Degrau para o sonho de alguém
11/11/2022 18:46
Luzi Alves

Roda de conversa é organizada para o lançamento do livro Mulher de Favela – Experiências compartilhadas

Protagonistas do livro Mulher de Favela se reuném para roda de conversa. Foto: Luzi Alves

Pretas, periféricas e revolucionárias: o e-book Mulher de Favela – Experiências compartilhadas, da professora Nilza Rogéria Nunes, do Departamento de Serviço Social, conta a história de 200 lideranças femininas de 169 favelas do Rio de Janeiro. Publicado pela Editora PUC-Rio, o livro faz uma reflexão sobre o papel da mulher ativista nas comunidades cariocas e como são fundamentais nas lutas urbanas e políticas para a transformação do espaço. No fim de outubro, a obra foi disponibilizada gratuitamente por meio do site da Editora e, para celebrar o lançamento do trabalho, houve uma roda de conversa com as protagonistas da obra, no Edifício  Cardeal Leme.

O bate-papo, que reuniu cerca de 40 personalidades, foi mediado pela professora Nilza e pela militante Lúcia Cabral, da ONG Educap do Complexo do Alemão. Em um debate de quase três horas, cada uma das participantes foi chamada para falar um pouco de suas vivências e batalhas diárias. De acordo com a autora, a troca serviu para mostrar o trabalho comunitário que perpassa gerações, ao reunir lideranças que realizam esse tipo de serviço há muito tempo com jovens que ainda iniciam. Para Lúcia, cujo depoimento também faz parte do e-book, a publicação é um retrato da ancestralidade das mulheres que buscam no dia-a-dia levar melhores condições de vida para os moradores de favela.

— Este título é muito importante para nós, pois ele é a valorização do trabalho que fazemos e da construção de saberes que trazemos na nossa história.

Uma das primeiras a discursar foi a pedagoga Anazir Maria de Oliveira, de 85 anos, a quem o livro é dedicado. Mais conhecida como Dona Zica, ela é fundadora e presidente da Associação das Empregadas Domésticas e incentivou boa parte das mulheres que participaram do livro a se lançar no trabalho comunitário e se empenhar no ativismo social na periferia. Moradora da Vila Aliança, em Bangu, Dona Zica disse se sentir estimulada pelo livro, pois, ele reconhece a importância das lideranças femininas e produz ainda mais força para lutar.

— Este livro, Mulher de Favela, traz um histórico que nos faz se sentir cidadãos do nosso território, de onde a gente começa, fala, chora, abraça, e enfrenta as dificuldades. Mas também é de onde caminhamos juntos.

Professora Nilza Rogéria abraça Dona Zica, para quem o livro foi dedicado. Foto: Luzi Alves

Em contraponto aos 46 anos de experiência de Dona Zica, a adolescente Raíssa Luara de Oliveira, nomeada como Lua, também foi convidada para o debate. Aos 12 anos de idade, ela criou uma biblioteca gratuita, chamada de Mundo da Lua, na comunidade Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Zona Sul do Rio. O objetivo era levar acesso à literatura para as crianças que não tinham condições financeiras de obter livros. Hoje, com 15 anos, Lua continua atuante no projeto e já enviou livros para mais de cinco estados do país.

Na imagem: Lua, Dona Zica e Lúcia Cabral. Foto: Luzi Alves

Além do encontro geracional, o lançamento do e-book provocou emoção entre as pessoas da plateia com os relatos das protagonistas. Integrante da liderança comunitária de Cascadura, Maria Eduarda Samontezze é artista, autista, não possui ensino médio completo, mas se empenha para a promoção de cultura, saúde e educação na favela.  Segundo ela, a solução é lutar por políticas públicas, pois o sistema desconhece as batalhas que um cidadão de baixa renda precisa enfrentar. Ela foi aplaudida de pé ao recitar uma poesia autoral sobre racismo e meritocracia.

— Não ouse questionar a força que um pobre tem para lutar. Rico só é rico porque tem pobre para trabalhar e, muitas vezes, cobrar. Se for empregada doméstica, então, nem precisa de remuneração, pois são da família, moram no coração. As Madalenas são sem consideração, mas é muito rico sem noção: nunca tiveram a força de uma lavadeira, de uma catadora ou trocadora, mas ditam as regras para enriquecer. Eu sei, o herdeiro fez por merecer, por isso, se sente no direito de humilhar e sonegar, porque o segredo é não dar o pão, é ensinar a pescar. (Trecho da poesia de Maria Eduarda Samontezze)

A professora Débora Silva também comoveu ao contar como é viver na Rua do Meio, considerado um dos lugares mais perigosos de Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Da mesma forma que Maria Eduarda, ela falou sobre o privilégio de ser branco na sociedade brasileira e de como o negro de favela ainda visto como referência de marginalidade.

— Ser branco é sinônimo de pureza, o dicionário mesmo diz. Mas ser preto, como o cantor Emicida cita, é ter a pele alvo. Quem mora em periferia sabe, você vê o buraco de uma arma sempre apontado para sua pele. Enquanto isso, vemos menos educação e menos cultura. E onde não há cultura, a violência vira espetáculo.

Para além do combate aos ciclos de violência, a professora narrou as dificuldades passadas pela população do local durante o período de pandemia, em que, impossibilitados de trabalhar, muitos passaram a fazer parte do mapa da fome.

— Pessoas caminhavam por quase duas horas para vir ao centro de Belford Roxo pedir comida com suas crianças. Alguns pediam para lavar o meu banheiro por R$ 20, eu ouvia isso todos os dias: “por favor, deixa eu lavar o seu banheiro a R$ 20 para eu comprar 1kg de arroz e feijão”. E mesmo com o auxílio emergencial, apenas 20% da população de Belford Roxo tinha acesso à internet banda larga, alguns não tinham nem um telefone celular. Nos juntamos na varanda de uma igreja para tentar cadastrar aquelas pessoas e, assim, conseguimos salvar alguns. O plano era nos matar, mas nós combinamos de não morrer.

Professora Débora Silva discursa sobre as dificuldades enfrentadas pelos moradores da Rua do Meio, em Belford Roxo. Foto: Luzi Alves

Ainda sobre a temática da fome, Vanessa Regina dos Santos, associada à liderança comunitária do Buriti e Congonha, em Madureira, expôs a falha da organização de cestas básicas, que continham alimentos necessários apenas para o almoço ou jantar, mas nada que pudesse garantir um café da manhã. Vanessa criou, então, o kit matinal a fim de garantir a primeira refeição do dia para as crianças da comunidade. A militante também defendeu que é indispensável olhar ao redor e ajudar a quem precisa e, assim, ser referência para outras mulheres.

— Eu preciso ser degrau para uma outra mulher. Eu preciso ser degrau para muitos projetos. Eu preciso ser degrau para o sonho de alguém.

A fundadora do projeto A Rocinha Resiste e EducaFavela, Magda Gomes, também marcou presença na reunião. Ela afirmou que estava bastante feliz ao fazer parte do e-book e comentou sobre a importância das mulheres ativistas nas comunidades, pois, segundo Magda, elas são a chave da mudança.

— Nesse lugar de afeto com bem viver e cuidado, vamos continuar a gerar transformação. Não vamos retroceder.

A roda de conversa ainda teve uma videochamada, direto dos Estados Unidos, da pesquisadora Anne-Marie Veillette, mestre em ciência política e estudos feministas. Anne, que contribuiu com o estudo e escreveu o prefácio do livro, elogiou o trabalho da professora Nilza Rogéria e ressaltou o quanto é significativo levar a pesquisa acadêmica para as favelas, pois isto favorece a viabilização do trabalho das lideranças femininas na periferia e coopera para a construção de um novo curso para a cidade.

Platéia lota sala 480 do Edifício Cardeal Leme para lançamento do livro Mulher de Favela. Foto: Luzi Alves

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