Compasso empresarial muda o horizonte da folia nas ruas das capitais paulista e fluminense
22/02/2017 11:19
Giulia Vertematti

Embora acreditem que parceria das prefeituras de Rio e São Paulo com produtura privada, para estruturar a folia, deva atrair mais público e investimentos, organizadores de blocos e carnavalescos ressalvam: mudanças devem preservar as tradições culturais 

Revigorado na última década, o carnaval de rua no Rio e em São Paulo responde por aproximadamente um terço dos R$ 6,8 bilhões que, estima o Ministério do Turismo, serão movimentados pela festa neste ano. Ainda de acordo com a projeção oficial, a capital fluminense e balneários como Búzios, Cabo Frio e Angra vão atrair, até a próxima quarta-feira, 1,3 milhão de visitantes. Parte deles se juntará aos foliões locais nos 456 blocos programados, a maioria concentrada na zona sul carioca. A capital paulista segue o compasso: ao lado de Santos, Guarujá, Ubatuba e Ilhabela, reunirá 1 milhão de visitantes e quase 500 blocos inscritos nas prefeituras. Se por um lado o avanço incrementa a folia e a economia, por outro traz desdobramentos controversos – como as restrições geográficas, horário (até o início da noite) e quantidade de participantes (máximo de 20 mil) determinada pelo prefeito paulistano, João Dória, na tentativa de conciliar interesses de carnavalescos, comerciantes e moradores.

Outro reflexo do crescimento do carnaval de rua é a entrada da produtora Dream Factory, especializada na estruturação de grandes eventos, como o Rock in Rio. Parceira das prefeituras do Rio e de São Paulo, a empresa chega com a missão de organizar a gandaia puxada pelos blocos e potencializá-la como lazer e negócio. Para uns, um efeito inevitável, e supostamente benéfico, do salto empreendido pelo carnaval de rua carioca e paulistano. Para outros, uma ameaça à tradição de um traço cultural brasileiro caracterizado, na essência, pela espontaneidade.  

Para organizadores de blocos, o acordo se mostra válido tanto para a execução da festa quanto para quem participa. A maioria é, no entanto, unânime ao ressalvar que as iniciativas destinadas a "estruturar melhor a festa", como argumentam os gestores municipais e os empresários envolvidos, devem preservar as tradições do carnaval de rua e os interesses do folião.

O produtor cultural Mariano Mattos Martins, à frente do bloco Viemos do Egyto que desde a criação, em 2011, considera "a participação de uma empresa de grande porte positiva". Ele conta que teve de "fazer ajustes" à entrada daquela empresa na coordenação do carnaval. Mas considera, por ora, uma mudança benéfica: 

– Com a Dream Factory como principal coordenadora, há uma estrutura mais bem pensada para o bloco, o que tende a atrair um número maior de pessoas às ruas – avalia o diretor do Viemos do Egyto, que anima as capitais paulista e fluminense ao som de tradicionais vozes do axé, como Daniela Mercury, Olodum,Timbalada.

Martins faz, contudo, uma ressalva: o planejamento não deve suprimir características peculiares do carnaval de rua e das agremiações que o inflamam:

– O que não é positivo é a contrapartida entre a companhia e o conceito estético do nosso bloco, que tem como marca a purpurina. Não iremos aceitar nada que vá contra nossos padrões – reforça.

Bloco Viemos do Egyto. Foto: Felipe Campos

Outro bloco com uma visão otimista sobre o embrulho empresarial do carnaval de rua é o Amigos da Vila Mariana. Desfilando há 15 anos pelas ruas do bairro que o batiza, revela-se já um dos mais tradicionais da cidade de São Paulo. Empenhado em enaltecer o samba paulistano e unir os moradores, o presidente Jorge Vespero aprova a parceria entre a iniciativa privada e o poder público:

– Como a prefeitura não tem, de imediato, um setor para cuidar do carnaval de rua, acredito que seja um trabalho válido, pois está nas mãos de especialistas em montar um evento. Entendem do assunto – pondera. – Porém, o melhor negócio seria a Prefeitura se estruturar e organizar o carnaval – opina.

Vespero sugere ainda que os "investimentos feitos pela organizadora sejam mais homogêneos entre os blocos paulistas". Ele aponta um desequilíbrio:

- Na visão deles (organizadores), alguns blocos são interessantes; outros, não. Logo, esse investimento não é igualitário.

Credenciada por eventos como o Rock in Rio e a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a Dream Factory organiza a folia de rua carioca há oito anos consecutivos. Contratada também pela administração municipal de São Paulo, é encarregada da estrutura em torno da festa movida pelos blocos, desde a organização dos desfiles propriamente ditos até a instalação de banheiros químicos e a venda de bebidas e comidas. Segundo executivos da empresa, a entrada na capital paulista representa um reflexo do crescimento constante do carnaval de rua da cidade, que exigia uma produção mais complexa, e um desafio proporcional ao peso econômico e social da maior metrópole brasileira.

Ainda de acordo com a empresa, embora as produções para Rio e São Paulo tenham pontos equivalentes, o planejamento contempla "esquemas" específicios, alinhados aos traços culturais, urbanos e administrativos distintos. Por exemplo, na capital carioca, o carnaval é administrado pela Riotur (Empresa de Turismo do Município do Rio); e na paulista, pela Secretaria Municipal de Cultura. 

A entrada da Dream Factory, que estuda estender o modelo a outras capitais, muda não só a estrutura e a logística do carnaval de rua, mas também a organização dos blocos e alternativas comerciais. As agremiações, observa Martins, devem se ajustar a contrapartidas acordadas com patrocinadores, como a venda de "produtos da marca deles”:

– Isso afeta alguns pontos do bloco, como a comunicação visual e a relação com os vendedores ambulantes.

Apesar de reconhecer benefícios na produção empresarial incorporada ao carnaval de rua paulistano, Vespero também faz ressalvas às novas perspectivas comerciais:

– A maioria dos blocos de São Paulo é independente, por isso precisam de recursos. O fato de uma empresa capitalizar a receita do patrocínio faz com que o bloco não tenha lucro com esses mesmos patrocínios, o que nos dá menos mobilidade – argumenta.

Sob a ótica do mercado, a parceria entre a iniciativa privada e o poder público também é vista, em geral, de forma otimista. Para pesquisador de carnaval e professor Jaime Cezario, integrante da Unidos do Porto da Pedra, a melhor produção tende a oxigenar o carnaval de rua:

Jaime Cezario. Foto: Acervo pessoal

– Na década de 1990, o carnaval de rua quase se extinguiu, pois, o governo deixou de lado. Mas, a partir dos anos 2000, ele renasceu. Agora, é importante que haja uma empresa envolvida na organização, para que essa festa tão tradicional no Brasil, e reconhecida mundialmente, não seja ameaçada novamente.

O presidente do tradicional Cordão da Bola Petra, Pedro Ernesto Marinho, acrescenta que a terceirização do carnaval de rua pretende “evitar gastos com banheiros, segurança, e todos os outros setores envolvidos no evento”:

– Nos anos 2000, quando o carnaval de rua passa a se reinventar, e o número de blocos cresce muito, a prefeitura (do Rio) percebe que precisa de maiores investimentos. Então, não vejo problema algum na entrada de uma empresa privada na estrutura do evento. Até porque confiamos na capacidade de os blocos de se adaptarem às novas circunstâncias sem perder sua essência, sua identidade.

Ele cobra, contudo, mais transparência e espaço decisório para os organizadores dos blocos:

– Os blocos são as estrelas do carnaval, portanto merecem mais atenção. A prefeitura não pode montar a programação do evento sem o conhecimento dos blocos. Essa é a grande queixa que eles fazem, além de que encontrem um lugar mais adequado para os desfiles.

Marinho e Cezario acreditam que, respeitadas as tradições culturais e a espontaneidade inerente ao carnaval de rua, a sofisticação seja proveitosa – sobretudo do ponto de vista econômico. “Quanto mais o carnaval de rua cresce com a terceirização, mais foliões são atraídos pela melhor estrutura e, assim, mais receita e empregos são gerados”, acredita Marinho.

Pedro Ernesto Marinho. Foto: Acervo pessoal

Só na área da 25 de Março, centro popular de compras em São Paulo, o carnaval deve produzir um ganho comercial entre 10% e 12%, preveem os lojistas. Na capital fluminense, as projeções do varejo são mais modestas: aumento de 1% nas vendas, em relação ao ano passado, aponta pesquisa feita do Centro de Estudos do Clube dos Diretores Lojistas do Rio.

Batucada desafia a crise

O carnaval de rua tornou-se, nos últimos anos, uma proeminente fonte de investimentos e receitas. A folia na capital paulista receberá cerca de R$ 15 milhões de patrocínio, equivalente ao triplo do investido pelo setor privado em segurança, logística e infraestrutura em 2016. No ano passado, o custo foi de R$ 10,5 milhões, dos quais R$5 milhões vieram dos patrocínios.

O Rio receberá investimento igual ao de São Paulo. De acordo com a Riotur, os desfiles dos blocos deverão atrair cerca de 1,1 milhão de turistas brasileiros e estrangeiros. Responderão, portanto, por uma fatia significativa dos R$ 3 bilhões movimentados pela festa. Para Marinho, a expansão deve continuar:  

– Sempre perguntam se o carnaval de rua chegou ao limite. A meu ver, não chegou. A tendência do carnaval de rua é se horizontalizar, ou seja, se espalhar mais para o subúrbio, crescer pela Zona Oeste e pela Zona Norte do Rio. A Zona Sul está saturada de blocos, dando a oportunidade para que outros sejam criados em diferentes áreas da cidade, espalhando ainda mais o carnaval.

Outra tendência, projeta Cezario, é a profissionalização se consolidar:

– Com a melhor infraestrutura, a melhor organização, a procura por mão de obra qualificada tende a aumentar.

O carnavalesco não associa, entretanto, o salto de adesões ao carnaval de rua com a entrada de uma produtora privada. Ele atribui o sucesso a fatores como um certo distanciamento do carioca em relação ao desfile das escolas de samba.

Arte: Editoria de arte

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