Livro articula jornalismo e geografia no Brasil
15/12/2016 20:21
Raul Pimentel

Em Territórios do Jornalismo, lançado pela Editora PUC-Rio e pela Vozes, a jornalista e professora Sonia Aguiar mostra como mídia nacional é mais regional do que se supõe.

Ilustração: Diogo Maduell

No jornalismo do mundo globalizado, pode parecer incoerente enfatizar regionalidades locais ao estudar veículos da mídia. Em seu livro Territórios do jornalismo: geografias da mídia local e regional no Brasil, recém-lançado pela Editora PUC-Rio, em parceria com a Vozes, a jornalista e professora Sonia Aguiar contraria essa ideia. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sonia valoriza o aspecto geográfico na análise jornalística, expondo a importância do encontro entre as áreas de geografia e comunicação para desenvolvimento científico.

Em entrevista para o Jornal da PUC Online, a professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Sonia afirma que a desterritorialização supostamente provocada pelos rumos da globalização e pelos avanços das tecnologias digitais é um mito, e apresenta uma detalhada análise dos veículos do país que revela um conteúdo fortemente local, mesmo naqueles considerados de circulação nacional.

Jornal da PUC: A senhora analisa a estrutura e explica a organização de 24 grupos jornalísticos, no capítulo Territórios dos principais grupos proprietários de jornais no Brasil do livro. Como foi realizar esse extenso trabalho, e quanto tempo ele durou?
Sonia Aguiar:
A primeira ideia de escrever um livro sobre jornalismo regional me foi sugerida em 2011 pela jornalista e professora Carla Rodrigues, na época da PUC-Rio. A Editora PUC havia estabelecido uma parceria com a Vozes para uma coletânea sobre jornalismo. Comecei então a levantar o que já havia sido publicado a respeito em livro, e descobri não só que eram poucos como dispersos e frágeis do ponto de vista conceitual. Diante dessa constatação, ampliei o levantamento para teses de dissertações e, em seguida, para artigos apresentados em congressos. Nessas buscas, reparei que quase não apareciam estudos sobre os jornais das capitais de Rio e São Paulo, sob a ótica local-regional, por serem considerados “nacionais”. Foi então que descobri que, pela metodologia utilizada pelo Instituto Verificador de Comunicação (IVC), o instituto que audita o desempenho pago dos veículos impressos do país, e suas versões digitais, apenas o Valor Econômico e o Lance! – dois diários especializados – eram considerados nacionais, por distribuírem mais de 60% de seus exemplares fora do estado onde têm suas sedes. Continuando a coletar dados no IVC, verifiquei que um jornal local de Belo Horizonte (SuperNotícias) vinha disputando os primeiros lugares na lista dos jornais mais vendidos com a Folha de S.Paulo, o Estadão e O Globo havia alguns anos. Foi aí que decidi inventariar o perfil dos 50 jornais brasileiros mais vendidos, por constatar que são majoritariamente regionais, identificando os grupos de mídia aos quais pertencem e os veículos coligados. Foi uma empreitada complicada, por conta da dispersão e desigualdades das informações disponíveis, e também por me deparar frequentemente com dados que se desatualizavam. Ao todo, foram pelo menos dois anos garimpando, sistematizando e categorizando esses dados. Ao final, cheguei a 24 grupos e quatro empresas isoladas (donas de apenas um jornal e seu respectivo website).

Jornal da PUC: Desde 2010 a senhora realiza pesquisas nas fronteiras da geografia com a comunicação ambiental. O que a levou a explorar esse campo de estudos da geografia e da comunicação?
Sonia Aguiar:
Foi uma aproximação progressiva. Na minha tese de doutorado, quando pesquisei as ações de informação e comunicação em uma rede eletrônica utilizada por ONGs, movimentos sociais e ativistas (antes da “era da internet” no Brasil), percebi que sempre havia um componente geográfico nas articulações desses grupos. Podia ser uma campanha contra a construção da Hidrovia Paraná-Paraguai na fronteira oeste, ou a favor de cisternas para coletar água da chuva no sertão nordestino, por exemplo, sempre acionando meios de comunicação locais e regionais. Quando vim para a Universidade Federal de Sergipe, em 2009, propus um projeto de pesquisa sobre a cobertura da Transposição do Rio São Francisco em jornais do Nordeste, no qual a necessidade de estudar conceitos geográficos para entender as referências espaciais da comunicação ficou ainda mais evidente, e a questão regional se sobrepôs. Em 2010, submeti ao edital universal do CNPq o projeto Geografias da Comunicação Ambiental no Brasil, que foi aprovado. Pude então ter acesso a uma bibliografia estrangeira que eu desconhecia, tanto sobre a comunicação ambiental (environmental communication), uma área de estudos em processo de consolidação, quanto do emergente campo interdisciplinar denominado Geografias da Comunicação (Communication Geographies). Esta pesquisa teve como desdobramento meu projeto de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFF, que resultou no livro Territórios do jornalismo, com o generoso aporte de Rogério Haesbaert [geógrafo estudioso de questões de território].

Capa do livro Territórios do Jornalismo (Foto: Raul Pimentel).

Jornal da PUC: A senhora destaca o dinamismo dos grupos de comunicação. Acredita que esses movimentos de vendas e incorporações têm a ver com o cenário econômico recente ou é algo comum do mercado midiático brasileiro?
Sonia Aguiar:
Decididamente não tem a ver com a crise política que provocou a atual crise econômica, a partir de 2014. As experiências de abertura, fechamento, compras e fusões de veículos jornalísticos no Brasil variam muito conforme os contextos locais e regionais e os modelos de negócios e de gestão adotados por cada grupo ou empresa. A venda de todos os veículos de comunicação do Grupo RBS em Santa Catarina, que surpreendeu o mercado em março de 2016, por exemplo, foi um desdobramento da crise institucional provocada pelo envolvimento do nome do até então maior conglomerado regional de mídia do Brasil na Operação Zelotes, deflagrada pela Polícia Federal um ano antes, inicialmente para apurar pagamentos de propina a membros do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) para que multas aplicadas a empresas fossem reduzidas. Outros grupos tiveram que se redimensionar após apostar alto e não conseguir a resposta desejada. E há ainda grupos que surgem aproveitando-se da fragilidade de outros, como o Grupo Opinião de Comunicação (GOC), braço midiático do Hapvida, principal operador de planos de saúde do Norte e Nordeste, que adquiriu emissoras de rádio, TV e um jornal dos Diários Associados, além de outras emissoras locais de televisão em cinco estados nordestinos. Ou ainda o Grupo NC, formado especificamente para adquirir os veículos do RBS em Santa Catarina por dois empresários bilionários dos setores farmacêutico e petroquímico. Esse dinamismo no cenário midiático de todas as regiões do país foi um desafio para o livro, que infelizmente acabou ficando com algumas informações desatualizadas, como a crise econômica de O Dia por conta das mudanças de prioridades do grupo português Ongoing, que havia comprado o jornal carioca com um mundo de promessas.

Jornal da PUC: A senhora faz, a partir da página 68, uma classificação dos tipos de jornalismo de acordo com suas características geográficas e localizações. Como foi a escolha das categorias, tendo em vista que estamos em um contexto globalizado e todas as páginas digitais podem ser vistas em qualquer parte do mundo?
Sonia Aguiar:
Aprendi com meu supervisor de pós-doutorado que a desterritorialização supostamente provocada pelos rumos da globalização e pelos avanços das tecnologias digitais é um mito. Há vários indicadores de que, apesar de poder ser acessado de qualquer parte do mundo, um veículo local ou regional produz e organiza seus conteúdos com ênfase no princípio de proximidade com o leitor e com a realidade em seu entorno. Na recente tragédia com o time da Chapecoense, um portal de Recife, o NE10 [portal do Jornal do Commercio], inseriu um mapa da América do Sul em uma das retrancas da matéria principal, mostrando a rota que o time de Santa Catarina fez até as proximidades do aeroporto de Medelín, na Colômbia. Nenhum dos três maiores portais de notícias do país fez isso. O acidente ganhou relevância para esse veículo porque nele morreram dois jogadores pernambucanos [o atacante Everton Kempes, 31 anos, natural do Carpina, e do volante Cleber Santana, 36, capitão do time, de Abreu e Lima]. Mesmo quando cobre, ou divulga, um acontecimento longínquo como o acidente da Colômbia, a construção narrativa orienta-se pelos referenciais identitários, como no exemplo do NE10, que destacou a morte dos jogadores pernambucanos. Há também indicadores de que os sites dos jornais locais e regionais têm aproximado as pequenas cidades mais do que alguns diários impressos têm sido capazes de fazer. Mas ainda precisamos de muitos estudos para entender por que o Jornal de Piracicaba (SP) permanece na lista dos 50 mais vendidos do país, enquanto o centenário O Mossoroense (RN) deixou de circular porque sua audiência na web era quase 70 vezes maior que a do impresso.

Jornal da PUC: A orelha do seu livro menciona um resgate do seu “gosto da infância pela geografia a partir das redes sociais”. A que essa passagem se refere?
Sonia Aguiar: 
Talvez por ter tido bons professores dessa disciplina no primário (equivalente ao atual Ensino Fundamental), sempre gostei mais das aulas de Geografia do que das de História. Meu primeiro encantamento com a matéria foi quando uma professora trabalhou o mapa da cidade do Rio de Janeiro em sala de aula e depois organizou uma excursão de dia inteiro para visitarmos os principais locais que havíamos visto no papel, de uma ponta à outra. Foi mágico! E aí essa relação entre os lugares e suas representações esteve presente em diversos momentos da minha vida. Sempre planejo minhas viagens a partir de mapas, e nas aulas de jornalismo costumo destacar a importância dos referenciais espaciais na narrativa, sobretudo considerando “o outro” que não conhece as localidades, regiões, países onde ocorreram os fatos dos quais falamos. 

Jornal da PUC: Na sua opinião, qual é o futuro do paradigma midiático atual, em que há uma crescente migração para o digital e o uso de aplicativos em dispositivos móveis para o consumo de notícias?
Sonia Aguiar:
Todos esses recursos estão sendo incorporados pelos principais grupos de mídia em todas as regiões do país, em maior ou menor grau, e com características adaptadas a cada contexto sociocultural. O Brasil é muito diverso, mas nos acostumados a olhá-lo apenas pelo “paradigma” dos jornais e redes de TV do eixo Rio-São Paulo. Porém, os meios digitais estão permitindo a disseminação de outros olhares e outros falares. Para compreendê-los é preciso estudá-los a partir das suas próprias características, e não como se fossem modelos inferiores dos ditos veículos de “prestígio nacional”.

Sonia Aguiar (Foto: André Teixeira)

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