são perseguidas em seus países de origem.

Ser gay é crime em mais de 70 países no mundo. A pena pode ser a prisão perpétua em países como a Índia, Uganda e Tanzânia. Em seis países há a possibilidade de condenação a pena de morte (Irã, Arábia Saudita, Iêmen, Sudão, Somália e Nigéria), e em outros dois, Síria e Iraque, a mesma pena é aplicada pelo Estado Islâmico nas regiões dominadas pelo grupo.

– Em países em que a homossexualidade é criminalizada, a pessoa homossexual faz o possível para esconder essa condição. Então, quando ela vai pedir asilo político em um país como a França, fica quase impossível provar que ela está tentando migrar por causa da perseguição, e não por motivos econômicos – explicou Borrillo.

Feminismo com recorte social

A professora Márcia Nina Bernardes, do Departamento de Direito da PUC, lembrou que a discriminação por gênero é transpassada por outras. Segundo o Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil, entre 2003 e 2013 houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de mulheres brancas, enquanto os homicídios de negras aumentaram 54,2%.

– Não existe feminismo singular, mas sim uma pluralidade, e há distinções entre as experiências de mulheres de raças e classes diferentes. Mulheres brancas, embora oprimidas por seu gênero, ainda são privilegiadas por sua raça.

Para a professora Thula Pires, também do Departamento de Direito, “a racialização do movimento feminista é necessária”, por entender que, ainda que o Direito tenha como um de seus princípios a universalidade, as experiências de cada pessoa são dadas a partir de seu próprio corpo.

— Racializar é entender como a questão [da violência de gênero] se dá para negros, indígenas e outros não brancos. O racismo é regra na sociedade, então é necessário reconhecer todas as tradições impostas pelo padrão europeu, oferecendo aos direitos humanos ferramentas a partir de tudo que o ser amefricano [junção de americano com africano] herdou.

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