Novas tecnologias e formatos reinventam clubes de leitura
24/05/2017 18:57
Fernanda Teixeira

Livraria Leonardo DaVinci retoma encontros, que se multiplicam em versões infantis, feministas e online.

A sexagenária Leonardo da Vinci retomou, em março, o clube de leitura. A iniciativa da livraria carioca fundada em 1952 reforça a redescoberta desses encontros, ora reinventados sob versões temáticas, como infantis e feministas, e tecnológicas, como as relacionadas aos encontros online. Em meio às informações aceleradas nas plataformas digitais e ao peso crescente do virtual nas atividades cotidianas, a multiplicação da leitura em grupo revela-se pródiga a aspectos sociais e cognitivos. Assim avalia a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da PUC-Rio, Érica Rodrigues. Como a atividade envolve habilidades diferentes das exigidas na leitura individual, esclarace a professora, a leitira em grupo favorece não só a memorização mas o envolvimento daqueles que ainda não desenvolveram o hábito:

— Em grupo, há diferentes habilidades em jogo. Na construção coletiva, é possível se beneficiar ao ver que estratégia o outro usa para ler o texto, que aspecto chamam a atenção de um leitor que não chamaram a atenção do outro. Ler coletivamente amplia a construção de sentido do texto pela troca com o outro. Falar sobre o que se leu fortalece o processo de memorização e serve como incentivo. Quanto mais se lê, melhor se lê — argumenta — Ao ler literatura, nos deparamos com deferentes personalidades, vários modos de ação, e dramas interiores, contados de distintas formas. Isso expande a capacidade de ver o mundo. O afetivo e o cognitivo são vistos como coisas completamente independentes, mas o afetivo pode ser um caminho para desenvolver ainda mais o cognitivo — ressalta a especialista em psicolinguística, área que analisa os processos cognitivos na produção e compreensão de linguagem. 

Clube de leitura da Livraria Leonardo da Vinci, Foto cedida por Daniel Louzada

Mais do que uma decodificação de palavras ou mensagens, a leitura de livros produz também benefícios para a autoestima e a socialização, constatam organizadores e participantes desses clubes. Á frente da Da Vinci desde fevereiro, Daniel Louzada revela-se um entusiasta de iniciativas do gênero. “Podem surpreender até os mais céticos”, diz ele, graças à riqueza das discussões e ao "ambiente amistoso" construído. Louzada atribui parte da revalorização dos clubes de leitura a um “certo cansaço digital com trocas de mensagens efêmeras, superficiais": 

— Participar de um grupo de debate sobre livros é algo que surpreende mesmo os céticos. Já ouvi vários testemunhos disso. Surpreendem a riqueza da discussão e o ambiente instigante e agradável formado entre pessoas quase sempre até então desconhecidas. Acredito que o fortalecimento dos clubes de livro decorra de um certo cansaço digital. Temos todos os meios para trocar e discutir mediados pela tecnologia, mas, em boa parte das vezes, o que se vê nas redes não é uma troca, mas algo estéril — ressalva. 

A livraria coordena dois clubes presenciais. O Leituras no Subsolo dedica-se a obras de baixa circulação ou pouco divulgadas. Já o Lendo Chimamanda no Rio discute a obra completa, e traduzida, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Há também um Clube de Leitura Virtual, pelo qual assinantes recebem mensalmente uma obra eleita por profissionais da casa. 

Na PUC-Rio, uma parceria do iiLer (Instituto Interdisciplinar de Leitura) com a Gerência de Recursos Humanos reúne, quinzenalmente, funcionários da Universidade em torno de crônicas, contos, poesias, romances. A ideia surgiu como um complemento ao programa de formação de leitores oferecido semestralmente, o Destrava Línguas.

 

Clube de leitura dos funcionários da PUC, Foto: Matheus Aguiar

Os participantes leem juntos em voz alta, depois discutem aspectos relevantes dos textos. A  para ao final seguirem com a leitura individual em suas casas. A organizadora e mediadora dos encontros, Nádia Barbosa, do iiLer, esclarece que não há regras para a escolha dos livros, selecionados conforme as características dos grupos formados a cada semestre. Ela observa, além do desenvolvimento da leitura propriamente dita, "o amadurecimento pessoal" dos leitores:

— Existe uma generosidade grande no grupo: todos se aceitam. Alguns consideram o clube quase uma terapia, a leitura ajuda no dia a dia, dizem sair mais leves. Muitos acabam se tornando amigos e organizam visitas conjuntas a exposições, museus. É notório o benefício na autoestima e na timidez. 

 

Funcionários da PUC-Rio no clube de leitura, Foto: Matheus Aguiar

Lima Barreto é a bola da vez nos encontros organizados por Nádia no campus. Uma escolha alinhada à homenagem que o escritor receberá na Festa Literária de Paraty (FLIP), em julho. "Temas atuais do meio literário também deixam o grupo motivado", justifica. 

Aos clubes de leitura tradicionais, revitalizados por novos formatos, somam-se iniciativas alimentadas por novas tecnologias. Em experiências com a dicção da internet, leitores pagam uma mensalidade para receberem em casa livros sobre os quais são realizados, em seguida, debates virtuais. A possibilidade de participar das discussões sem sair de casa têm atraído cada vez mais interessados, como a estudante de Direito Ana Clara Jansen, de 18 anos. Há aproximadamente seis meses, ela trocou os clubes de leitura presenciais pelo online. Diz que ajuda a manter o ritmo de leitura de, ao menos, um livro por mês. Amante de clássicos e da literatura nacional, Ana Clara considera "muito produtiva" a experiência: 

— O debate sobre os livros, mesmo online, é muito produtivo e engrandecedor. O clube de que participo mantém em segredo a leitura do mês até a data da entrega do livro. A surpresa é outra vantagem. Também é bacana o debate ficar registrado no grupo online, acessado a qualquer momento. Por outro lado, não temos a simultaneidade do clube presencial, nos quais as considerações são mais facilmente assimiladas — compara.

A estudante empolga-se também com os clubes de leitura infantis, que têm ganhado espaço no Rio e em outras capitais. Não raramente empreendidos por contadores de histórias especializados, promovem o mergulho na leitura — em vários casos, na inciação da leitura — por meio de recursos lúdicos.

Assinante de clube de leitura infantil, Acervo pessoal Andressa Costa

Andressa Costa, profissional da área de Letras, é fundadora do projeto Poeirinha Books. O clube de leitura infantil procura desenvolver dinâmica equivalente à dos adultos. Nasceu como consequência quase inevitável do sucesso da troca de livros infantir usados organizada por Andressa (daí o nome Poeirinha). Antes dos encontros, cada participante recebe em casa um kit com o livro da vez e algum recurso que ajude os pais a contar a história. "O projeto não é focado só na leitura, mas em estreitar os laços entre as famílias", ressalta. Para ela, os clubes de leitura infantis têm uma característica singular:

— Passam pela educação das famílias: educar as famílias para cosntruírem tempo de leitura. A leitura, além de ajudar no desenvolvimento cognitivo da criança, desenvolve o afeto entre as famílias. As crianças aprendem pelo exemplo, não pelo discurso. Os pais não perdem, e sim ganham tempo reservando um momento para contar histórias aos filhos.

 

Clube de leitura para crianças, Acervo Andressa Costa

A curadora descarta uma competição entre o analógico e o digital, e entre o real e o virtual, para ampliar os horizontes à leitura. Pelo contrário: 

— A tecnologia não tem volta. O importante é incorporar a leitura na rotina da criança. Existe o tempo do tablet e o tempo do livro, como atividades que se complementam, não competem. A ideia é inserir a leitura na vida das crianças. É preciso educar para o livro, para o contato, para experiências como virar a página, uma experiência de descoberta, de criatividade, lúdica. Muitos pais não querem que os filhos sejam privados dessas experiências por viver na era da tecnologia.

A professora Érica Rodrigues concorda com a curadora de livros infantis tanto em relação a uma influência positiva da tecnologia quanto à importância de desenvolver o hábito de ler desde os primeiros anos de vida. A especialista em psicolinguística também alerta para a necessidade de a escola trabalhar a capacidade de atenção desde cedo, em especial, diante da abundância de informações disponíveis nos meios digitais:

— A escola em algum momento vai precisar trabalhar e desenvolver a leitura de textos na internet. Há processos cognitivos ligados à atenção. São funções executivas do cérebro que têm a ver com a memória, a capacidade de alternar tarefas e a manutenção de informações. Ler exige uma atenção focada e essa atenção focada é essencial para o aprendizado. Quanto mais cedo os pais expuserem as crianças à leitura, melhor essas habilidades se desenvolvem — explica a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem do Departamento de Letras da PUC-Rio — As crianças manipulam um tablet ou um celular com mais facilidade que muitos adultos e já buscam informações no formato de hyperlink, na web. A leitura na internet não prejudica o hábito de leitura. É apenas uma outra forma de ler. A leitura na internet mobiliza outras habilidades de leitura, que ainda precisamos explorar porque abre a possibilidade de uma multidão de leituras potenciais — reitera a especialista.

Outra opção integrada à nova onda dos clubes de leitura remete aos encontros de acento feminino e, frequentemente, feminista. Profissionais de Letras, Michelle Henriques, Juliana Leuenroth e Juliana Gomes passaram a questionar por que seus autores preferidos eram apenas homens. Ligadas ao feminismo, se inspiraram na escritora Joanna Walsh, que em 2014 lançou no Twitter a hashtag readwomen2014 (#leiamulheres2014), para criar o Leia Mulheres. A inciativa estimula a leitura, o debate e a divulgação de livros escritos por mulheres. Assim, organiza clubes de leitura e, na mesma linha, ações literárias em livrarias, centros culturais e bibliotecas. Homens podem participar dos debates, mas a mediação e curadoria são exclusivas das mulheres.

 

Encontro do Leia Mulheres em São Paulo, Acervo Michelle Henriques

A primeira edição do clube remonta a 2015, na Livraria Blooks, em São Paulo. Com o êxito do encontro  em 2015, as organizadoras propuseram versões congêneres no Rio e em Curitiba. Já se estendem a 40 municípios, em todas as regiões do Brasil.

Juliana Leuenroth, Michelle Henriques e Juliana Gomes, criadoras do Leia Mulheres

Desde setembro do ano passado, as idealizadoras levaram o clube para o Centro Cultural São Paulo, onde o público se mostra mais diversificado. No Rio, seguem os encontros na filial da Livraria Blooks. O próximo está marcado para hoje (24 de maio).

– As coisas têm melhorado para as mulheres no mercado editorial brasileiro. Têm havido mais divulgação e mais escritoras estão se tornando conhecidas. No entanto, ainda é um meio muito elitista e dominado por homens. Acreditamos que a literatura é para todos, não deve ficar restrita ao meio acadêmico e distante das pessoas. Queremos tornar a literatura escrita por mulheres popular e acessível a todos. Tem sido muito gratificante ver os resultados desse trabalho — conta Michelle Henriques, uma das fundadoras do Leia Mulheres.

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