Urnas expõem crise de lideranças e reforçam urgência de reforma política
01/11/2016 13:47
Gustavo Côrtes

Disputa interna tucana, reorganização de forças ao centro e à esquerda e da sombra da Lava-Jato embaralham jogo político.

As urnas municipais consolidaram recados e horizontes esboçados desde as Jornadas de Junho, em 2013, e a crise política irrigada pela Lava-Jato, que culminou no afastamento da presidente Dilma Rousseff. Este é o balanço das eleições para analistas ouvidos pelo Jornal da PUC, unânimes ao apontar meia dúzia de indicadores emblemáticos extraídos das Eleições 2016: a incidência recorde do não-voto, a soma de abstenções e votos brancos e nulos acima da média histórica, um contundente retrato do desencanto com o sistema político tradicional e, portanto, um sinal da urgência de uma reforma no modelo de representação democrática – cuja necessidade é indicada também na pulverização partidária alertada pelo presidente do Superior Tribunal Eleitoral, ministro Gilmar Mendes; a atrofia contumaz do PT, cuja associação a irregularidades apontadas pela Lava-Jato e a desacertos no Executivo e no Legislativo custou-lhe a musculatura esculpida ao longo dos 13 anos à frente do poder central (das 644 prefeituras em 2012, sobraram 254: recuo de 61%); a ascensão do PSDB, cuja quantidade de prefeitos passa de 701 para 803, salto de 14,5%, e compõe a maior base governada por uma legenda: 48,7 milhões; a ascensão, em especial, de Geraldo Alckmin, que, cacifado pela vitória de João Dória na capital paulista – somada à derrota de João Leite, candidato de Aécio Neves, em Belo Horizonte –, torna-se a bola da vez tucana para a disputa presidencial em 2018; o colchão de apoio ao governo Temer: PSBD e PMDB, artífices do suporte ao impeachment, somam  mais de 80% das prefeituras.

Parte dos analistas acrescenta outra mensagem não menos sintomática depurada das eleições concluídas domingo passado: em alguns casos, como no Rio, o resultado das urnas reflete um vácuo de lideranças tanto à esquerda, que tenta reorganizar os cacos espalhados com o tombo petista, quanto em correntes alinhadas ao centro, cuja instabilidade corresponde às oscilações federais, estaduais e municipais do PMDB – sob qual paira a sombra da iminente rodada de delações da Lava-Jato.

Enquanto tais capítulos não se revelarem, analistas consideram precipitadas projeções do jogo político para 2018. Por outro lado, dão como certas a corrida por novos postos e formatos de liderança e a largada à frente dos tucanos, em particular de Alckmin. Para o cientista político e professor da PUC-Rio Cesar Romero, autor de estudos como A geografia do voto nas eleições presidenciais no Brasil: 1989-2006 (2010, Editora PUC-Rio e Vozes) e Atlas das condições de vida na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (2014, Editora PUC-Rio), o bom desempenho do PSDB nas urnas aumenta as chances da sigla para a sucessão presidencial, mas aguça brigas internas de um partido “historicamente dividido”:

– Geraldo Alckmin foi o grande vitorioso das eleições, até mais que o próprio partido. Além de Dória, na capital paulista, elegeu prefeitos no interior do estado. Aécio Neves foi derrotado, ao fracassar na tentativa de eleger seu candidato (João Leite) em Belo Horizonte, assim como José Serra, que apostou as fichas em Andrea Matarazzo. Andrea não passou das prévias do PSDB e se tornou vice da Chapa de Marta Suplicy. A ideia de Serra era ver se Marta seria capaz de se eleger fora da polarização entre PT e PSDB e fazer o mesmo em 2018, caso ela tivesse bom desempenho.

Para o também cientista político e professor da PUC-Rio Ricardo Ismael, o caminho do PSDB rumo à ponta da corrida ao Planalto em 2018 pode ser favorecido por um enfraquecimento do PMDB. Na avaliação de Ismael, a legenda sai enfraquecida do processo eleitoral, apesar de ainda reunir o maior número de prefeituras no país (1.038).

– O PMDB é tradicionalmente o maior partido no país, contando sempre com um número elevado de prefeituras. Embora tenha mantido o posto de sigla com maior número de prefeituras, o partido sofreu derrotas significativas, como no Rio, onde o sucessor de Eduardo Paes não chegou sequer ao segundo turno – observa o analista.

As disputas internas do PSDB, o fantasma da berlinda num PMDB sob a sombra da Lava-Jato e o ceticismo do eleitor manifestado no alto volume de abstenções e votos brancos e nulos –  somados à perspectiva de votações parlamentares nevrálgicas ao cenário econômico, como as alusivas à reforma da Previdência e ao teto dos gastos públicos – embaralham o xadrez político para 2018. De quebra, acrescente-se ainda o que Cesar Romero qualifica de “um dos maiores problemas que vivemos”: a persistente falta de lideranças capazes de aglutinar interesses.

– Embora a frente que se organizou em torno do impeachment tenha saído vitoriosa (das urnas), não há como dizer que viveremos dias mais tranquilos. Os grupos de Alckmin, de Serra e de Temer não têm muitas similaridades entre si. Portanto, as disputas seguirão – prevê Romero.

Enquanto buscam lideranças e reorganizam forças e alianças, caciques políticos encaram também a necessidade de construir pontes até milhões de eleitores ressabiados com irregularidades e incompetências crônicas na administração pública. Por não se sentirem representados, tais eleitores protagonizaram talvez o mais eloquente recado advindo das eleições municipais: a maciça incidência do chamado não-voto. Contabilizados os votos brancos e nulos e as abstenções, 10,7 milhões de brasileiros deixaram de escolher um candidato no segundo turno. A quantidade representa quase um terço dos eleitores capacitados para esta segunda etapa: 32,9 milhões, em 57 municípios.

O Rio já havia sido a capital com a maior soma de abstenções, votos nulos e brancos no primeiro turno. No segundo, a história se repetiu. O município contabilizou mais de dois milhões de votos não válidos, principalmente no Centro e na Zona Sul. A parcela do eleitorado carioca que optou por não escolher um candidato foi de 1,7 milhão, superando o volume de eleitores de Marcelo Crivella (PRB), vencedor na capital fluminense. Só as abstenções (1,3 milhão) ultrapassam os votos em Marcelo Freixo (PSOL), adversário de Crivella no segundo turno. Um quinto dos eleitores que compareceram às urnas votaram branco ou nulo. Para Cesar Romero, essas opções refletem “a rejeição do centro aos dois candidatos” – um visto como fundamentalista religioso e o outro, como fundamentalista político. O fenômeno, acrescenta Ismael, resulta da descrença nos partidos e nos políticos, mas aponta “contradições na lógica do ceticismo político”:

– Esses grupos céticos estão à espera de novas lideranças que os representem melhor, mas a não participação fortalece os políticos tradicionais, que ano após ano, saem vencedores do processo eleitoral, impedindo o surgimento de alternativas. Crivella terá de governar olhando para três grupos: os que não votaram nele, os que não votaram em ninguém e os que depositam esperanças no seu governo.

Para o cientista político e professor da UFF Marcus Ianoni, o grau elevado de abstenções, votos brancos e nulos reforça a necessidade de reforma política:

– Há um distanciamento do eleitorado em relação aos partidos na medida em que a democracia brasileira não vem se mostrando capaz de atender as demandas de quem o sistema político deveria servir: as pessoas. E quando não existe crença na democracia como meio de satisfazer demandas, a população abre mão de escolher um candidato.

A urgência de reforma política é um consenso, ressalta Ismael. Para ele, um dos pontos centrais é a discussão em torno do aprimoramento do modelo de financiamento público. Ele alerta para o risco de uma elitização provocada pela possibilidade de candidatos ricos financiarem as próprias campanhas:

– A proibição do financiamento empresarial de campanha foi um avanço considerável, mas é preciso criar mecanismos de defesa contra grandes doações de empresários como pessoa física e o financiamento de campanhas com recursos próprios. Nada impede um milionário de concorrer a um cargo público financiando a própria campanha. Isso poderia afastar as pessoas com menos poder aquisitivo do processo democrático – pondera.  

Outro ponto capital de uma reforma política, reiteram os analistas, refere-se ao saneamento do sistema partidário, cujo excesso de legendas irrigou a fragmentação observada no pleito municipal – destacada, em tom de alerta, pelo presidente do STE, ministro Gilmar Mendes (31 das 35 legendas detêm prefeituras). A sopa de siglas, diz Ianoni, não raramente confunde os eleitores, que não as associam a valores e projetos específicos.

– É necessária uma reforma política que racionalize o número de partidos, crie regras de fidelidade partidária mais claras, acabe com coligações proporcionais e estabeleça o voto em lista fechada – propõe o professor da UFF.

Vácuo de lideranças reorganiza forças no Rio e no Brasil

As urnas cariocas imprimiram pelo menos duas tintas acentuadas na partitura política: a renitente crise de representação, sinalizada pelo elevado índice de abstenções e votos brancos e nulos; e a crise de lideranças, adubada pelo enfraquecimento das forças hegemônicas que cimentaram o poder no Rio por quase uma década: à derrocada do PT, juntaram-se as agruras do PMDB na gestão estadual. Para Cesar Romero, o resultado da eleição carioca representa a vitória da direita, representada por Crivella, sobre a centro-esquerda, representada pela aliança entre PT e PMDB nas eleições de 2008 e 2012.

– A próximas disputas no Rio se darão entre os grupos de Sérgio Cabral e Crivella, enquanto o PSOL de Freixo corre por fora, exercendo um papel similar ao do PT antes de se tornar um partido tão expressivo – avalia o autor de A geografia do voto nas eleições presidenciais no Brasil: 1989-2006.    

Fora o desafio de administrar uma cidade politicamente dividida e, em parte, refratária ao modelo de representação tradicional, Crivella terá de fazer, provavelmente, uma ginástica financeira para cumprir as promessas de campanha sem comprometer o orçamento, prevê Ianoni. Para o cientista político, será preciso alterar a distribuição do gasto:

– O orçamento municipal tende a ser o principal desafio do novo prefeito. Ele terá de recorrer a entes externos à cidade. Brasília não deve poder ajudar muito nesse sentido, pois o governo federal vem adotando um regime de austeridade fiscal. Outra saída seria recorrer a  instituições como o Banco Mundial. Fora isso, vai ser fundamental melhorar a qualidade do gasto, fazendo cortes e desativando as políticas menos eficientes.

No jogo político nacional, a ascensão tucana encampada pelas urnas municipais coloca Geraldo Alckmin na pole da corrida para o Planalto. Não só pela vitória de Dória na capital paulista, já em primeiro turno, como pelas derrotas dos adversários internos: Serra, em São Paulo, e Aécio, em Belo Horizonte, onde o candidato tucano, João Leite, foi superado por Alexandre Kalil (PHS): 52,98% a 47,02%.  Para Ricardo Ismael, a derrota do partido na capital mineira, embora expressiva, foi amenizada pelo bom desempenho no contexto nacional. Mas, em relação a Aécio, fica difícil encontrar compensações ou atenuantes à derrota na disputa intrapartidária pela candidatura à presidência em 2018:

– O aumento de domínios em capitais é importante, pois aumenta a visibilidade do partido e, consequentemente, as chances de eleger um presidente em 2018. Alckmin confirma a vitória e Aécio sai marcado pela derrota em Belo Horizonte, embora possa chamar para si, enquanto presidente do partido, a responsabilidade pelo crescimento da sigla.

Marcus Ianoni também avalia que a derrota do candidato tucano na capital mineira fortalece as pretensões de Alckmin como protagonista do efervescente ninho tucano para a sucessão presidencial. Convém, no entanto, não subestimar a força de Aécio Neves dentro do partido, ressalva o analista:

– A derrota de João Leite em Belo Horizonte é importante para as pretensões políticas de Alckmin, mas não se pode ignorar o domínio de Neves sobre a máquina partidária. Arranjos internos ainda serão feitos. Dória, aliado de Alckmin, ainda terá que se provar um bom gestor público e Aécio ainda pode ser comprometido pelas investigações da Lava-Jato.

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