Visões de especialistas divergem em relação ao legado esportivo da Rio 2016
07/10/2016 14:51
Bárbara Tavares e Lucas Paes

Após a realização da Olimpíada e Paralimpíada no Rio de Janeiro, profissionais debatem sobre as heranças deixadas pelo megaevento e a ineficiência do sistema esportivo brasileiro

A Rio 2016 foi o capítulo mais vitorioso para o Brasil na história dos Jogos Olímpicos: os atletas brasileiros conquistaram 19 medalhas ao todo, sete de ouro. Apesar dos números nunca antes vistos, especialistas diferem quanto ao legado esportivo que o megaevento pode deixar para o esporte nacional. De um lado, o professor da Escola de Negócios (IAG) da PUC-Rio e especialista em gestão de marketing esportivo, Luiz Paulo Moura, defende que as vitórias alcançadas no Rio “trarão mais recursos e investimentos para diferentes modalidades, com facilidade na obtenção de patrocínios e renegociação de contratos”. Do outro, o professor de direito esportivo da FGV Pedro Trengrouse afirma que “o Brasil não aproveitou a Olimpíada da maneira que deveria, pois deixou de desenvolver uma agenda própria dos Jogos e se preocupou apenas com as exigências impostas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI)”. Para ele, a estrutura de investimentos do país também prejudica o desenvolvimento concreto do desporto brasileiro:

– Todo o dinheiro arrecadado vai diretamente para o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), confederações e federações, em vez de chegar aos clubes e atletas. Se quisermos melhorar o desempenho esportivo dos nossos atletas, mudanças no fluxo de investimentos precisam ser processadas. Os clubes têm de entrar como ponto de chegada do capital. Não adianta construir centros de excelência no meio do nada se os clubes continuam em situação complicada.

Arte: Mariana Salles

A visão negativa de Trengrouse é acompanhada pelo pensamento do especialista em políticas públicas de esporte e lazer Fernando Augusto Starepravo, da Universidade Estadual de Maringá (UEM). De acordo com ele, “as políticas públicas de incentivo às práticas esportivas no Brasil englobam pontos genéricos, como ocorreu na Olimpíada, e não geram mudanças profundas”.

– O aproveitamento do evento poderia ser melhor, com uma estruturação das políticas, para que elas fossem consolidadas e postas em prática de maneira contínua e articulada. Os discursos de mudança até foram gerados, mas não viraram realidade. O objetivo principal das Olimpíadas foi a organização, e não modificar o panorama do esporte no país – aponta.

Na avaliação de Starepravo, as políticas públicas de esporte ainda são muito recentes no Brasil, “principalmente quando se pensa no esporte como qualidade de vida e direito social”. Isso não significa que o cenário seja diferente no alto rendimento, em que atletas precisam de estrutura para representar clubes e o próprio país nas competições mais importantes de cada modalidade.

– Tanto no desporto praticado como lazer quanto no profissional, as ações encabeçadas pelo poder público são pontuais e não atingem uma parcela grande dos envolvidos. Existem organizações, como ONGs, comitês e federações, que cobram ações do governo. No entanto, mesmo as que se tornam reais visam o curto prazo. Seriam mais eficientes se estivessem focadas na obtenção de resultados em longo prazo, abrangendo desde a inclusão do jovem na prática esportiva até a manutenção dos atletas que já se destacam em competições importantes – avalia.

As contribuições trazidas pela Rio 2016 se deram em duplo e opostos sentidos. Essa afirmação é do professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Observatório do Esporte, Lino Castellani. Segundo ele, a ênfase dada aos megaeventos esportivos retratou a opção prioritária pelo Esporte de Alto Rendimento sem, no entanto, modificar os aspectos fundamentais para a configuração de uma política pública para a real dimensão do esporte.

– Entendo que, dentro de todo cenário esportivo, é preciso alterar um dos elementos essenciais. Ou seja, é primordial a construção e consolidação de um Sistema Nacional de Esporte que redefinisse os papéis do Estado e seus braços executivos nas três esferas governamentais (Federal, Estadual e Municipal) ao lado das entidades de administração do Esporte (Comitê Olímpico e Paralímpico, Confederações, Federações e prática esportivas através dos clubes) – relata o professor.

Contudo, essa escolha em priorizar o Esporte de Alto Rendimento desencadeou algumas consequências, como afirma Castellani. As políticas sociais esportivas, que respondiam de forma mais efetiva aos preceitos constitucionais de responsabilização do Estado pela promoção do esporte como direito individual e social, sofreram retração e secundarização, o que dificulta o surgimento de novos talentos.

Dentre as diversas reviravoltas ocorridas na Rio 2016, a Olimpíada ainda conseguiu colocar em evidência algumas modalidades que caminhavam progressivamente pelas sombras das mais conhecidas. O tiro esportivo e o salto com vara são, por exemplo, categorias que ganharam grande destaque após as conquistas brasileiras. No entanto, o efetivo crescimento desses esportes esbarra nos obstáculos de investimentos inconstantes, como alega o membro da Comissão do Senado Federal sobre a nova Lei Geral do Desporto Pedro Tengrouse:

– A partir do momento em que esportes menos conhecidos passam a se tornar parte da vida dos brasileiros, é preciso investir de forma regular. O interesse e a prática teriam de ser reverberados a todo tempo na sociedade. Ou seja, o impulso deveria ser consolidado e transformado em realidade.

Cidade Olímpica Foto: Divulgação

Sob outra perspectiva, o futebol é o queridinho dos brasileiros. Em função disso, a modalidade acaba sendo mais vista e regulamentada, além de receber mais investimento, como da Caixa que deu um patrocínio de R$ 98,6 milhões, em 2016. Criada especificamente para o futebol, a Lei Pelé, por exemplo, atual Lei do Desporto, está sob a pretensão de ser substituída. No entanto, apesar de ser o mais popular, não deveria ocupar uma posição única na legislação, como afirma o professor de Direito Desportivo da PUC-Rio Job Eloisio Gomes:

– A Constituição ajuda, pois fala de maneira mais aberta sobre a obrigação do Estado de fomentar o esporte como um todo e permite às leis abordarem outras modalidades. Isso, por outro lado, é um movimento muito mais natural do que propriamente forçado, ou seja, não adianta existirem leis que regulamentem a prática e deem suporte ao badminton, por exemplo. Essa categoria não tem força suficiente para se estabelecer no Brasil. O futebol, por sua vez, já está inserido no nosso ordenamento jurídico em decorrência do interesse gerado pela população.

Gomes ainda aponta outros motivos que diferem o futebol dos demais esportes. Segundo ele, enquanto a modalidade popular brasileira é a única considerada como categoria profissional – os atletas têm carteira assinada e todos os outros direitos envolvidos –, os jogadores de vôlei, por exemplo, sobrevivem através do salário que recebem sem a carteira assinada e sem contratos de patrocínios.

Esporte: caminho para a inclusão social

Ao passo que tornar-se um atleta no Brasil é uma tarefa difícil devido à falta de investimento público e a todo poder concentrado nas mãos dos clubes, uma nova alternativa surge. Os projetos sociais são meios muito importantes para difundir o esporte entre os jovens. Contudo, essas iniciativas, que se preocupam mais com a parte educativa e participativa do esporte, sofrem para conseguir se sustentar.

– Assim como os clubes, os projetos também não recebem muitos investimentos de comitês e do governo. Então, devemos pegar o exemplo da judoca brasileira Rafaela Silva, que conquistou sua primeira medalha de ouro numa edição olímpica. A atleta, criada na Cidade de Deus, foi inserida no judô por meio do Instituto Reação. É necessário que haja um aumento de incentivos ao esporte brasileiro – explicita Tengrouse, especialista em Direito Esportivo.

Dentre os mais variados frutos deixados pela Rio 2016, temos a visibilidade de esportes que antes andavam a margem do conhecimento dos jovens. O salto com vara, por exemplo, não era popularmente falado e agora ganhou considerável relevância. Thiago Braz é um dos atletas participantes do Projeto Vivência Olímpica Londres 2012. A iniciativa, como conta o ex-diretor executivo de esportes do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e medalhista olímpico do vôlei em 1984, Marcos Vinícius Freire, identifica, com a ajuda do COB e das Confederações, jovens com histórico de resultados nas categorias de base – em alguns casos já no grupo adulto.

O Projeto Vivência Olímpica Londres 2012 contou com oito atletas participantes na Rio 2016, sendo que quatro deles conquistaram medalhas: Thiago Braz (salto com vara), Martine Grael (vela), Felipe Wu (tiro esportivo) e Isaquias Queiroz (canoagem). Os demais – Hugo Calderano, Rebeca Andrade, Bernardo Oliveira e Lais Nunes – tiveram bons desempenhos na competição. Para as Olimpíadas de Tóquio, a apuração já começou a ser feita e analisada. Segundo Freire, já são mais de 20 atletas com potencial de participação bem-sucedida, em 2020.

O grande comércio esportivo

O esporte é um produto que estimula muito as transações comerciais. Por ano, a indústria esportiva brasileira movimenta em média R$ 31 bilhões, segundo o Instituto Brasileiro de Marketing Brasileiro (IBME). Nos últimos anos, essas ações mercadológicas, que equivale a 3,3% do Produto Interno Bruto, registraram um crescimento médio de 12,3%. O marketing, como lembra o professor de Marketing Esportivo da PUC-Rio Luiz Léo, é uma técnica orientada para consumo, então, é preciso algumas estratégias:

– No mercado de consumo, o esporte funciona ainda mais como um espetáculo de atributos: jovialidade, habilidade, enfim, esses valores que estão totalmente presentes no mundo esportivo. Um caso importante que exemplifica isso foi do Banco do Brasil que passou a patrocinar o vôlei brasileiro. A percepção que as pessoas tinham a respeito desse banco era de que só quem frequentava eram velhos. O quadro foi revertido quando eles começaram a apoiar o Brasil na modalidade, pois conseguiram resgatar um esporte que era meio esquecido e rejuvenesceram a imagem.

Luiz Léo ainda aponta modalidade que recebeu um significativo investimento, mas não deslanchou:

– Acho que o tênis, por exemplo, é o mais capital. Depois do fenômeno Guga, a modalidade recebeu todos os investimentos possíveis. Várias quadras foram construídas, mas é de uma inexpressividade economicamente falando. O tênis não tem uma projeção enquanto prática esportiva. É muito mais praticado hoje do que podíamos ver antes. Contudo, do ponto de vista de gerar novos resultados e talentos é quase tão exíguo do que antes, na era Guga.

A produção de novos atletas se depara com a ineficiência do modelo brasileiro. Segundo Job Eloisio Gomes, professor de Direito Desportivo da PUC-Rio, não é apenas uma questão de investimento do Estado ou da iniciativa privada, mas sim da junção dos dois com o propósito de fazer o país forte em determinada modalidade. O advogado ainda aponta que o sistema esportivo americano é um exemplo a ser seguido:

– Nas escolas e universidades dos Estados Unidos, pode-se encontrar atletas com nível de desempenho altíssimo. Isso porque há conexão entre a escola e o esporte. Dentro da estrutura esportiva americana está inserido um ambiente de competitividade profissional mesmo entre os amadores. No Brasil, isso é diferente. A lamentável situação aqui tem seu ápice no momento em que o atleta precisa escolher entre estudar e ser um atleta. O ideal seria que pudéssemos conciliar as duas frentes, gozando de condições legais e apoio financeiro.

Herança das instalações

A realização de uma Olimpíada implica numa série de investimentos, como obras nas áreas de mobilidade urbana, infraestrutura – incluindo esportiva – e preservação do meio ambiente. Esses aspectos são considerados legados da Rio 2016, uma vez que continuarão na cidade mesmo após o seu término. O investimento para essas heranças foi contabilizado em R$ 24,6 bilhões de reais, sendo 57% referente ao dinheiro público.

Contudo, apesar do Rio de Janeiro ter sido muito beneficiado com todos os investimentos e estruturas esportivas montadas em quatro regiões da cidade – Copacabana, Barra da Tijuca, Deodoro e Maracanã –, Gomes alerta para possíveis desconfianças quanto à utilização futura dos locais de competição:

– É normal que tenhamos insegurança sobre o que será das instalações. A maior parte dessas estruturas será mantida, mas esse destino só será possível se estivermos atentos à manutenção e também ao desenvolvimento de ações de políticas públicas. Caso isso não seja efetivado, pode ser que aconteça que nem em 2004, na Olimpíada da Grécia, na qual as arenas encontram-se praticamente abandonadas e o Estádio Olímpico tornou-se abrigo para os refugiados que chegam ao país.

Instalações do Parque Olímpico Foto: Divulgação

As palavras do professor Gomes vão ao encontro da avaliação de Luiz Léo. Os equipamentos, como explica o professor de Marketing Esportivo, são propriedades públicas, construídas a partir do dinheiro do contribuinte. Após passar por um processo licitatório, entregam essas instalações a um operador privado encarregado de articular o uso e a sua manutenção.

– O complexo de natação Maria Lenk é exemplo disso. Quando você dá a concessão para alguém, também está ajudando na capacitação do treinamento, ou seja, nesse caso, cede espaço para o treinamento da Confederação Brasileira dos Esportes Aquáticos – exemplifica Luiz Léo.

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