Psicóloga defende debate sobre gênero e sexualidade na escola
28/11/2016 17:19
Gabriela de Vicq

Professora Jaqueline Gomes de Jesus destaca necessidade de atenuar preconceitos e estereótipos, em palestra organizada pelo Capsi, na Semana de Psicologia.

O Brasil vive hoje uma intensa polarização quanto ao papel das escolas na abordagem das questões de gênero. Estão em tramitação dois projetos de lei e que propõem a proibição “de adoção de formas tendentes à aplicação de ideologia de gênero ou orientação sexual na educação” (nº 1859/2015) ou “de qualquer tipo de ideologia na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual, identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto” (nº 2731/2015).

De acordo com o PL nº 2731/2015, de autoria de Eros Biondini (PTB/MG), o professor que abordar tais temas em sala de aula seria penalizado com detenção de seis meses a dois anos, além da perda do cargo. Já no PL nº 1859/2015, que tem entre os autores Biondini, Celso Russomano (PRB-SP), Antonio Imbassahy (PSDB-BA), consta que os valores familiares (de educação moral, sexual e religiosa) estariam sendo confrontados pela possível aplicação de temas como gênero e sexualidade.

Os que se posicionam contra esses projetos defendem a necessidade dessa discussão com os jovens, com o objetivo de atenuar preconceitos e estereótipos. É o caso da psicóloga e professora Jaqueline Gomes de Jesus, que aposta na educação como um dos meios para vencer o desafio da homofobia e da transfobia:

– Toda formação profissional do Brasil tem uma péssima base para lidar com a diversidade humana. Esses ensinamentos não deveriam aparecer só na educação universitária, e sim desde a creche. Esse assunto já não é tratado com frequência, e quando se fala é de uma forma deturpada. Ainda querem piorar a situação com esses projetos, como escola sem partido e sem ideologia de gênero. Querem silenciar de vez.

Além da esfera legislativa, o conceito de gênero vem sido cada vez mais discutido em textos no Facebook, mesas de bar, e almoços familiares. A palavra é usada socialmente, ao longo do tempo, para definir o que hoje chamamos de homem e mulher – em uma sociedade binária como a nossa. Vem se argumentando, entretanto, que cada pessoa pode escolher seu próprio gênero, já que a identidade é um posicionamento pessoal frente à construção social. Há aqueles que não se identificam nem com o gênero feminino nem com o masculino, chamados de não-binários. Esse novo universo foi o tema da conversa organizada pelo Centro Acadêmico de Psicologia (Capsi), na Semana de Psicologia, em que Jaqueline traçou um paralelo entre essa ciência e tais questões.

Jaqueline Gomes de Jesus. Foto: Carolina Ernst

– Entendo gênero como uma concepção social. É algo que nos foi ensinado, que nós aprendemos, conservamos ou transformamos ao longo da vida. É algo tão pouco visível que, às vezes, não percebemos que são como óculos que usamos para enxergar a realidade. Nos ensinam uma forma de entender o mundo, e nós nem percebemos que essa forma foi construída. O modo como entendemos os corpos e as pessoas mudou muito ao longo do tempo, e gênero não pode ser confundido com orientação sexual.

Além de psicóloga e professora, ela é autora de dois livros: Transfeminismo: teorias e prática e Homofobia: identificar e prevenir, destinado a professores. Jaqueline construiu uma trajetória acadêmica atravessada pelo engajamento social e político. No mestrado, se debruçou sobre a escravidão contemporânea, enquanto, no doutorado, estudou o caráter político das paradas LGBT. No pós-doutorado, uniu os dois assuntos, tendo como tema a relação do trabalho com os movimentos sociais.

Jaqueline menciona o histórico da homossexualidade, considerada pecado pela Igreja e um crime na legislação de muitos países. Ainda hoje, 73 países penalizam aqueles que têm relação com pessoas do mesmo sexo, de acordo com dados da associação internacional ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association). Ao mesmo tempo, essa forma de se relacionar também era vista pela ciência como doença. Até 1990, era categorizada como transtorno de sexualidade. Essa transição de concepções para a homossexualidade, a enxergando como pecado, crime e doença, tem muita influência nas percepções atuais sobre o tema.

– Essa forma preconceituosa da ciência enxergar gêneros e sexualidade criou terapias de tratamento para internar pessoas que tinham desvios sexuais. É triste que ainda existam profissionais, em pleno século XXI, que querem reproduzir isso com a cura gay. Enxergar o outro como um doente que deve ser tratado é torná-lo menos humano, já que ele não pode decidir por si próprio. Quando patologizamos um grupo social, é como se tivéssemos o direito de tutelá-lo.

A atuação tardia da psicologia frente às novas configurações de gênero e sexualidade foi questionada na palestra. Jaqueline comentou que o psicólogo tende a se colocar em um papel de observador, quando deveria ser um sujeito participante da realidade. Esse distanciamento não permite que o profissional torne a diversidade humana mais compreensível. Segundo ela, para um campo que pretende se aprofundar no comportamento humano, essa nova ciência apresenta poucos estudos e áreas dedicadas ao tema.

– Muitos do ramo entendem o gênero como uma variante relacionada ao sexo. Isso é muito problemático. São pessoas que acham que gênero se resume a escolher, em um formulário, feminino ou masculino. Como se isso sintetizasse a realidade daquela pessoa e do grupo que ela participa.

A professora enfatiza que os transexuais, muitas vezes, saem do processo educacional devido a práticas cotidianas de preconceito. E os que se formam vão passar a sofrer discriminação no mercado de trabalho. Dessa forma, a prostituição é uma das poucas saídas que as transexuais encontram como fonte de renda. Há um paradoxo entre a exclusão social do corpo dessas mulheres e a exploração feita através do sexo. 

– Na prática, esse trabalho existe e é realizado por muitas mulheres, só que em péssimas condições. As mulheres sofrem violências e violações dos direitos, sem nenhuma legislação que as proteja. Elas não podem ficar expostas na rua escura ou receber gente em casa sem nenhuma segurança – defende a psicóloga, que ressalta a importância de criar medidas públicas que ajudem a inserir as mulheres no mercado de trabalho.

Para Jaqueline, nossa sociedade não enxerga uma pluralidade de sexualidades, e sim uma única: a heterossexualidade. As outras são consideradas deturpações e deformações desta, o chamado heterocentrismo, a crença de que a relação entre homem e mulher deve ser dominante. Nesse contexto, ela acredita que ainda há muita luta pela frente para que questões de gênero e sexualidade sejam compreendidas e respeitadas por todos.

Jaqueline lembra que não só os homossexuais e transexuais são vítimas de opressões de sexualidade. Embora com muito menos intensidade, casais heterossexuais também sofrem imposições na forma de ser. A heteronormatividade é uma regra social implícita que dita comportamentos dentro da sexualidade dominante, excluindo qualquer outra forma de ser hétero. Segundo a psicóloga, essa cultura heteronormativa reproduz estereótipos:

– Só se pode ser heterossexual de algumas formas. Como vivemos nessa sociedade heterocêntrica e heteronormativa, achamos estranho um casal heterossexual com mulher masculina e homem feminino. Isso causa estranheza. É como se os homens precisassem reproduzir estereótipos masculinos e mulheres femininos, para garantirem que são heterossexuais.

Além dos estereótipos referentes ao gênero, Jaqueline aborda um recorte racial, problematizando preconceitos culturais construídos socialmente:

– Quando eu falo em médico, vocês pensam em um homem branco. Quando falo em empregada doméstica, pensam em uma mulher negra. Tem a ver com esses estereótipos construídos socialmente, associados ao gênero e à raça. Se eu falo de um médico negro, preciso frisar que ele é negro. Não falamos, no entanto, que visitamos um “médico branco”. O grupo dominante não precisa ser estereotipado, diferente das minorias. E é assim que os estereótipos se reproduzem.

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