Debate sobre ensino da arte lembra 200 anos da Missão Artística Francesa
11/05/2017 16:58
Gabriela de Vicq

Historiadora Ângela Âncora da Luz traçou panorama das academias de belas artes no Brasil e no mundo. Diretor da Casa Franca-Brasil, Marcelo Campos destacou papel do museu como propagador de conhecimento.

Encontro sobre ensino da arte na Casa França-Brasil. Foto de divulgação

O prédio da Casa França-Brasil, no Centro do Rio, é apenas um dos muitos exemplos da herança da Missão Artística Francesa na cidade. A casa, de 1820, foi uma encomenda de D. João VI ao arquiteto Grandjean de Montigny, um dos artistas franceses que chegaram ao país em 1816, para estabelecer um ensino oficial e acadêmico de artes plásticas no país. Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay compunham o grupo, que, liderado por Joaquim Lebreton, fundaria a Imperial Academia e Escola de Belas Artes, dez anos depois. Os 200 anos do ensino formal de artes no país foi lembrado e debatido no Seminário Internacional Ensino da Arte Hoje, na Casa França-Brasil.

Além da comemoração, o objetivo dos encontros era refletir o ensino de arte no país, inaugurado pelos artistas da Missão. Marcelo Campos, diretor da Casa França-Brasil, lembra que a França foi um modelo norteador para essas escolas, que ainda hoje seguem os padrões franceses e o estilo neoclássico.

Ao falar sobre o início da Academia de Belas Artes no Brasil, a historiadora Ângela Âncora da Luz, professora de História da Arte e da pós em artes visuais da Escola de Belas Artes da EBA/UFRJ, fez uma retrospectiva sobre o surgimento das universidades no mundo. As primeiras escolas superiores foram criadas no Irã, no Egito e no Marrocos – essa última em 859 a.C. Já a primeira universidade dentro dos padrões atuais apareceu no século XI, e pertencia a Bolonha, na Itália. Depois surgiu a Universidade de Oxford e a Universidade de Paris – há um embate entre historiadores sobre qual teria sido a primeira.

Até esse momento, todo o ensino e toda construção intelectual e artística eram encontrados exclusivamente dentro dos muros dos mosteiros. O século XII trouxe, com o início da formação dos estados modernos, um florescimento das universidades. Era o século da escolástica, que impulsionou a conciliação do pensamento cristão a um sistema de pensamento racional. Ainda no século XII, as universidades receberam traduções hispânicas de versões árabes das obras de Aristóteles, o que permitiu um grande impulso de conhecimento. No século seguinte, Santo Agostinho deixou de ser o eixo do pensamento cristão, possibilitando a construção de um novo pensamento baseado na filosofia aristotélica, cada vez mais distante do clero.

– Foi entre 1520 e 1800, então, que nasceram as universidades modernas. Surgiram com o movimento da Reforma Protestante, que possibilitaram as novas formas de conhecimento, antes centralizados sob o poder católico. Essas novas universidades tinham dois pontos fulcrais: a necessidade do desenvolvimento da pesquisa e a primazia da liberdade acadêmica – explicou a professora.

As academias de belas artes representavam avanço cultural e inserção no chamado mundo desenvolvido. Na segunda metade do século XVIII, todo grande centro europeu tinha a sua, menos Portugal. Segundo Ângela, criar uma academia aqui poderia ser uma forma de prestigiar D. João, chamado de “rei fujão” pelos franceses por ter fugido para a colônia, na invasão de Napoleão. Até então, a corte não estava interessada em desenvolver o ensino e a cultura no Brasil – pensavam que, com o conhecimento, poderiam querer independência.

– No momento em que convida os artistas franceses, D. João estava sendo contraditório com as atitudes da corte de não educar o povo. Mas estava criando uma academia de belas artes no lugar em que estava, e isso era positivo para sua imagem. O salário que ele pagava aos artistas era altíssimo, porque percebia a importância de incentivar a cultura naquele momento. Os artistas brasileiros, por sua vez, não ganhavam nada. E ainda precisaram engolir o estilo neoclássico, completamente oposto à estética barroca colonial da época.

Para Ângela, uma escola ideal é aquela que privilegia os saberes e a pesquisa, ao mesmo tempo em que se abre de uma forma completamente democrática ao povo. A historiadora mencionou os pintores Estêvão Silva e Cândido Portinari, acolhidos pela academia, mesmo vindos de cenários pobres. O primeiro era negro e filho de escravos africanos, e pintava naturezas mortas ainda no período escravocrata. Portinari, por sua vez, era filho de imigrantes camponeses e precisava dormir na banheira de uma pensão, porque não tinha dinheiro para pagar uma cama.

– Eles foram aceitos na academia porque os princípios de aceitação eram os da Missão Francesa. Queriam que o mestre fosse responsável pela transformação de qualquer artista escolhido para entrar. Esse princípio de liberdade é o que deve reger uma universidade até hoje – afirmou Ângela, que como diretora da Escola de Belas Artes por duas gestões (2002 a 2010), ofereceu aos próprios estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo o projeto de construção de um novo prédio.

O seminário, parceria da Casa França-Brasil com o Consulado Geral da França e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, encerrou a programação das comemorações em torno do Bicentenário da chegada da Missão Artística Francesa no Rio de Janeiro, com um programa cultural reunindo instituições dos dois países desde 2016.

 

Casa Fraça-Brasil. Foto de divulgação.

Programação educativa

A Casa França-Brasil recebe em média 400 visitantes por dia. Marcelo Campos, diretor da Casa, há um ano, queria tornar a programação mais educativa. A ideia de um centro cultural em torno do ensino da arte começou a ser posta em prática, e o conceito de museu social – que não só oferece relíquias, mas discute publicamente, incorporando a comunidade no debate – começou a ganhar forma.

– Educação não é privilégio. Deve ser fomentada e fornecida pelo Estado. A Casa França-Brasil passou a ser um lugar de ensino, de preparação de artistas. Trouxemos alunos da Uerj como bolsistas. Por ser uma casa do Estado, deve ser devolvida para ele. A arquitetura desse lugar é como uma praça coberta, quase sem paredes. Estamos fazendo um reuso dessa arquitetura, a configurando como um centro cultural. Particularmente, como professor, nunca consegui dissociar arte de ensino – disse o diretor da Casa, que além de oferecer cursos nas áreas de Antropologia da Arte e de Curadoria, organiza seminários referentes a cada exposição, buscando o diálogo aberto com o público.

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