Analistas alertam para banalização da crítica de cinema na internet
22/11/2016 09:48
Mariana Salles e Marcelo Antonio Ferreira

Profissionais da área de cinema, Rodrigo Fonseca, Miguel Pereira e Pedro Butcher opinam sobre a superficialidade das críticas no cenário tecnológico.

Foto: Pexels

Se a medida de sucesso e de propagação de um filme era a mesa de bar, agora é a internet, comparam especialistas na área. Em meio ao centenário de nascimento do referendado crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) – celebrado com uma agenda intensa de mostras, debates, lançamentos editoriais, a maioria concentrada em São Paulo –, colegas de profissão refletem sobre os novos rumos, desafios e papeis do ofício na chamada era digital. Para o jornalista Rodrigo Fonseca, crítico do Estado de S.Paulo e do portal Omelete, a migração do boca a boca para o espaço virtual é uma mudança "natural e esperada, e não precisa ser algo ruim". Mas convém, ressalva ele, distinguir crítica de opinião:

– Primeiro tivemos a fase do digital organizado, das revistas virtuais, como a Contracampo. Depois disso, mais tarde, todos viraram postuladores. Isso não é algo ruim, mas precisamos ter cuidado com a opinião, que deve ser diferenciada da crítica. Se alguém diz num blog que “tal filme é bom” ou “tal filme é ruim”, isso não é uma crítica, e sim uma opinião.

Para o também jornalista e crítico Miguel Pereira, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, a crítica está sofrendo uma superficialização.  O exercício, pondera o especialista, é "intelectual e de cultura", o que exige uma certa bagagem, que certamente não se adquire da noite para o dia. Todos reagem de alguma forma a um filme, mas, para construir uma crítica, argumenta o coordenadoer do curso de Cinema da Universidade, é necessário um instrumental “muito além do gostei ou não gostei”.

A suposta banalização da crítica é irrigada pela natureza da internet, espaço aberto à criação blogs, canais no Youtube e páginas no Facebook carregadas de juízos de valor sobre produções cinematográficas. Se, por um lado, tal natureza contruibui para reforçar a pluralidade e a visibilidade de filmes, diretores, autores, atores etc., por outro pode dificultar a distinção entre conteúdos meramente opinativos e conteúdos reflexivos, contextualizadores, fundamentados, como exige a crítica tradicional. Para Fonseca, ex-crítico d'O Globo, a indiferenciação tende a prejudicar o profissional especializado:

– Os veículos (de comunicação) precisam saber valorizar os críticos, e isso não tem acontecido. O Globo, por exemplo, praticamente dispensou o corpo de críticos tradicionais. É como se você colocasse espectadores para escrever as opiniões, só que sob um título de crítico de cinema. A crítica, portanto, fica leiga e pouco se difere da opinião de internet – avalia.

Segundo o também jornalista e crítico Pedro Butcher, editor do site Filme B, observa-se uma decadência do jornal e da revista impressa, em virtude do impulso das plataformas digitais, em torno das quais se concentra uma audiência crescente. Apesar do que considera uma "qualificação de blogs e sites", ele concorda que predomina na web opiniões destituídas da profundidade inerente à resenha crítica. 

Ao propagar apreciações do gênero, a web até pode banalizar a crítica e esvaziar as reflexões sobre objetos cinematográficos, como aponta boa parte dos analistas, professores e profissionais da área, mas também representa um novo oxigênio para as ambições comerciais de um filme. Não raramente tamanha visibilidade redime a carreira de um filme mal recebido pela crítica tradicional. Amplifica o efeito outrora produzido exclusivamente pelo boca a boca. Caso, por exemplo, recorda Fonseca, de Esquadrão Suicida (David, Ayer, 2016), filme da Warner Bros extremamente criticado, até por uma parcela do público. “O filme era tão mal acabado que virou algo hilário, e se tornou um exemplo de que o boca a boca, quando somado a um investimento de publicidade, traz retorno. Apesar de tão ruim, o Esquadrão Suicida sobreviveu por causa da alta divulgação”, justifica.

Assim como Esquadrão Suicida, o filme anterior da DC Comics, Batman vs Superman também amealhou controvérsias e burburinhos propagados pela internet. Os dois filmes receberam cotações baixas em alguns dos sites mais populares do gênero: Batman vs Superman obteve 27% de média (calculada com base nas críticas positivas e negativas) no site Rotten Tomatoes e Esquadrão Suicida, 26%. Fãs da DC Comics chegaram a fazer uma petição online para derrubar a página eletrônica pelas “críticas injustas dadas aos filmes do Universo Estendido da DC”. Para Miguel Pereira, os sites de críticas buscam, em geral, equilibrar as resenhas e apresentar uma interface mais amistosa:

– Os sites que fazem essa mediação costumam colocar coisas a favor e contra. Ao serem editadas, elas se contrabalançam. Esse é o papel do site: ampliar a diversidade e, nesse sentido, fazer uma edição inteligente. Mas não deixa de ser um boca a boca sem boca.

Miguel Pereira. Foto: Cynthia Salles

Pereira lembra que, independentemente da plataforma de mídia, o papel do crítico não se resume a produzir resenhas sobre produções audiovisuais, mas também a ajudar o espectador a ver o filme. Ainda de acordo com o professor e crítico, dedicado por cerca de cinco décadas à área, é igualnmente importante tratar o espectador de forma madura:

– Não pode ser tratado como um sujeito sem vontades, apenas influenciado por falas alheias. Ele sempre tem critério, não escolhe à toa. O espectador faz escolhas, e, por menos profundas que sejam, correspondem a um certo sentimento dele naquele momento – esclarace.

Butcher acredita que seja quase nulo o peso da crítica sobre preferências de consumo, ora mais suscertíveis aos chamados influenciadores digitais ou curadores horizontais. Esses campeões de seguidores na internet ocupam papel antigamente restrito aos editores de veículos de comunicação tradicionais. "A influência agora pertence mais ao marketing e à publicidade, o que liberta a crítica de ser um guia de consumo”, observa.

Pereira pondera que a crítica embrulhada nas plataformas digitais não necessariamente caiu de qualidade, mas passa a se manter superfial de forma sistemática. E uma crítica rasa, reitera o professor, não consegue esclarecer o espectador. Para produzir o aprofundamento e, portanto, a reflexão e o esclarecimento esperados, a crítica exige, segundo o especialista, um estudo permanente sobre a indústria cinematográfica. Isso, porém, não significa a obrigatoriedade de uma formação acadêmica, afirma Butcher:

– Um crítico não precisa necessariamente ter uma formação acadêmica. Ele pode ser autodidata, ou um apaixonado por cinema. Um dos princípios da cinefelia é a paixão amadora pelo negócio. Claro que isso não impede que a pessoa se informe muito bem por meio de livros e filmes.

Como exemplos, talvez ezceções à regra, Butcher lembra que  os renomados cineastas Jean-Luc Godard e François Truffaut não tinham formação acadêmica. Mesmo assim, "destacaram-se de forma grandiosa na história do cinema europeu".

Noves fora, como fica o crítico num cenário em que as apreciações sobre cinema propagam-se freneticamente na web? Para Fonseca, acaba Se destacando quem sabe se expressar mais e melhor:

– É preciso escrever com qualidade, e ter conhecimento sobre o que está falando. Além disso, tem de estar nas redes sociais. Isto é, ter, no mínimo, um blog. Hoje em dia, quem não está na internet não existe. 

Mais Recentes
Uma locadora em tempos de streaming
Com mais de 25 mil filmes e atendimento único, estabelecimento em Copacabana é um pedacinho da memória da cultura audiovisual do Rio de Janeiro
Valorização do cinema universitário na pandemia
Alunos da PUC-Rio participam da Mostra Outro Rio, uma exposição de curtas-metragens produzidos no Rio de Janeiro
Dez anos sem ele
Durante a vida, José Saramago criou um estilo próprio de escrita, de inovação na sintática e na pontuação