Encontro debate intolerância religiosa e territorial
06/12/2016 17:00
Gabriela de Vicq

Em encontro organizado por Departamento de Ciências Sociais, ex-moradora da Vila Autódromo e indígena criador da Rádio Yandê conversaram sobre seus processos de resistência.

A Vila Autódromo era o endereço da Mãe de Santo Luizinha de Nanã e de cerca de 2.500 outras pessoas, que tiveram que sair de seus lares para a construção do Parque Olímpico. Localizada na Barra da Tijuca, sua topografia não permitia que houvesse rotas de escape para bandidos, o que fazia da vila um lugar pacífico e sossegado. Lá, Luizinha de Nanã manteve sua casa de candomblé por 20 anos. Segundo ela, o desespero da vizinhança começou quando anunciaram as Olimpíadas - ela e outras 20 famílias resistiram até o fim e não queriam abrir mão das terras.

Mãe Luizinha de Nanã. Acervo pessoal.

– Nós todos tínhamos uma concessão de uso e a escritura provisória por 99 anos, com direito de moradia que nos foi dada pelo governador Leonel Brizola. Tínhamos o direito de ficar lá, a terra era nossa. Eles tentaram diversas formas diferentes para nos tirar, através de dinheiro e de intimidações. Eu fui ameaçada de morte pela prefeitura, mas fizeram de uma forma que não consegui provar. Eles não são amadores. Recebi uma ameaça bem informal, através de um telefonema. Falaram que sabiam onde eu estava e que levariam milicianos para acabar comigo. A maioria cedeu às pressões e saiu. Eu fiquei e resisti.

De acordo com ela, a luta de três anos foi desigual devido à corrupção política e às coerções feitas por empreiteiras. No dia 23 de fevereiro, quase de madrugada, uma juíza fez a emissão de posse, permitindo a demolição das casas. Luizinha de Nanã contou que em menos de 24 horas sua casa estava no chão, sem que pudesse fazer uma mudança digna. Ela não estava interessada nos recursos financeiros oferecidos: só queria proteger o espaço de sua casa religiosa. O que mais a incomodou foi o descaso que tiveram com a terra, as árvores e os objetos sagrados.

– Meus objetos religiosos e meus animais ficaram espalhados em casas de amigos, sem lugar apropriado. Em momento algum eu liguei para o dinheiro. Tudo o que eu pedia era compreensão pela minha terra sagrada. Eu não sei a religião de vocês, mas a não ser que sejam ateus, sabem que todo espaço em que haja louvação a um ser maior vira sagrado. Ali existia uma energia muito profunda construída por nós, e eles não respeitaram nada. Falavam que tudo o que eu tinha era lixo ­– desabafou a mãe de santo, emocionada e com a voz trêmula. O turbante colorido que usava contrastava com suas expressões apagadas.

Luizinha de Nanã questionou a forma preconceituosa como a remoção foi feita, sem possibilidade de diálogo. Faz também um apelo para que o respeito seja mais difundido. Considera essenciais encontros como o organizado pelo Departamento de Ciências Sociais, para que haja a troca de experiências e a construção de empatia e solidariedade pelo outro.

– Todos nós temos direitos e devemos ter respeito um pelo outro e sua religião. Conversas como essas são importantes para que possamos articular e tentar arejar a cabeça para novas realidades. É necessário que falemos sobre as barbaridades do governo e do mundo, sobre os preconceitos e a discriminações. Embora falemos sobre coisas tristes e desagradáveis, é um prazer dividir e multiplicar essa ideia de redenção com vocês.

Anápuáka Muniz é da etnia Tupinambá e do grupo indígena Pataxó Hã-hã-hãe, que ocupa terras no munícipio baiano Pau Brasil. Eles estão nesse território desde 1651, só concedido oficialmente pelo Estado da Bahia em 1920. Ao longo dos anos, tiveram que ser reassentados devido à expansão das plantações de cacau. Segundo Anápuáka, títulos de propriedade foram dados “gentilmente” pelo governo aos fazendeiros, empresários e até a um apresentador de televisão. Essa medida gerou confrontos armados, com mortes e resistência por parte dos indígenas. “Mais de 80% dos meus amigos de infância não existem mais na forma humana, só em espírito. Foram todos assassinados”, contou ele. Desde 1982, a Fundação Nacional do Índio luta na justiça pela anulação dos títulos.

Anápuáka Muniz. Acervo pessoal.

– Os povos indígenas têm talento e habilidade quando se trata de resistir. Já nascemos para isso, já nascemos em um país que nos mata. Nascer indígena no Brasil é já nascer morto. Não existe nenhuma prioridade, vantagem ou glória em ser indígena aqui. Sempre nos colocam como pessoas difíceis, que só trazem problemas para o país e que impedem o progresso. Já são 516 anos de invasão e resistência.

Anápuáka explicou que os Tupinambá têm a tradição de aprender sobre seus opressores. Eles acreditam que a única forma de lutar contra os não-indígenas é a partir da absorção de seus conhecimentos e da compreensão de sua lógica. Pretendem entender desde a língua até as práticas sócio-políticas, em uma espécie de “antropologia do não-indígena”.

– A minha formação em resistência começou de forma prática na infância. Fui alfabetizado aos 5 anos de idade. Os primeiros presentes que ganhei eram livros de história, de matemática, de biologia, de química, e enciclopédias. Meus pais entenderam que eu tinha que aprender a cultura não-indígena, para que pudesse atacá-los judicial, intelectual ou fisicamente. Até quando seremos desmoralizados com um discurso irracional, de que não somos mais indígenas porque usamos tecnologias e roupas? Podemos usar o que vocês usam, sem deixar de sem quem nós somos – disse Anápuáka, que calçava um All Star vermelho de cano alto e usava uma caneta de penas para escrever.

Anápuáka também se questiona como os não-indígenas podem ser tão alienados dentro desse contexto opressor:

– Como é possível não resistir? Por que consumir produtos de empresas que matam mulheres, idosas, crianças, a água, os rios, a vida. Não faz sentido comer um pedaço de carne de um boi que pastou em cima de crianças indígenas mortas. Como pode ser ”cool” se divertir com dinheiro que vem de produtos transgênicos plantados em terra cheia de sangue? Aos 9 anos, minha primeira arma foi um Winchester 22. Atirei várias vezes, e quantos morreram eu não sei. Sei que estou vivo e, para defender meu território, faço qualquer coisa.

E ele não fala apenas dessa região da Bahia. Segundo Anápuáka, o Norte também vem sido atingido devido à construção de usinas hidrelétricas, que afetam diretamente a vida de 11 etnias, além de ribeirinhos e quilombolas. “É preocupante porque toda essa fauna e essa flora que não vão mais existir”, comentou. No Brasil existem 305 etnias diferentes, com cerca de 274 línguas, segundo o IBGE. Para o convidado, preservar essa cultura é um modo de resistir.

Aos 15 anos, Anápuáka percebeu o poder da tecnologia quando criou, ampliou e xerocou uma fanzine sobre drogas e prostituição. Lançou no condomínio que viera morar no Rio de Janeiro, em 1987, e assustou vizinhos. Ele foi detido na delegacia e amou a sensação de incomodar as pessoas a partir de algo que tinha produzido. Depois disso fez várias outras revistas e sentiu vontade de continuar no meio da comunicação. “Se isso funcionava para emissoras que tinham concessão negociadas na ditadura, como a Globo, por que não funcionar para populações de minoria? Indígenas, quilombolas, negros, ciganos. Temos que deixar bem claro que temos direito à comunicação”, afirmou.

– Como eu faço Comunicação, vejo muitas notícias e desgraças in loco. Desgraças essas que não chegam em mídias alternativas, como Globo, Band, Record. Isso mesmo, mídias alternativas. Porque se fossem realmente mídias dirigidas a favor das necessidades do povo, seriam mídias representativas. Elas só fazem desserviço, nos colocando como selvagens irracionais.

Anápuáka é graduado em Marketing “só para ter canudo e salário”. Começou sua trajetória na Comunicação dentro da Associação da Rádio Comunitária do Estado do Rio de Janeiro e, em 2001, participou do Índio Online ­– projeto que, pela primeira vez, conectava os indígenas do país. Em 2013, junto a outros dois parceiros, desenvolveu a Rádio Yandê. Foi a primeira rádio web indígena brasileira, feita e direcionada para eles próprios. Em 2016 eles completaram três anos e agora contam com 172 colaboradores.

– Agir como mídia indígena é gerar resistência o tempo todo. Queremos multiplica-las pelo país, em diversos meios, para mostrar a visão do próprio indígena sobre as coisas. Toda versão dita pelo não-eu é colonização do pensamento. Não expressa o mesmo sentimento. Minha vida inteira passou pelo processo de entender quem eu era, quem eles eram e quem nós somos.

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