Desastre não-natural
31/03/2023 17:17
Henrique Barbi e Rafael Serfaty

Professores apontam que a falta de política do Estado perpetua as mazelas socioambientais na cidade do Rio de Janeiro

Enchente no Rio de Janeiro. Foto: Akemi Nitahara/Agência Brasil

No dia 30 de março, dois homens morreram em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, por causa do temporal que atingiu a região metropolitana do Rio de Janeiro. O perigo de deslizamento foi indicado por 81 sirenes em 50 comunidades do município do Rio. Durante o temporal, ocorreram 14 pontos de alagamento em bairros como Tijuca, São Cristóvão, Cascadura, Maré, Jacaré, Higienópolis e na Linha Amarela. Chuvas, enchentes, deslizamentos. Nada muda. 

Porém, o clima tropical é uma fração de um problema maior: parte da sociedade brasileira é mais afetada do que outras. As mazelas socioambientais vão desde a gentrificação à negligência do poder público, alinhado com a especulação imobiliária. O problema se estende há séculos. De acordo com especialistas, já existem estudos capazes de sanar as mazelas climáticas. Falta ação.

A história indica que a cidade do Rio de Janeiro passou por uma ocupação desordenada desde os tempos do Brasil colônia. De acordo com o Censo IBGE 2010, o Rio é a cidade com maior número de pessoas (valores absolutos) morando em favelas, com 1.393.314 habitantes (22% da população total), o que significa que a cada 100 mil cariocas, 22 mil moram em favelas.

Tragédia na Barra do Sahy, litoral norte de São Paulo, mostra os efeitos da ação climática na costa brasileira. Foto: Paulo Jorge Cardoso

A professora Rejan Bruni, do Departamento de Biologia, observa que há uma área muito plana bem próxima ao mar, com região de restinga arbórea (vegetação de solo arenoso), desde a chegada dos portugueses ao país. Segundo ela, existia manguezal na região onde a cidade se estabeleceria, um terreno bastante compactado e com água estagnada, além das florestas de brejo. Em comum, o fato de todas serem áreas encharcadas com solo argiloso. Sobre isto, o Rio de Janeiro cresceu.

— Quando a gente tem aqui, a despeito de toda a tecnologia, a praça do Jockey Club inundada, é na verdade a retomada da natureza daquilo que lhe é natural. Não há um sistema de drenagem, uma qualificação do espaço urbano que dê conta da natureza local, aí ocorrem os desastres. O processo de ocupação histórico da cidade vai sendo o de aterrar, como o Aterro do Flamengo, por exemplo. Se você usa um modelo de ocupação do período colonial, não tem como dar certo.

Rejan aponta que o crescimento desordenado, com o passar do tempo, expulsa a população empobrecida das áreas mais nobres para as encostas. Porém, a professora ressalta que são regiões de aclive muito acentuado, com solo raso e mais suscetíveis a desastres naturais. E a situação apresenta um agravante: para ela, há conhecimento suficiente para amenizar o problema, mas nada é feito.

— Na Europa, os dados e as evidências científicas são utilizadas em políticas públicas. Isto não acontece no Brasil, o que produzimos na academia fica na academia. Tudo que geramos nas universidades fica esquentando currículo para quê? Vaidade pessoal? Trabalhamos no sentido de prestar serviço também, gerar conhecimento de modo que ele possa ser manejado e revertido em favor da população. Ainda que muitas vezes a pesquisa não possa ter uma aplicação imediata, existem produções que, quando somadas por um longo período de tempo, resultam em grandes impactos.

Professora Rejan Bruni. Foto: Henrique Barbi

Cidade mercadoria

A escassez de políticas habitacionais, na contramão da abundância de conhecimento técnico sobre o tema, também é indicada pelo professor Alvaro Ferreira, Coordenador da pós-graduação do Departamento de Geografia e Meio Ambiente. Ele afirma que a expansão da cidade nunca foi planejada pelo poder público, mas por latifundiários e empresários. As classes dominantes definiram para onde a cidade iria crescer, com a anuência da União.

O professor aponta que não bastasse o crescimento desordenado e a geografia difícil da cidade, “espremida entre o mar e a montanha”, reformas desastrosas consolidaram o caos. De acordo com Ferreira, há dois momentos da história brasileira, refletidos com nitidez na vida de sua então capital, o Rio, que despontam nesse sentido: a Abolição da Escravatura (1888) e a Reforma Pereira Passos (1903). O surgimento das favelas, por exemplo, remonta a esse período.

— A Reforma Passos teve como objetivo ordenar a cidade. Só que no cerne da ordem plantou o germe da desordem. Quando ele proíbe a habitação para a população mais pobre, com a exigência de licenças e projetos para a construção, inviabiliza o subúrbio. Antes disso, você liberta os escravos da seguinte maneira: ‘agora que estão livres, virem-se!’ Eles não tinham casa, trabalho, dinheiro, sapato, roupa, mas tinham que morar em algum lugar. A política empurra a população mais pobre para as encostas, e pior, criminaliza a construção em zonas de risco.

Avenida Central do Rio de Janeiro em 1910. Foto: Mark Ferrez

Ferreira acredita que as reformas perpetuam uma divisão socioespacial baseada no poder aquisitivo de cada indivíduo. Segundo ele, enquanto não houver uma alteração desse panorama, a cidade ficará inviável.

— As reformas urbanas privilegiam as zonas nobres da cidade. Em uma cidade que tem bairros de rico e bairros pobres, sempre será assim. O ideal seria um ‘mix social’, todas as classes, diferentes faixas de renda coexistindo.

O Diretor do Núcleo Interdisciplinar do Meio Ambiente (NIMA), professor Marcelo Motta, mantém linha similar à de Ferreira. Ele afirma que, se tivesse a caneta na mão, investiria em políticas habitacionais. O professor defende a construção de casas populares para a classe trabalhadora, com dignidade e qualidade. Motta acredita que isto daria a cidade para o cidadão, e não para o especulador imobiliário.

Professor Marcelo Motta. Foto: Jorge Paulo Araujo

No entanto, o problema vai mais a fundo. O professor reprova os moldes de urbanização datados (séculos XIX-XX), em que brejo, sistemas de alagados, matas paludosas (solos com alta concentração de água), mangues são empecilhos à urbanização. Para ele, o Rio de Janeiro e o Brasil trabalham a reboque dos grandes acidentes. Motta alega que o desastre não é natural: tem a ver com a produção social do risco.

— Deslizar na encosta, a encosta cair é um processo natural, mas ela atingir pessoas, não. A condição de risco é criada pela sociedade. Não só do risco do deslizamento, mas diversas outras dimensões de risco, como segurança, saúde e vulnerabilidade social. É um efeito das ações humanas. Como construímos a cidade desconsiderando os sistemas naturais de drenagem, de funcionamento dos ecossistemas? Estamos fazendo uma gestão pró-risco.

Autor do livro A cidade que queremos: produção do espaço e democracia, Ferreira reuniu na obra exemplos concretos mundo afora, que refletem seus anseios de mudança. Além do mix social, ele defende a promoção de ambientes em que os desejos e as carências da comunidade sejam apresentados ao poder público.

— Acredito na criação de comitês populares e temáticos. É preciso juntar a população civil para debater esses temas. Não ficar esperando o governo resolver, mas cobrar ações de acordo com o que for debatido pelo comitê. O importante é começar, tentar implementar. Faz parte de uma educação voltada para isso.

Professor Alvaro Ferreira. Foto: Divulgação
                                             

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em 4 de março de 2022 os dados do Produto Interno Bruto de 2021. Os resultados apontam que o PIB da Construção Civil cresceu 9,7% em relação a 2020 - o maior crescimento anual do setor desde 2010. Motta enxerga a cidade como uma bolsa de valores física com terrenos e imóveis. Segundo ele, enquanto isso for um bom negócio, a situação não vai mudar.

— É uma política que perpassa diversos governantes, porque é um bom negócio, não só no Rio de Janeiro. É um pensamento sobretudo na periferia do capitalismo. Isto vem desde a Modernidade, quando núcleos urbanos passaram a ser centralidade de serviços e os terrenos passaram a valer mais. Como é que a gente escapa disto? No limite, tem que acabar com o capital rentista sobre os imóveis. Se a cidade continuar sendo uma mercadoria, a gente não sai disso.

Gráfico do PIB da Construção Civil

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