Analista: desembarque britânico da UE é passo para mundo pior
01/07/2016 08:59
Gustavo Côrtes

Professor de Relações Internacionais Paulo Wrobel e outros especialistas alertam para risco de esfacelamento do bloco e avanço da crise humanitária

Arte: Mariana Salles

Baixada a poeira do desembarque britânico da União Europeia, o Brexit – fusão de “exit” (saída) e “british” (britânica”) – derrama sobre o continente, e o mundo, um horizonte de incertezas mais complexas do que as associadas às imediatas turbulências no mercado financeiro, na fogueira político-partidária inglesa – intensificada com a antecipada sucessão do premier David Cameron –, na cartografia xenófoba, na pior crise humanitária pós-Guerra e nas bases de sustentação da UE e do próprio Reino Unido. Para dimensionar as implicações da decisão tomada por 52% dos aproximadamente 37 milhões que ganharam a madrugada para votar no plebiscito de 23 de junho, talvez sejam necessárias milhares, milhões de outras madrugadas. O professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio Luís Manuel Fernandes alinha-se às projeções de efeitos dominós sobre o restante da Europa. Ele ressalta o risco de dissolução completa da União Europeia, que “não foi capaz de solucionar as crises econômica e humanitária”:

– O resultado do referendo provocará reverberações amplas, ao abrir um caminho novo e cheio de incertezas. Afeta a vida econômica e social do mundo todo, pois coloca em xeque a existência do Reino Unido e da União Europeia, que terá de enfrentar forças conservadoras, críticas ao bloco, e fortalecidas pela vitória nas urnas. O bloco também terá de lidar com questionamentos acerca da capacidade de comandar o continente, na medida em que sai enfraquecido, em termos de governança, com a perda de um de seus pilares: a Inglaterra.

O mapa eleitoral e as primeiras reações separatistas seguintes ao plebiscito revelam uma cisão dos países do Reino Unido e na própria sociedade inglesa.  Enquanto Escócia e Irlanda do Norte optaram pela permanência na UE, Inglaterra e País de Gales escolheram deixar o bloco. Na Inglaterra, observa-se divisão ainda mais clara. Os jovens e a população das metrópoles votaram pela permanência no bloco; os mais velhos e a população interiorana, pela saída. O também professor do IRI Paulo Wrobel teme um  “efeito demonstração”:

– Em princípio, entra em xeque a existência do Reino Unido, não da União Europeia. A não ser que haja um efeito demonstração: países com movimentos nacionalistas, inspirados no Reino Unido, tentarem a mesma manobra. Isso enfraquece o Reino Unido, que se isola, e a União Europeia também fica fortemente afetada. A Inglaterra é um país importante, tradicional. Haverá um processo jurídico de separação que levará alguns anos. O abandono das políticas comunitárias da União Europeia para a formulação de sua própria política externa levará anos e pode implicar traumas aos países dissidentes – projeta o analista.

Wrobel aponta ainda impactos da saída do Brexit para a relação da Irlanda do Norte com a República da Irlanda, ambos integrantes da União Europeia antes do plebiscito:

– Com a saída da Irlanda do Norte (um dos países do Reino Unido) da União Europeia, a relação com a vizinha, República da Irlanda, seria drasticamente alterada, pois não fazem mais parte do mesmo bloco. Isso tende a acelerar a integração dos dois países, que, em menos de 20 anos, estarão unificados – prevê.

Fernandes pondera que, caso Escócia e Irlanda do Norte, países contrários à saída da União Europeia, tentem deixar o Reino Unido para se reintegrarem ao bloco, talvez os mecanismos institucionais da UE seja insuficientes:

– Não há jurisdição relativa à decisão de países britânicos permanecerem na União Europeia. Caso Escócia e Irlanda do Norte decidam sair do Reino Unido, não se sabe se terão que pedir nova entrada na UE.

David Cameron. Foto: Agência Brasil

Para Wrobel, o ex-premier britânico David Cameron, que renunciou logo depois do resultado da consulta popular, é responsável direto por este processo revestido de incertezas e inclinações separatistas. Pois “ele (Cameron) fez um referendo cuja pergunta pretendia manter as coisas como estavam, não mudá-las. Assim, permitiu que um grupo capitalizasse votos”.

– David Cameron não precisava ter feito isso. Fez porque é um politico oportunista. Há dois anos, quando convocara o referendo, Cameron estava preocupado com o avanço da extrema direita. Essa leitura se mostrou um erro eleitoral, pelo qual ele pagará com a carreira política. Ele já é carta fora do baralho. Provavelmente o (ministro da Fazenda britânico, George) Osbourne, parceiro dele, também. O partido está rachado. Quem se fortaleceu entre os conservadores foi o Boris Johnson, ex-prefeito de Londres, que almeja ser primeiro-ministro e foi líder do Brexit.  Michael Gold, um dos caciques do partido, também está na disputa. Os trabalhistas também estão divididos. Se o líder trabalhista Jeremy Corbyn tiver o mínimo de vergonha, ele renunciará, porque a campanha foi pífia – avalia.

Na economia, os efeitos da decisão dos britânicos revelam-se igualmente drásticos, complexos, incertos. Analistas do setor evitam arriscar prognósticos menos superficiais do que a volatilidade do mercado financeiro.  A Standard & Poor’s e a Fitch, agências de classificação de risco, rebaixaram a nota de crédito do Reino Unido. A Moody’s sinalizou um rebaixamento iminente. Para a professora de Relações Internacionais da USP Maria Antonieta Del Tedesco, as reações negativas dos agentes econômicos deve-se, em parte, à falta de um projeto alternativo associado ao desembarque britânico da UE:

– O setor financeiro britânico se opôs à saída, pois, embora provoque melhora econômica em curto prazo, a alternativa vencedora do referendo não é acompanhada por um plano de desenvolvimento que leve em conta as novas realidades da autonomia do Reino Unido em relação à União Europeia.

Para Wrobel, a Inglaterra, segunda maior economia do bloco, atrás só da Alemanha, se enfraquece ao sair da União Europeia:

– Não há vantagem na saída. A Inglaterra, principal economia do Reino Unido, abriu mão de fazer parte de um bloco poderoso, para ir atrás do sonho irrealizável de ser uma grande potência mundial. Será, no máximo, uma Suíça um pouco maior – opina.

Já Fernandes reconhece potenciais benefícios com a saída do bloco.

– A Inglaterra é um país com maior potencial de receber investimentos, e terá maior autonomia na política fiscal. Mas sai enfraquecida estruturalmente, e a renúncia de Cameron aumenta ainda mais a instabilidade – ressalva.

Ainda digerida pela Europa, pelo restante do mundo e mesmo pelo Reino Unido, a decisão britânica não traria, em princípio, vantagens à relação comercial com o Brasil. Embora a agenda de negócios entre o mercado brasileiro e a União Europeia sofra entraves decorrentes de políticas protecionistas sobre produtos exportados, a instabilidade no bloco em nada ajudaria a dirimi-las:

– As trocas comerciais entre Brasil e União Europeia têm sido dificultadas pelo protecionismo agrícola de países como a França. Ao deixar o bloco, intermediário das parcerias comerciais de seus integrantes, o Reino Unido precisaria reorganizar toda a relação exterior – observa Maria Antonieta.

Para ela, o Brasil não se beneficiará de acordos em separado com os países do Reino Unido:

– Negociações individuais com os países do Reino Unido não renderiam grandes vantagens ao Brasil. São economias pequenas, cuja participação do setor agrícola é irrisória. Portanto, não comprariam tantos produtos brasileiros nem provocariam, com a saída, a abertura comercial de países remanescentes do bloco.

Fernandes também não enxerga na mudança uma janela de oportunidade ao comércio exterior do Brasil:

– A possibilidade de negociar individualmente com a Inglaterra não supera os acordos feitos entre Mercosul e União Europeia. As forças vitoriosas no processo de saída do bloco são protecionistas. As regiões da Inglaterra que votaram pela saída não são as metrópoles, e sim regiões nas quais as pessoas querem mais proteção do Estado.

Wrobel admite, contudo, a perspectiva de melhores condições à exportação de commodities (produtos primários):

– Há uma negociação entre Mercosul e União Europeia que já dura cerca de 30 anos. Até agora não se chegou a um acordo, por conta da política agrícola protecionista europeia. A Inglaterra é um investidor razoável e um dos maiores centros financeiros do mundo, além de um grande importador de produtos agrícolas. Pode ser que o Brasil se beneficie na venda de commodities para o Reino Unido graças à saída desses países do bloco europeu.

A metralhadora giratória de consequências complexas da renúncia britânica à UE tende a produzir marcas expressivas na geopolítica europeia. Analistas convergem sobre o fortalecimento dos partidos de extrema-direita no continente e o avanço da xenofobia, na contramão da crise humanitária estampada nos milhões de refugiados. Na prática, o desembarque do Reino Unido mergulha ao menos 4,5 milhões de pessoas num mar de incertezas sobre emprego, renda, moradia, segurança.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 1,2 milhão de britânicos vivem em outros países da União Europeia e 3,3 milhões de pessoas nascidas em outros países do bloco moram no Reino Unido. Na manhã de 24 de junho, eles acordaram imigrantes. Com a saída britânica da UE, avalia Maria Antonieta, forma-se um terreno fértil para montar políticas externa e interna de acordo com os interesses desagregados do bloco.

– Há britânicos que se mudaram para outros territórios do bloco, onde construíram suas vidas, trabalhando e contribuindo com a previdência. Agora essas pessoas não sabem o que acontecerá com sua condição de imigrante, já que possivelmente os países dissidentes não farão mais parte da zona de livre trânsito entre os membros da União Europeia. Isso também vale para pessoas de quaisquer nações do bloco que foram para os países do Reino Unido. No caso da Inglaterra, cidadãos que residem fora há mais de 15 anos não tiveram sequer o direito de votar no referendo. Essa é uma questão difícil de resolver – comenta a professora.

Wrobel ressalta os efeitos graves que se somam à crise dos refugiados:

– Essa questão é seríssima. Desde os anos 40, muitos ingleses saíram para outros países da Europa. Hoje, há cerca de dois milhões deles vivendo no resto do continente. Gerações inteiras foram criadas fora do país de origem de suas famílias. Ninguém sabe quais consequências jurídicas e sociais essas pessoas sofrerão. A imigração é um problema sério. As sociedades vão se tornando multiculturais, o que provoca problemas. Hoje, cerca de 40% da população de Londres é de imigrantes, por isso é mais flexível em algumas questões. A Inglaterra vai fazer o quê? Fechar as portas?

Para Fernandes, “é preciso encontrar uma solução digna para as pessoas que estavam simplesmente exercendo o direito de ir e vir, levando em conta a zona de livre circulação”. Ao espectro do desequilíbrio demográfico, junta-se o risco de uma instabilidade em cascata, alertam os analistas.

O Reino Unido integra, desde 1973, o bloco, no qual os países contribuem com um fundo comum, cujos recursos são repartidos igualmente. Como a Inglaterra tem uma economia mais forte que a maioria dos demais integrantes, a contribuição tem sido uma das representativas. O país colabora com 11,3 milhões (R$ 40,6 milhões), o equivalente a 0,52% do rendimento nacional bruto, e recebe do bloco € 6,9 milhões (R$ 25 milhões), 0,32% do rendimento bruto inglês. Maria Antonieta reitera a importância do Reino Unido e da União Europeia ao equilíbrio da economia e da geopolítica internacionais:

Não acredito que haja interesse de nenhuma das partes envolvidas nesse processo em enfraquecer economicamente a União Europeia, cuja importância histórica abrange a consolidação da democracia, o fortalecimento de instituições e a busca pela paz no continente. A existência de um bloco estável e democrático do outro lado do Pacífico é essencial ao equilíbrio da política global. Além disso, o bloco faz uma distribuição monetária entre as nações mais ricas e mais pobres.

Perspectivas igualitárias não compõem, porém, o esboço dos desdobramentos políticos e socioeconômicos da decisão britânica. Pelo contrário: segundo Wrobel, o acirramento do discurso nacionalista revela-se, ao mesmo tempo, causa e efeito do resultado da consulta popular:

– É um passo para um mundo pior – sintetiza – A criação da União Europeia foi importante na contenção do nacionalismo europeu, que levou o continente a tantas guerras. Aí, motivados por um nacionalismo caboclo, um grupo decide acabar com tudo isso, em nome da independência. Independência de quê?

O resultado foi comemorado por personalidades e líderes alinhados a correntes nacionalistas, como o líder da Ukip (partido de inglês de extrema-direita) Nigel Farage,; a presidente do partido Frente Nacional, da França, Marine Le Pen; e o candidato republicano à Casa Branca Donald Trump. Ainda de acordo com Wrobel, o crescimento de frentes nacionalistas decorre da recusa generalizada à classe política tradicional:

– A raiz de tudo isso é uma critica radical à política como ela é. A ideia de que existe uma conspiração do establishment é cada vez mais corrente. Isso se mostra não só em partidos de extrema direita, mas nos de extrema esquerda também, como o Podemos, da Espanha. Há um movimento contrário aos políticos tradicionais. Mas as alternativas que nós conhecemos são golpes militares ou ditaduras fascistas e comunistas. Infelizmente, enquanto não se encontrar uma maneira melhor de gerir a sociedade moderna, teremos de conviver com políticos profissionais.

Já Maria Antonieta ressalta o avanço da xenofobia:

– Essa manobra (a saída do Reino Unido da EU) tem relação com o avanço do nacionalismo e da xenofobia. Pesquisas mostram que, hoje, a maior preocupação dos ingleses, principalmente os mais pobres, é a imigração. A saída do bloco reflete a expectativa de parcela da população de eximir o Reino Unido da responsabilidade de participar da resolução da crise migratória.

 

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