Em janeiro deste ano, moradores do Rio de Janeiro reclamaram do cheiro e da cor da água tratada e distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro – CEDAE. Alguns confirmaram ter tido ardência nos olhos e náuseas após o consumo. Pesquisador com foco em geoquímica de águas subterrâneas, professor José Marcus Godoy, do Departamento de Química, e o biólogo e pesquisador do Laboratório de Avaliação e Promoção da Saúde Ambiental do Instituto Oswaldo Cruz, Aloysio da Silva Ferrão Filho comentam sobre a verdadeira causa da água turva fornecida pela rede de abastecimento. Em entrevista, os dois abordaram conceito, função e tratamento deste composto orgânico.
O que é a geosmina?
Aloysio Ferrão: É um composto orgânico produzido por microrganismos presentes no solo, como bactérias e fungos, ou na água, como as cianobactérias. No solo, a geosmina pode ser liberada após uma chuva breve. É justamente esta liberação que está associada ao que costumamos chamar de cheiro de “terra molhada”. Já no ambiente aquático, a liberação da geosmina está associada à alteração do gosto e do odor da água, que causa desconforto para o consumo. Além da geosmina, o MIB (2-metilisoborneol) é outro composto produzido por estes microrganismos que também pode causar alteração de odor e de sabor na água.
José Marcus Godoy: Ela tem uma estrutura química muito similar à naftalina, um hidrocarboneto aromático cuja molécula é constituída por dois anéis benzênicos condensados. Por isso a geosmina é volátil, tendo um radical que se caracteriza como um álcool orgânico, sintetizado pelas algas. Mas ela não é uma alga.
Qual a função?
Ferrão: Tanto a geosmina quanto o MIB são ditos metabólitos secundários, cuja função celular ainda é pouco conhecida. Os dois compostos têm baixa atividade biológica, ou seja, pouco efeito tóxico para animais, incluindo o homem. Porém, conforme esclarecido previamente, estão associados a alterações no sabor e no odor da água.
Como ela surge?
Ferrão: A geosmina é produzida por microrganismos presentes na água, como cianobactérias e actinomicetos. Estes microrganismos se proliferam quando há alta disponibilidade de nutrientes, principalmente compostos nitrogenados e fosfatados, advindos do despejo de efluentes domésticos e industriais, incluindo esgoto, em corpos d’água como rios, lagos e lagoas. Esta alta disponibilidade de nutrientes também pode ser consequência do carreamento de fertilizantes utilizados em áreas agrícolas.
A geosmina é prejudicial à saúde?
Ferrão: A geosmina em si não é prejudicial à saúde humana nas concentrações em que normalmente é encontrada na natureza. O que precisa ser considerado como um problema em potencial é o fato de que as cianobactérias presentes na água, que produzem a geosmina, também podem produzir uma série de outros metabólitos capazes de exercer efeitos tóxicos em animais e em humanos. Estes metabólitos são conhecidos como cianotoxinas e sua classificação acompanha o órgão alvo que atingem. Um exemplo são as hepatotoxinas, que afetam o fígado, associadas a microcistinas e cilindrospermopsina. Outro exemplo são as neurotoxinas, que atingem o sistema nervoso, relacionadas a anatoxinas, saxitoxinas, BMAA, entre outras. Já foram apresentadas propostas para que a detecção de sabor e de odor fosse utilizada como um indicador da presença de cianotoxinas na água potável. No entanto, não há evidências científicas de que exista uma correlação entre a presença de toxinas e compostos que ocasionam sabor e cheiro na água. Ao mesmo tempo, é importante considerar que a ausência de gosto e de odor não implica de modo algum a ausência de cianobactérias. Estes microrganismos podem estar presentes na água produzindo esses compostos em quantidade insuficiente para que o ser humano perceba sensorialmente.
Godoy: Até que se saiba não. Não existe no Programa Academia da Saúde, na Portaria Consolidada número 5 de 2017, que traz os padrões de portabilidade para a água de abastecimento público, a presença da geosmina. Embora ela não seja regulada, você tem parâmetros de cheiro e sabor da água que são regulados. Ela é um indicador do problema, e o sabor na água, sendo muito acentuado, indica que a água não está potável.
Por que só agora surgiu o problema?
Ferrão: Na realidade esse problema é antigo. Em 2001, tivemos um evento desses, em que a água distribuída pela CEDAE apresentava forte cheiro e sabor de geosmina. Também houve presença de cianotoxinas (microcistinas) na água tratada e também na água de diálise de quatro centros de hemodiálise sediados no Rio de Janeiro, um deles foi no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Fundão. Também foi detectada toxina e alterações bioquímicas no sangue dos pacientes de hemodiálise, compatível com dano hepático. Isto está registrado em artigo científico. No entanto, não houve mortalidade, como no caso de Caruaru (PE), quando houve contaminação na água de diálise e morreram 76 pacientes. Este foi o primeiro caso confirmado, cientificamente, de morte de humanos por cianotoxinas. Portanto, é preciso ter um controle rigoroso no tratamento da água para que casos como esse não se repitam.
Como relacionar a geosmina ao problema de saneamento básico no Brasil?
Ferrão: A ocorrência de geosmina na rede de abastecimento de água, conforme estamos observando recentemente no Rio de Janeiro, está totalmente relacionada com a falta de saneamento básico, questão que configura uma preocupação permanente em saúde pública. Não se trata apenas de um problema do Rio de Janeiro ou dos rios da Baixada Fluminense que chegam ao Rio Guandu, que são verdadeiros valões de esgoto a céu aberto. Infelizmente, a precariedade de saneamento básico está largamente disseminada no território nacional. O tratamento adequado de esgoto é um investimento fundamental em saúde pública não apenas no caso da geosmina, mas para uma ampla variedade de doenças evitáveis.
Godoy: Ela é um indicador do problema e, também, é um indicativo da falta de políticas públicas, saneamento básico e ocupação irregular do solo. Quando se tem uma ocupação irregular da margem dos rios, há um lançamento direto do esgoto nos corpos d´água. E denota a falta de fiscalização, porque a parte de abastecimento público de água é, na realidade, uma concessão do município.