"País precisa de parâmetros legais que respeitem o paciente"
01/06/2016 12:37
Mariana Casagrande

Advogada Aline Albuquerque defende em obra inédita a segurança, a autonomia e a privacidade dos cidadãos em internações.

Arte: Mariana Salles 

Estão à margem das discussões no país os direitos humanos dos pacientes, leis que regularizam a condição das pessoas enquanto internadas nos hospitais e nas clínicas. Muito além de garantias de acesso aos serviços de saúde, esses direitos pregam dignidade humana e universalidade como importantes necessidades para o atendimento. Se o acesso da população à saúde ainda é uma calamidade no Brasil, Aline Albuquerque, advogada da União e chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, expande essa discussão para a necessidade da qualidade do serviço, que inclui a segurança, a autonomia e a privacidade dos cidadãos no livro Direitos Humanos dos Pacientes, o primeiro, em português, a tratar desse tema. Dos 146 milhões de brasileiros com mais de 18 anos, 10,6% (15,5 milhões) afirmaram já ter se sentido discriminados no serviço de saúde, por médicos ou outros profissionais, de acordo com a última Pesquisa Nacional de Saúde, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) em 2015. Os percentuais foram significativamente maiores nas Regiões Norte e Centro-Oeste: 13,6% e 13,3%, respectivamente, e entre as mulheres (11,6%), pessoas de cor preta (11,9%) e parda (11,4%).

 

A família de Leonam Cavalcanti é um dos exemplos que ilustram esse descaso do Estado com a saúde. Segundo ele, sua avó, Júlia Rosa, de 89 anos, foi encaminhada para o Hospital Getúlio Vargas, no dia 25 de dezembro, com indícios de hemorragia digestiva. Lá, a aposentada foi internada sem fazer exames, porque o técnico em ressonância estava de férias. Fez diálise por dois dias. No terceiro, ela apresentava ferimentos no corpo, mas os médicos só realizaram tomografia e a consideraram em bom estado. Leonam alega que os médicos davam diagnósticos diferentes e se contradiziam, deixando a paciente e a família confusas.

 

Transferida para a enfermaria, Júlia sofreu com inchaço na barriga e dificuldade para urinar. “Para se conseguir alguma coisa, era necessário fazer uma queixa ou escândalo, nada vinha de graça, e nada foi feito para evitar sua morte”, lamenta Leonam, que registrou queixa à Secretaria Estadual de Saúde. Dona Júlia Rosa morreu no dia 6 de janeiro. O neto culpa o descaso dos médicos e enfermeiros.

 

De acordo com a advogada Aline Albuquerque, esse seria um exemplo da negligência do governo e dos profissionais perante a dignidade e a segurança da paciente, além de desrespeito ao direito de informação.

 

Uma das sugestões de Aline para a cultura do respeito aos direitos dos internados, no país, está atrelada à educação e à fiscalização. Neste sentido, ela defende que o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha uma comissão fiscalizadora, a exemplo da criada pelo Serviço Nacional de Saúde (NHS) do Reino Unido.

 

A professora Flávia Viveiros de Castro, coordenadora da Pós-Graduação em direito da saúde do Instituto de Direito da PUC-Rio, concorda que “os núcleos básicos deveriam ter maior independência de atuação para poder exercer maior controle sobre o serviço prestado aos pacientes”. Ao mesmo temo, destaca a importância do tratamento preventivo. Para Flávia, dignidade na saúde é sinônimo de prevenção, e não a procura por respostas a sintomas ou doenças.

 

Jornal da PUC Online: Seu livro reforça a ideia de que os direitos humanos dos pacientes não são devidamente discutidos no Brasil. A que se deve essa omissão?

Aline Albuquerque: Primeiramente, é importante esclarecer o que são os direitos humanos sobre os quais eu discuto. Não julgo o problema de acesso à saúde, ou seja, da disponibilidade de leitos em hospitais, da fila de remédios, do acesso ao atendimento, entre outros, para os quais já existem leis no país; eu foco no tratamento dado quando os pacientes já estão internados. Para esse momento, não temos garantia de proteção. Mas o enfoque nesse direito é novo em todo o mundo. A ONU já começou a se concentrar em como operacionalizar direitos da saúde e, através de agências e programas especializados, como Organização Mundial da Saúde (OMS) e Unaids, tentam unir esforços para lutar pelos direitos humanos na saúde. Assim como na Europa, onde há normativas, e, mais especificamente, no Reino Unido, com as NHS. O que tento fazer, então, é trazer essa discussão para o Brasil, onde os profissionais da área de saúde têm medo de enfrentar o corporativismo.

 

Jornal da PUC Online: Mas esse déficit na luta pelos direitos dos pacientes não poderia ser justificado pela condição temporária dos doentes e pela debilidade em que se encontram quando mais precisam reivindicar?

Aline: Sim, quando são pacientes, as pessoas se encontram em situação precária para oferecer resistência ao sistema. Ainda que existam grupos de pacientes permanentes, a maioria apresenta a condição debilitada temporariamente, então, quando se recuperam e podem lutar, já não precisam mais da qualidade do serviço. No Brasil, movimentos que ganharam maior força e repercutiram em garantias na Constituição estão ligados aos grupos de mulheres, idosos e crianças.

Jornal da PUC Online: Como um paciente pode tentar garantir direitos humanos básicos, no Brasil, hoje, ao receber tratamento hospitalar?
Aline: Se um paciente sofre com o tratamento recebido, ele pode recorrer a tratados internacionais, como do Sistema Interamericano e da Organização das Nações Unidas (ONU), usando o tratado, do qual o Brasil é signatário, como base. Recorrer internamente, usando as leis vigentes também é possível, mas o ideal seria uma mudança na cultura do país através de políticas públicas. Deficientes mentais, por exemplo, têm todo o direito de consentir com o tratamento que lhes será oferecido, como qualquer outra pessoa. Se um profissional tomar uma decisão sem o consentimento do paciente, como esterilizá-lo, esse especialista poderá ser punido.

Jornal da PUC Online: Qual o papel dos médicos e enfermeiros, que lidam nesse dia-a-dia do paciente, na garantia dos direitos?

Aline: A relação profissional-paciente é extremamente importante para a garantia dos direitos de autonomia, dignidade, segurança, qualidade e privacidade. No entanto, a questão da acessibilidade ganha importância, uma vez que esses médicos e enfermeiros devem fazer com que o paciente entenda as informações que lhes são repassadas e os procedimentos pelos quais irá passar. Não pode haver excessos ou termos incompatíveis com o nível de educação do doente, ou seja, nenhum paternalismo. O profissional não faz favor, e o paciente é um sujeito de direitos.

 

Jornal da PUC Online: Quais são as propostas para a perspectiva dos direitos humanos no Brasil?

Aline: A única lei que existe no país para fins de saúde falam de “usuários”, não de pacientes. Nosso movimento, que culminou no SUS, começou com o ativismo de médicos, não pacientes, que lutavam pela reforma sanitária e pela coletividade da distribuição da saúde, à margem da relação médico-paciente individual. Dessa forma, o contato entre os profissionais e os pacientes foi mediado pelo Estado, deixando de fora questões como a recusa de pacientes terminais a tratamento, o direito à medicação analgésica nos cuidados paliativos, o direito ao consentimento informado e a cuidados em saúde seguros, por exemplo. Não há um órgão federal responsável pela defesa dos pacientes e pela condenação penal de quem as infringe. O que o país precisa, então, é de parâmetros legais que respeitem a autonomia do paciente.

Mais Recentes
Angústia do lado de fora das grades
Mães relatam o medo de os filhos contraírem Covid-19 no cárcere
Os 30 anos do voto democrático
Constituição de 1988 completa 30 anos e marca a abertura do voto facultativo para jovens de 16 e 17 anos, idosos acima dos 70 e analfabetos 
Informalidade no trabalho se torna empreendedorismo
Aumento do número de empregos sem carteira assinada apresenta nova face do trabalhador brasileiro