Crise representativa: "Sistema de consulta popular é uma saída", diz especialista
06/02/2017 14:20
Gustavo Côrtes

Em entrevista ao Jornal da PUC, cientista político Bernardo Conde associa descrédito ao deslocamento, na pauta dos represententantes políticos, do eleitor para o financiador. "No Brasil, a desmoralização atinge também as instituições", avalia 

Protesto em Brasília. Foto: Agência Brasil

Há algum tempo o mundo respira uma crise de representação democrática, acreditam analistas políticos. Uma das supostas raízes para fenômenos como a arrancada de Donald Trump à Casa Branca e a guinada à extrema-direita na Europa, o distanciamento entre representantes e representados tem se expressado de forma mais eloquente no Brasil desde que as inquientações das mídias sociais ganharam as ruas em junho de 2013. Manifestou-se também no clamor do não-voto nas recentes eleições municipais, com o recorde em abstenções em vários estados, inclusive o Rio, onde, no segundo turno, mais de dois milhões de eleitores simplesmente não escolheram candidato. O recado ecoou nacionalmente: votos brancos, nulos e abstenções corresponderam a 32,5% do eleitorado, também no segundo turno. A crise bateu ponto ainda na enxurrada de mensagens pela internet que associavam votações no Congresso, como a alusiva à abuso de autoridade, a manobras para, na contramão da vontade popular, anistiar corruptos e corruptores. Fértil a messianismos, a atmosfera de descrédito estende-se às instuições, avalia o cientista político e professor da PUC-Rio Bernardo Conde.

Em entrevista ao Jornal da PUC, ele relaciona o incêndio representativo ao deslocamento do eleitor para o financiador no atendimento prioritário dos políticos – "a agenda saiu do âmbito social e foi para o âmbito financeiro". O professor destaca também uma jabuticaba do nosso quintal democrático:"O Brasil se insere no cenário de desmoralização da classe política, mas apresenta uma peculiaridade: o descrédito recai não só na política convencional, como forma de atender as demandas sociais, mas também as instituições". Numa linha próxima à do historiador francês Pierre Rosanvallon, que identifica um apetite por saneamento dos governos (leia a entrevista à repórter Iasmin Restum), Conde propõe um sistema de consulta popular que ”não se limite a plebiscitos e estabeleça a difusão dos posicionamentos dos diferentes grupos políticos, para dar subsídios aos eleitores em suas decisões”. 

Jornal da PUC: Para o senhor, as manifestações indicam uma insatisfação crônica da população com a classe política ou a população está mais exigente?

Bernardo Conde: Um pouco dos dois. Eu não diria mais exigente, e sim mais participativa e informada que antes, o que a tornou mais mobilizada e crítica. A insatisfação é resultado do aumento do poderio das grandes corporações no sistema eleitoral e na determinação das pautas e agendas políticas no mundo pós-globalização econômica, que deu maior autonomia às empresas em relação ao Estado e, consequentemente, mais poder político. Há um deslocamento da representação saindo da população e indo para grupos empresariais de interesse, que influenciam não só em eleições, mas em todo o exercício do Legislativo. A população mundial percebeu que os políticos atendem preferencialmente as demandas de quem os financiaram em vez dos de quem os elegeram. Isso ocasionou, desde os anos 1990, manifestações de rua na Europa, que se intensificaram nos últimos cinco anos, quando a insatisfação passou a ser percebida também no Brasil, em decorrência da crise econômica.

Qual o papel das redes sociais no estopim de movimentos que deram voz a essas demandas reprimidas por aprimoramento da representação políticae?  

Embora não sejam as únicas responsáveis, as redes sociais foram decisivas, porque são um meio de comunicação que ajuda na difusão de informações por vezes ausentes nos grandes veículos. Os movimentos de rua reivindicando maior representatividade são desencadeados. E eles não têm necessariamente a ver com a corrupção, e sim com a fidelização do político àquele que custeia a campanha. Aquela declaração do Sérgio Moraes (PTB-RS), em 2009, quando disse que se lixava para a opinião pública, já indicava isso. A preocupação da classe política está voltada aos conchavos, e não às demandas sociais. A rede social deixou tudo isso claro.

Que balanço o senhor faz da proibição do financiamento empresarial de campanha, que entrou em vigor na eleição municipal passada? Que outras mudanças o senhor considera importantes para aprimorar a representação democrática no Brasil?

A mudança no financiamento de campanha não resolve tudo, mas é um passo dado, e mexe num sistema falido que estava acomodado. As complicações vão aparecer, mas o modelo anterior estava esgotado, pois boa parte do congresso alugava a legislatura para as empresas que financiavam as campanhas. É, sim, possível que haja, como consequência dessa mudança, elitização, na medida em que pessoas ricas podem financiar a própria campanha. Por isso, é preciso olhar o sistema como um todo. Pois, quando muitas vezes se rompe de um lado, se abre uma brecha do outro, e uma alteração implica consequências na outra ponta. Quanto a outras mudanças, o voto distrital tornaria a representação mais direta. Mas sugiro, principalmente, um sistema de consulta popular. E isso não é só fazer plebiscitos de tempos em tempos, é estabelecer um sistema no qual a população é informada dos posicionamentos diferentes e dos possíveis desdobramentos de cada um deles.

Bernardo Conde. Foto: Arquivo Pessoal

Como seriam feitas essas consultas populares? Como se daria segurança institucional para esses processos?

Poderia ser feito em forma de bloco de temas votados de dois em dois anos nas eleições. Outra mudança positiva seria a votação para o Congresso ocorrer desencontrada com a presidencial. Assim, a relação entre governo e base seria mais estável, pois um governo com aprovação alta elegeria mais aliados no Congresso do que um governo possivelmente desgastado depois de dois anos de mandato. Isso também permitiria a população corrigir possíveis distorções no Legislativo, como um Congresso que obstrua demais propostas de um governo com aprovação popular. Além do mais, isso estimularia o voto ideológico em oposição ao voto personalista.

O sistema de consultas populares não esvaziaria o Congresso?

A função do Legislativo não é só aprovar leis, é criá-las também. A consulta às bases deveria ser corriqueira na atuação política. Deputados e senadores deveriam ser mediadores: eles propõem e consultam a população. O congressista passaria a ser obrigado a ouvir a voz popular dessa forma.

O quão significativo o senhor considera os fatores econômicos na tomada de atitude por parte da população?

Desde os anos 70, a ruptura das fronteiras pelo mercado deu mais autonomia e poder às grandes corporações, que se tornaram mais independentes do Estado e mais poderosas politicamente. Isso mudou a agenda política nos países da Europa e nos Estados Unidos, e, posteriormente, no Brasil. Em razão disso, a discussão hoje se concentra em crescimento, inflação, ações, juros, bolsas. Não se discute mais distribuição ou bem-estar social. Essa mudança na lógica da organização dos mercados provocou um distanciamento entre a classe política e população. A agenda saiu do âmbito social e foi para o âmbito financeiro.

De que maneira o senhor avalia esse desvio no debate político brasileiro?

Por exemplo, quando se debate privatização, fala-se muito do lucro que empresas estatais dão ou deixam de dar, mas não se discute o potencial gerador de bem-estar social que cada uma delas têm. Se a Petrobras quer instalar uma refinaria em algum lugar do país, se dirá que o estado de São Paulo é o melhor lugar para isso, mas a Petrobras fará em Pernambuco, porque o lucro é menor, mas o bem-estar social gerado é muito maior. Esse tipo de questão não está em pauta no Brasil.

Mas o senhor acha que há uma relação entre a perda de ganho social da população global com a decisão de se manifestar contra a classe política diligente?

Todo processo tem fases de ganho, acomodação e insatisfação. Ou seja, as pessoas melhoram suas vidas, se acostumam a ela e depois se descontentam se não ocorre um novo ganho ou se há regressão. Essa insatisfação se produz em toda crise. Já houve, no Brasil, outros momentos em que o desemprego era alto e não havia um desconforto tão grande como agora, porque os ganhos recentes foram muito grandes; portanto, a insatisfação é maior, porque a perda foi maior. Assim, a crise atual é hiperdimensionada: porque a revolta é maior.

Qual a relação entre a crise de representação e a ascensão de discursos extremos? Os representantes dessas ideias usam sistematicamente o argumento de que não fazem parte da elite política diligente.

A não representação gera sensação de impotência, na medida em que o eleitor se vê incapaz de mudar, pelo voto, as distorções do sistema que não o representa. Isso gera frustração, que gera raiva e ódio. A pessoa tomada de emoção vai ao extremo. O que nós vemos são justamente discursos saudosistas idealizando um mundo ultrapassado e menos liberal. Existe uma relação de fé, porque esses supostamente não representam o sistema estabelecido. Do outro lado, a proposta de ruptura total com o sistema traz consigo a ideia de retorno ao estado perfeito e utópico. Esses momentos são propícios para o surgimento de líderes messiânicos. No caso do Brasil, o problema é mais grave: não são apenas os políticos, são as instituições. E quando as pessoas deixam de acreditar nas instituições, o grupo que busca um líder messiânico se torna maioria. Há também, nos últimos 30 anos, uma um discurso de depreciação da política, que joga bons e ruins num limbo comum, o que é prejudicial, porque gera descrença na democracia. E isso é o que faz o número de abstenções crescer: a associação imediata entre político e corrupção.

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