Os corredores com 500 peças produzidas por Millôr Fernandes convergem para a atemporalidade reservada aos grandes artistas. A constatação é feita pelo ilustrador e humorista Miguel Mendes, o Mig, convidado pelo do Jornal da PUC para um mergulho na exposição Millôr: obra gráfica, que segue até 21 de agosto no Instituto Moreira Salles (IMS), na Gávea, Zona Sul carioca. Mig provavelmente traduz uma impressão central dos visitantes, mesmo aqueles sem intimidade com a vida e a obra do jornalista, escritor e múltiplo artista ou com o universo da ilustração. Diante das imagens que devassam um pouco da história e da alma brasileira, torna-se inevitável a sensação de contemporaneidade:
Por quase duas horas em meio aos desenhos e ilustrações do artista morto em 2012, Mig se banha de inspirações técnicas e temáticas. Revê, nas imagens contempladas com admiração profissional, a lembrança também de que humor, senso crítico e cidadania caminham juntos:
– Millôr descia do pedestal para se aproximar do homem comum. O importante para ele era a crítica.
De formação e carreira múltiplas, o jornalista Millôr Fernandes fazia do olhar crítico o fio condutor nas incursões por humor, literatura, poesia, dramaturgia, ilustração. Transportava para as imagens uma percepção crítica e poética da realidade. Embora tratasse, como frisa Mig, de "temas eternos", dizia não ter a pretensão de ser reconhecido como artista. A maioria dos desenhos era feita de materiais perecíveis e finos, feitos para durar só o tempo de serem publicados no jornal.O destino conspirou contra a despretensão daquele que seria reconhecido também como ótimo frasista.
Apesar de se qualificar particularmente como jornalista e não considerar seus desenhos arte, as 500 obras expostas até 21 de agosto no Instituto Moreira Salles revelam a feição de um artista múltiplo, contemporâneo, ora cáustico, ora controverso, não raramente genial. Com curadoria de Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, a mostra, distribuída por cinco salas, passeia pelos principais temas das sete décadas de trabalho de Millôr.
Na primeira sala, Millôr por Millôr, uma coletânea de autorretratos ilustra a ânsia do artista em decifrar a identidade humana. Uma parede cheia de quadros com variações sobre sua assinatura mostra a relação singular com o próprio nome. Aos 17 anos, notou que denominação de batismo não estava escrita corretamente na certidão de nascimento: em vez de Milton, como era chamado até então, estava lá Millôr. Viu na incorreção a oportunidade de assumir nova identidade, pela qual ficaria publicamente conhecido.
– Talvez esses desenhos sejam uma tentativa de entender quem é Millôr e quem é todo mundo. Millôr é um dos poucos caricaturistas que se coloca no desenho. Ele parte de si para comentar a realidade. E quando ele se aproxima, ele humaniza a obra dele. Ele não é crítico de um político ou de um indivíduo particular, ele é crítico do drama de ser um ser humano – analisa Mig.
A segunda sala da mostra é dedicada aos 18 anos de produção de Millôr no Pif-Paf, seção da revista Cruzeiro, primeiro semanário ilustrado de publicação independente no país. Entre 1945 e 1963, sob o pseudônimo de Emmanuel Vão Gôgo, Millôr imprimiu reformas gráficas e estéticas na imprensa brasileira, misturando layouts originais e impressos.
A quarta sala representa um mergulho meditativo e filosófico sobre a miséria humana. O cotidiano maçante, os pequenos desvios da moral, as relações sociais desgastadas, a consciência da limitação da condição humana e a insatisfação com a realidade.
Na última sala, estão expostos desenhos à mão livre do artista. O universo, bichos, árvores e crianças exibem o lado lúdico de Millôr. Familiarizado com a área, Mig reitera a importância do humor na comunicação com o público:
– Falando de maneira sisuda e técnica, você limita seu público. O humor alcança mais pessoas. O lúdico é a melhor maneira para se comunicar.
Em um dos desenhos da sala, Millôr inverte o papel dos pássaros e dos homens. No céu, os homens voam. Nas ruas, pássaros trajando roupas andam apressados.
– Millôr troca as coisas de lugar e propõe uma reflexão: Será que os passarinhos continuariam livres se tivessem obrigações humanas? Não seria bom se as pessoas fossem livres como os passarinhos?
A própria charge, como expressão recorrente em jornais e revistas, confronta-se com a necessidade de buscar novos formatos, novos caminhos, diante de novos padrões no consumo de informações hoje capitaneado pelas plataformas digitais. Apesar da vantagem de ilustrar com poucos elementos gráficos algo complexo, o cartum encontra pequeno reduzido nos veículos tradicionais. Artistas gráficos passam, então, a ocupar outros espaços, como as redes sociais e os muros urbanos.
– Nos jornais, o cartum faz refletir sobre realidade. A notícia em si não te forma como humano. Hoje, falta o espaço para o cartunista, para o aprofundamento. É o tempero que está faltando na mídia – pondera Mig.
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