"Brasil deve liderar processo de reintegração do Mercosul"
28/10/2016 14:28
Cecília Bueno, Raul Pimentel e Camila Gouveia

Analistas avaliam momento conturbado do bloco com governo da Venezuela.

Agência Brasil

O encontro na Argentina entre os presidentes brasileiro, Michel Temer, e argentino, Mauricio Macri, para tratar do futuro do Mercosul, seguido da acusação do presidente venezuelano Nicolás Maduro de que há uma tentativa de “destruição” do bloco, evidencia o cenário de incompatibilidade ideológica existente dentro do grupo, desde agosto com presidência definida. Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai são contra a entrega da presidência para a Venezuela, que, pela ordem alfabética, deveria assumir o posto após o fim da presidência uruguaia. Enquanto os quatro países acusam o governo venezuelano de não ter cumprido as metas do protocolo assinadas quando entrou em 2012, no prazo prometido de quatro anos, o país de Maduro se autoproclama à frente do bloco. Para o professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio Luís Manuel Fernandes, o Mercosul precisa enfrentar as assimetrias políticas e ideológicas existentes entre seus membros para se consolidar institucionalmente e voltar para os trilhos do crescimento. Para ele, o Brasil, primeiro eixo e país mais rico do bloco, “deve ser um líder no processo de reintegração”:

– Esse líder tem que assumir o ônus e o bônus da integração, e fazer uma negociação compartilhada dos desafios, que preserve também os interesses de cada um dos membros de se desenvolver. Caso contrário, o bloco pode ser visto apenas como um instrumento de uma ação que usa a união aduaneira para beneficiar quem tem empresas mais desenvolvidas, mais produtivas, de maior valor agregado, que é o caso do Brasil.

Na visita à Argentina, no início do mês, Temer defendeu a “flexibilização” das regras do bloco, para “dar autonomia aos Estados em suas relações internacionais” e garantir sua “inserção competitiva” no comércio internacional. Logo em seguida, ele partiu para Assunção para tratar com o presidente paraguaio, Horacio Cartes, da ampliação das relações comerciais do bloco. Em resposta, a chancelaria venezuelana transmitiu uma nota acusando a Tripla Aliança – formada pelos governos de Brasil, Argentina e Paraguai – de atentar “contra a estabilidade deste bloco de integração econômica, comercial e social” e desprezar “as potencialidades produtivas de nossos países”. Os três países referidos pelo chanceler estenderam para o dia 1º de dezembro o prazo para a Venezuela se adaptar às regras do bloco e não ser rebaixada para uma espécie de segunda divisão. Junto com o Uruguai, determinaram que vão exercer a presidência até o fim do ano.

Agência Brasil

A Venezuela vive uma crise política e econômica sem precedentes. Maduro enfrenta manifestações contrárias ao seu governo desde 2014. A população venezuelana saiu às ruas nesta quarta-feira contra a suspensão judicial de referendo revogatório pela destituição do presidente. A população protesta contra a corrupção, o aumento da pobreza, os altos índices de criminalidade, a escassez de produtos básicos. Entre as preocupações do bloco estão as acusações de casos de violações de direitos humanos e políticos no país. O impeachment da presidente Dilma Rousseff, a quem Maduro era simpático, contribuiu para desgastar a relação entre os membros. O economista e cientista político Marcelo Nonnenberg, professor de Comércio Internacional da PUC-Rio, não vê possibilidade de diálogo entre Temer e Macri, e acredita que caminho será a expulsão da Venezuela:

– Maduro radicalizou demais. Já está maduro para cair. É melhor esperar que ele saia para discutir a situação da Venezuela, cuja a entrada, em 2012, foi o primeiro erro do bloco. O país, de fato, nunca entrou no bloco, nunca cumpriu os compromissos assumidos. 

Fernandes, por sua vez, teme que considerações político-ideológicas do atual presidente brasileiro possam “prejudicar um projeto que é estratégico para o país e para a América do Sul”. Para ele, o Brasil tinha que ser uma força moderadora dentro do conflito da Venezuela:

 – Com a multiplicação das tensões com os vizinhos do Mercosul, há um risco real de implosão do bloco. Então, preocupa o fato de o Brasil, ao invés de distensionar o conflito, tomar partido, agravando-o. Isso não tem nada a ver com a orientação política ideológica do governo. O próprio ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que é de uma orientação diferente, teve um papel importante em evitar o processo de polarização na Venezuela, justamente para tentar fazer do Brasil uma força de moderação e promoção de convergência. O Mercosul não é um projeto de um governo em particular, é um projeto de Estado. Ele é uma construção longa, avançou no governo Sarney, teve continuidade com o governo Itamar e depois com FHC.

Nicolas Maduro, o presidente venezuelano. Foto: Agência Brasil

Tal conjuntura de impasses políticos derrama sobre a América do Sul um horizonte de incertezas em relação ao futuro do bloco, criado em 1991, com o objetivo de implantar um mercado comum entre os países membros. A aliança, que só chegou a estabelecer a união aduaneira, se enfraquece com o desentendimento dos membros no estabelecimento de uma política única de taxação de produtos importados, a Tarifa Externa Comum (TEC). O preço desse desacordo já começou a ser sentido na economia brasileira, principal potência industrial do bloco, e os custos de importação de cerca de vinte insumos industriais aumentaram. As compras de filme polivinil butiral, por exemplo, um insumo não produzido no Brasil e usado em automóveis e na construção civil, que eram taxados a 2%, agora estão taxadas a 16%.

Segundo Nonnenberg, “são tantas exceções tarifárias, principalmente entre Brasil e Argentina, que mesmo para chamar de zona de livre comércio é complicado”. Ele explica que, com a escalada protecionista dos dois países nos últimos oito anos, não fazia mais sentido manter a união aduaneira. Todavia, com a mudança de governo nos dois países, acha que isso pode voltar a ser discutido:

– Brasil e Argentina devem definir quais são suas políticas econômicas externas. Há uma divergência de interesses dentro dos membros do bloco. Uruguai e Paraguai são praticamente agrícolas. Brasil e Argentina têm maior nível de industrialização e querem manter a tarifa elevada. A primeira coisa a se fazer é garantir a harmonização dessas estruturas tarifárias e reduzir o número de exceções, para tentar aproximar de uma união aduaneira ou voltar a ser só uma zona de livre comércio. Só assim poderemos abordar outros assuntos, discutir a estrutura viária, o fluxo de pessoas e outras políticas externas.

Pesquisador e autor de diversos estudos sobre o Mercosul, Thauan Santos, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, alerta para o risco da restrição do bloco a questões econômicas:

Tudo o que está acontecendo recentemente representa um retrocesso. E não é só econômico. Quando fazemos uma análise do mercado comum, só vemos o avanço do processo de integração pela luz da economia, o que é um erro. Não se veem questões políticas, sociais, a identidade que o bloco quer formar. O Mercosul não é só comércio, há outras preocupações dentro do bloco, energéticas e ambientais, por exemplo. Para que haja um maior desenvolvimento, é necessário pensar além do econômico.

Para Fabricio Pereira da Silva, professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), com a saída dos governos de esquerda no Brasil, na Argentina e no Paraguai, o bloco provavelmente vai adquirir um caráter mais comercial e procurar fortalecer as relações bilaterais:

­– Com Macri e Temer, a tendência é voltar às relações com o Norte, primeiro com os Estados Unidos e depois com a União Europeia. Os membros do bloco atuam cada vez menos conjuntamente. Os interesses econômicos internos sempre prevalecem sobre os do Mercosul.

O presidente argentino, Mauricio Macri. Foto Agência Brasil

A possibilidade de um acordo com a União Europeia (UE) mobiliza as pautas do bloco há 20 anos. Nas visitas à Argentina e ao Paraguai no último mês, o presidente Temer afirmou que iria trabalhar com os países vizinhos para firmar um acordo comercial com a UE. Após uma reunião em setembro com os outros chanceleres dos países do Mercosul, com exceção da Venezuela, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, José Serra, disse que um acordo com o bloco europeu deve sair em até dois anos.

Para Fernandes, o momento de instabilidade institucional, gerado pelo não acatamento da regra de transferência das presidências no bloco, aumenta as dúvidas sobre a capacidade de o Mercosul estabelecer um acordo. Ele ainda ressalta que, embora a Europa e os EUA defendam a abertura do mercado dos outros, é bastante protecionista em relação ao seu próprio. Nonnenberg concorda, e considera que a conversa não tem chance de prosperar, nem pelo lado europeu, nem pelo lado do Mercosul: “A UE quer a redução de barreiras nas indústrias e o bloco sul-americano quer a reduções de barreiras em produtos agrícolas”.

 

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