Música de protesto em novos contextos
29/06/2016 16:11
Bárbara Tavares

Pesquisadores debatem uso de músicas de cunho político e manifestações atuais.

Reprodução

Músicas de cunho político de diferentes momentos da vida nacional, Que país é esse?, de Renato Russo, da Legião Urbana; Brasil, de Cazuza; Inútil, de Roger Moreira, da banda Ultraje a Rigor, e Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré (veja os clipes originais) voltaram ao repertório em manifestações políticas, cantadas em passeatas e atos de protesto. Professor do Departamento de História e pesquisador musical, Rômulo Mattos lembra que os manifestantes fazem uma apropriação ao resgatar canções criadas a partir de um contexto para inseri-las em outro, mudando, portanto, o real significado dessas letras. Na época em que a música Que país é esse foi composta (1987), por exemplo, o Brasil ainda saía de longo período de ditadura militar, em que músicas e manifestações eram censuradas, assim como proibido qualquer discurso contrário aos interesses dos militares, observou, em palestra na quinta-feira, 16 de junho, para alunos do Departamento de Comunicação Social, a convite do professor Gabriel Neiva.

– Os dois primeiros versos (“Nas favelas, no Senado/ Sujeira pra todo lado”) representam um Brasil marcado pela realidade social de desigualdade e pobreza e pelo sistema político. Nas manifestações atuais, os protestantes trazem à tona esse sentimento de nacionalismo e indignação política nos cartazes, nos quais frases dessa música estão estampadas. É preciso pensá-las como ferramentas de fomentação e crítica às censuras e aos seus governantes – compara Rômulo, co-autor de Memórias de um legionário (Editora Mauad), biografia do guitarrista da Legião Urbana Dado Villa-Lobos, em parceria com Felipe Demier, professor do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social da Uerj.

Inútil, de 1983, foi lançada em 1983, concomitantemente à campanha das Diretas Já, iniciada no governo de João Figueiredo. Em forma de sátira, o músico Roger Moreira provoca logo nos primeiros versos: “A gente não sabemos escolher presidente”. A música ironiza como se o povo é que não estivesse apto a escolher o seu representante, e mostra a insatisfação com aqueles que estavam no poder. “Apropriada pelas ruas hoje, a frase expressa o sentimento de quem se sentiu enganado”, analisa Rômulo.

Seguindo a ideia de manifestar assuntos políticos por meio das músicas, Cazuza deu voz ao que o povo brasileiro pensava. A composição Brasil é o retrato do país como pátria da corrupção. O cantor e também compositor imprimia na letra da canção um protesto aos escândalos políticos, às injustiças e às desigualdades. Criada no período de transição da ditadura para o regime democrático, a música de Cazuza foi encaixada nas manifestações recentes com o apelo voltado para o nacionalismo, lembra Rômulo. “Brasil/ Mostra a sua cara” é o lema de ordem para engrandecer a busca por uma sociedade justa e democrática.

Pra não dizer que não falei das flores, com a qual Geraldo Vandré ganhou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1968, em plena ditadura, inicia fazendo alusão direta às marchas revolucionárias. Tornada hino de resistência, ficou proibida por 11 anos. Hoje, deslocada do seu contexto, incorpora um novo significado:

– Os versos “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer” motivavam os manifestantes de esquerda a lutar pelos seus ideais. Aqueles que utilizam a canção para meios políticos escolhem apenas versos que caibam nas suas propostas, como a de tirar governantes do poder. A mesma música que fala “Somos todos iguais, braços dados ou não” é usada por aqueles que pedem intervenção militar, ou seja, por quem pede a volta de uma época em que a desigualdade era escancarada – observa o professor.

Rômulo Mattos. Foto: Mariana Salles

Protestos no rap

Músicas de outros estilos, como o rap, também carregam mensagens políticas. Criado em 1988, em São Paulo, os Racionais MC’s se tornaram o mais importante e influente grupo de rap do Brasil, cantando a história de vida da periferia e pregando a libertação de estereótipos. Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay discutem a desigualdade, principalmente entre o asfalto e morro, a violência policial, o preconceito racial, a miséria e a criminalidade. Pelo hip hop, os Racionais MC’s tornam-se a “voz da favela”, traduzindo as experiências e perspectivas dos jovens negros das comunidades pobres. 

Também convidado para o encontro, o pesquisador Gabriel Gutierrez, doutorando em Comunicação pela Uerj, observou que o rap é mais do que apenas um estilo musical:

– Através do rap é possível firmar a autoestima daquele jovem brasileiro que vive nas periferias. A partir da ética do hip-hop surge uma maneira de falar, vestir, andar, ser e, finalmente, agir. Há, por exemplo, a libertação dos cabelos, aprisionados até então pela cultura imposta pela sociedade. Nesse estilo musical, a vida e a arte se fundem – afirmou o pesquisador, que em sua tese aborda a finalidade do rap como forma de simbolizar a vida cotidiana das populações marginalizadas das grandes cidades.

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