Os 40 anos de Carnavais, Malandros e Heróis
13/12/2019 18:17
José Abreu

Professor Roberto DaMatta é homenageado por livro considerado um marco da antropologia brasileira

Roberto DaMatta agradece a homenagem. Foto: Laura Gonzaga

Com textos compostos entre 1970 e 1979, o livro Carnavais, Malandros e Heróis, completou 40 anos de lançamento em uma homenagem ao autor Roberto DaMatta na PUC-Rio. Em bate-papo, professores da UFRJ e da PUC-Rio analisaram a obra, que foi inspirada pelas contribuições de Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, entre outros.

Muitos autores da década de 1960, até meados da década de 1970, se concentraram em responder o que o Brasil era. Foi nesta época, em meio a um ambiente tão adverso e repressivo da Ditadura Militar, que Roberto DaMatta encontrou terreno fértil para suas ideias.

Professora do departamento de Antropologia Cultural da UFRJ, Yvone Maggie encontrou-se com DaMatta em 1972, quando voltava dos Estados Unidos de um curso de pós-graduação. Ela disse que DaMatta foi o responsável por tirar a antropologia dos empoeirados gabinetes das universidades e levou esta ciência para as ruas. Para Yvone, a chegada de Carnavais, malandros e heróis naquele contexto era “a boa nova”.

- Digo que Roberto nos trouxe “a boa nova”, descobri que era possível escrever sobre coisas difíceis de forma fácil, engajando o leitor a se fascinar. Juntos, nós aprendemos uma antropologia que ajudava a entender nossa sociedade.

A importância de Roberto DaMatta aparece quando, em vez de procurar as razões pelas quais o Brasil era de determinada forma, ele foi atrás do que os brasileiros diziam que eram, coisa até então nunca feita. O livro transmite uma visão do Brasil baseada nos rituais de nossa sociedade, como o futebol e a música e, o principal, o Carnaval. As ideias acerca de rituais são estudadas desde o início do século XX, pelo antropólogo Arnold Van Gennep no livro Os Ritos de Passagem.

Sinder já ouvia de Roberto DaMatta quando graduava-se na UFF em 1980. Foto: Laura Gonzaga

Professor Valter Sinder, do Departamento de Ciências Sociais, graduou-se na UFF em 1980. Naquela época, ainda um jovem universitário, Sinder já ouvia os professores e colegas falarem positivamente de “um tal DaMatta”. Um dos participantes da mesa, Sinder destacou a importância de compreender o Brasil a partir da lógica dos rituais.

- Uma das questões principais é nós entendermos o ritual sempre como algo de passagem, o ritual é sempre uma investidura de algum tipo de identidade. O importante de pensar o Brasil a partir da questão do ritual é o fato de a gente compreender que, apesar de o país se modificar, ele sempre tem determinados momentos que são marcados. Essas marcas são as que nós brasileiros fazemos sobre nós mesmos.

O Carnaval

DaMatta defende que a desigualdade é harmônica no ritual do Carnaval, a inversão dos papéis em que os pobres assumem fantasias de ricos, enquanto os ricos vestem-se de pobres durante quatro dias do ano. O Carnaval toma posse dos espaços delimitados por hierarquias, os desconstrói de toda a racionalidade econômica e social, presente ao longo do ano inteiro.

De acordo com o antropólogo, os desfiles das escolas de samba são democráticos por articular diferentes setores em igualdade, ao mesmo tempo autoritários por mostrar que a associação de pessoas não implica que decisões de interesse geral serão tomadas. Ainda que o Carnaval seja uma festa extremamente importante para nossa identidade nacional (e aspecto central de Carnavais, malandros e heróis), Roberto DaMatta comentou, durante a homenagem, uma redução da potência do Carnaval nos dias de hoje, quando comparado ao século passado.

- Eu acho o Carnaval uma coisa curiosa, porque ela é uma festa, e eu já escrevi sobre isso, que não tem centro e sujeito, é um anacronismo, está fora de lugar. Eu não sei se vai continuar, porque antigamente a gente só podia fazer certas coisas no carnaval, hoje a gente pode fazer o ano inteiro. Não existe mais a mesma dimensão, de permitir a mesma licenciosidade, que havia no século passado quando, eu inclusive, escrevi Carnavais, malandros e heróis. A potência carnavalesca diminuiu, porque ela pode se realizar agora.

Malandragem

A famosa frase “Você sabe com quem está falando?” é também analisada de forma pioneira em Carnavais, malandros e heróis. A frase representa, segundo o antropólogo, as estruturas de poder na sociedade hierárquica brasileira, uma forma das pessoas que detêm poder de ultrapassar normas com autoridade. Por outro lado, “o jeitinho” é ultrapassar com gentileza e humanidade, e pode ser visto tanto como favor quanto como forma de corrupção. Para DaMatta, as duas situações retratam a desenvoltura dos brasileiros em superar adversidades, até como um modo de levar vantagem sobre os outros, a chamada malandragem.

Com textos compostos entre 1970 e 1979, retrata os traços socias dos brasileiros. Foto: Laura Gonzaga

Para compreender esta malandragem que é essencial em Carnavais, malandros e heróis, é preciso conhecer dois segmentos da sociedade brasileira retratados por DaMatta por intermédio de personagens. O principal é o malandro, longe da formalidade e fora do mercado de trabalho, e ele exemplifica com o personagem Pedro Malasartes, que desconhece a autoridade. Do outro lado está Caxias, o homem que segue religiosamente as regras e as leis sociais, para fins únicos da preservação da ordem.

O malandro é a linha intermediária de dois polos, o Caxias segue todas as regras, e os criminosos são os que estão fora da lei. A mais importante mensagem exposta por DaMatta com estes personagens é que a malandragem é sintoma de uma sociedade que tem uma relação ruim com o Estado e a lei desde sempre. A tentativa de normatizar todas as relações sociais com leis, atesta o antropólogo, involuntariamente causa uma reação dos setores em que estas leis serão aplicadas. Se são feitas leis que contrariam algo que todos consideram razoável, nasce uma sociedade de malandros, conclui o autor.

Traços da cultura brasileira

Graduado em antropologia social na Universidade de Cambridge, e atualmente no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, o britânico Peter Fry vive há 50 anos no Brasil. Ele conheceu Roberto DaMatta em 1970, quando fundava o curso de Ciências Sociais na Unicamp. Na época, DaMatta trabalhava no Museu Nacional da UFRJ e foi convidado para ser o professor visitante na universidade de Campinas. Fry destacou problemas contínuos do Brasil apontados por DaMatta e os relacionou à sua experiência na sociedade brasileira como estrangeiro.

- A repetição infinita e deprimente de certas coisas que ele não gosta, como a lei nunca ser igual para todos. Uma coisa que ele escreve sobre isso no passado também, ‘a meus amigos tudo, a meus inimigos a lei’, isso é uma continuidade, é uma coisa impressionante, não mudou nada. Por outro lado, outras coisas mudam, aparentemente mudam, para depois descobrir que tudo voltou, essa é a minha sensação de estrangeiro.

Apesar de o país ter se modificado desde o contexto em que a obra foi escrita, as ideias de Roberto DaMatta não se limitam ao longínquo final dos anos 1970, há atualidade nas ideias expostas em Carnavais, malandros e heróis. Nas globalizadas sociedades do século XXI, DaMatta abordou ainda do surgimento de novos ritualismos que deixam traços profundos na forma como vivemos.

- Um deles é óbvio, é o ritualismo de pegar um celular e você estar em uma sala, com a sua mulher ao seu lado, jogando um jogo eletrônico enquanto você quer falar com ela. Uma vez eu cheguei em casa e minhas cinco netas, cada uma com um celular. Eu estava em uma manifestação e não sabia, porque cada uma falava com duas pessoas, eu não tinha cinco pessoas na sala, tinha 15 ou 20 – brincou.

DaMatta apontou para o fato de que pode existir uma pressão política que pode ser exercida pelo Facebook. Em uma sociedade que a discordância é um elemento cultural ausente, observou o professor, as pessoas usam a rede social para discordar e ir além do limite civilizado.

Aos 83 anos, Roberto DaMatta permanece ativo, como professor do Departamento de Ciências Sociais, onde ainda ministra aulas. O antropólogo ainda reserva tempo para produzir diversos tipos de textos em que procura refletir sobre a realidade do Brasil e do mundo contemporâneo.

- Eu não quero deixar legado nenhum, o que eu gosto de fazer é ensinar e escrever, tenho muita coisa em jornal que tenho escrito, são quase 1.000 crônicas. Faço porque gosto e faço porque me faz bem, o legado é esse, é possível discutir problemas difíceis por motivos que são razoáveis.

 

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