Falta de água e de saneamento contrastam com patrimônio hidrográfico da Amazônia
30/08/2016 15:17
Mariana Casagrande*

Em meio a rotinas sacrificadas devido à carência de serviços essenciais, moradores sonham com o dia em que a exuberância natural será convertida em melhor qualidade de vida

A ausência de saneamento na Região Amazônica, rica em patrimônio hídrico e ambiental, revela um dos muitos contrastes que caracterizam o Brasil. O país abriga 12% da água potável disponível no mundo e o maior aquífero do planeta, o Aquífero Guarani, nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Com seus, aproximadamente, 37 mil quilômetros cúbicos de água, o Guarani poderia abastecer a população brasileira por séculos. Ainda assim, o país não consegue distribuir esse recurso igualmente para cerca de 204 milhões de brasileiros. Em 2013, quando nordestinos sofriam com a seca, o estado do Amazonas, que abriga cerca de 72% das reservas de água do país e apenas 5% da população nacional, declarava situação de emergência por conta de enchentes.

Em Parintins, por trás do cheiro de esgoto frequente, arrasta-se a rotina de resistência e de esperança de boa parte dos habitantes da cidade, presos em uma rotina não raramente à margem dos registros oficiais.

Rio Amazonas, na Avenida Paulo Teixeira, enfrenta coleta de lixo precária e falta de saneamento básico. Foto: Thayana Pelluso

Famosa pelo festival folclórico realizado anualmente na última semana de junho, Parintins é outra para quem mora na cidade do Amazonas. Patrícia Souza mora no bairro de Santa Rita e sofre com a falta de saneamento básico. Na casa, onde vivem 18 pessoas, só há um banheiro, sem tratamento de esgoto – os resíduos são jogados diretamente no Rio Amazonas, que passa sob a palafita. A Avenida Paulo Teixeira costuma alagar no período de chuvas, de dezembro a maio, quando o rio chega a subir até um metro nas épocas de cheia:

A casa da Família Souza, que comemora o ano sem cheia no rio. Foto: Thayana Pelluso

– Nossa realidade é a seguinte: no ano passado e dois, três anos atrás, nossa casa foi ao fundo e a gente não teve ajuda do nosso prefeito (Alexandre de Carbrás, do PSD). O governador (José Melo, do Pros) mandou uma cesta básica, o mínimo que ele faz. Mas nossa ponte foi meu sogro cadeirante que construiu, junto de outros moradores, para a gente poder ir para a rua e as crianças para a escola. Na cadeira de rodas, sentava na tábua, pregava e fazia a ponte – conta.

A fossa da casa também foi obra do sogro. A jovem trabalha como manicure e vende churrasco em frente de casa, para complementar a renda da família, que aguarda a entrega das chaves de uma unidade a que tem direito pelo programa Minha Casa, Minha Vida.

 – Tem 50 casas construídas e a minha deveria ter sido entregue em maio, mas até agora, nada – lamenta Patrícia.

A família, que estava dividida entre o sertanejo na sala e a televisão na cozinha, em um domingo à tarde, convive com o forte cheiro de esgoto. Na casa, não há janelas ou portas, apenas panos dividindo os cômodos:

– A gente se acostumou com o cheiro, o problema é pegar doenças, como infecção urinária que meu sogro teve, ou tomar choques durante as enchentes, além de “receber visita” de cobras e vários tipos de peixes – reclama a manicure, que ainda denuncia a falta de coleta de lixo:

 – Eles passam num horário toda semana, mas há épocas em que não mandam, pode passar um mês inteiro sem vir. E, se for época de chuva, o entulho faz o rio encher mais ainda. Aí, a gente paga alguém pra levar o lixo. Numa vez, o povo se reuniu e jogou tudo na casa do prefeito.

Patrícia, mãe de cinco filhos, se preocupa com a segurança das crianças, pois todos andam pela rua descalços e sem camisa. Foto: Thayana Pelluso

Distribuição de água irregular

Na maior bacia hidrográfica do mundo, a Bacia Amazônica, ainda que abundância seja a palavra mais adequada para descrever os recursos naturais, parte dos moradores do estado sofre com estruturas precárias na distribuição e tratamento de água.

Já para Maria Cruz, feirante da barraca de plantas medicinais do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, em Manaus, o problema do estado não é a água contaminada, mas a má distribuição desse bem natural:

– Se a água daqui fosse suja, eu já estaria morta. O que tenho que enfrentar é a falta dela. Muitas vezes, os moradores são obrigados a pagar um caminhão-pipa para tomar banho, lavar roupa, escovar os dentes. Isso é inaceitável em um estado que abriga a maior bacia hidrográfica do mundo – diz Maria, moradora de Japurá, município do interior do Amazonas.

Água como transporte

O Rio Amazonas é muito usado para transporte pelos moradores dos estados da região Norte brasileira. Barcos também são usados para distribuição de produtos. No entanto, Antônio Santos, que trabalha no Mercado Municipal de Manaus, um dos pontos turísticos mais famosos da cidade, em frente ao porto, reclama da burocracia e dos custos para o descarregamento:

– O porto, por ser privatizado, me cobra R$ 20, R$ 30 cada vez que quero retirar minhas encomendas, como os peixes e doces que vendo na barraca. Além disso, tenho que pagar R$ 10 para um carregador, porque não aguento o peso da carga. É caro e acabo tirando essa diferença no preço que cobro do consumidor. É mais difícil trabalhar com produtos do próprio estado do que de outras regiões do país, uma vez que o depósito do aeroporto pode ser acessado gratuitamente. Quero valorizar a cultura do meu estado para receber os turistas, mas é difícil com tantas barreiras – lamenta. 

Santos, que trabalha há 40 anos no mercado, ainda reclama que “para os olhos do turista, esse é um espaço sujo, onde há muitos moradores de rua e ratos passando pela calçada”.

Projetos de start-ups

Durante o Coca-Cola Open Up TheBoat Challenge, evento organizado pela ONG Artemisia e patrocinado pela Coca-Cola entre os dias 25 e 28 de junho, no Rio Amazonas, 15 start-ups foram selecionadas para serem avaliadas e aceleradas. Como benefício extra, algumas poderiam receber ofertas de parcerias com grandes empresas do mercado de telecomunicações, infraestrutura urbana e até de cosméticos. Entre os projetos dos pequenos empreendedores, dois sugeriam soluções para os problemas típicos da Amazônia ligados à água: Minitrat e Hydros.

O primeiro, idealizado por Ricardo Azevedo, tem como missão diminuir o número de brasileiros sem saneamento básico. Segundo dados do IBGE de 2015, apenas 48% da população brasileira têm acesso à coleta de esgoto e um número ainda menor conta com esgoto tratado: só 39%. Das regiões brasileiras, a Norte tem o pior desempenho. Cerca de 67% da população jogam dejetos diretamente nos rios.

O Minitrat é um equipamento de plástico que copia o modelo de grandes estações de tratamento de esgoto, porém, de forma ultracompacta, substituindo a rede de coleta. Segundo Azevedo, o protótipo busca acelerar a meta brasileira de universalizar o tratamento de esgoto até 2030. O equipamento promete economia a longo prazo, uma vez que a manutenção, que só depende da rede interna da casa em que for instalada, possibilita o reuso de água. O Minitrat é autooperável, transformando o esgoto doméstico em água não potável.

 O Minitrat acumula até 528 litros de esgoto por dia. Foto: Divulgação 

A outra start-up que traz soluções para o problema hídrico na Amazônia é a Hydros. O projeto, de Marcos Silva, surgiu no Acre, com o objetivo de diminuir a falta d’água nesse estado:

– Ainda que a natureza seja abundante no Acre, disponibilizando água suficiente para a população, a distribuição não é feita de forma eficaz e os moradores sofrem muito com isso, principalmente nas periferias – denunciou Silva.

O Hydros é um software que, através da implantação de sensores na tubulação de água das cidades, permite que a empresa responsável pela distribuição de água possa identificar os locais onde há vazamentos. Dessa forma, poderá agir rapidamente para evitar o desperdício e, assim, impedir que algumas regiões sofram com falta d’água, além de preservar os recursos naturais. No Brasil, o índice de desperdício de água está em torno de 60%. Na Amazônia, 70% do patrimônio hídrico é desaproveitado. Ao contrário do Minitrat, o Hydros requer contratação do governo. 

Soluções de especialistas

Ainda no TheBoat Challenge, especialistas foram convidados para auxiliar no crescimento das start-ups, compartilhando experiências e dando boas dicas aos representantes das pequenas empresas. Profissionais ligados ao meio ambiente em grandes companhias e ONGs enriqueceram os projetos com dicas para serem mais competitivos no mercado.

Mentores, empreendedores e convidados se reúnem para discutir os projetos. Foto: Thayana Pelluso 

Rodrigo Britto, administrador e coordenador de parcerias da WorldTransforming Technologies (WTT), apoia cientistas e centros de pesquisa que desenvolvam projetos de impacto social nas áreas de água e energia. Para Rodrigo, um dos maiores desafios de trabalhar na Amazônia é enfrentar a densidade da floresta, pois “as pessoas moram muito afastadas umas das outras”. Por isso, ele sugere soluções familiares:

– Tenho projetos para tratamento de água em comunidades que trabalham com coleta e armazenamento em cisternas e caixas d’água. Esse sistema purifica o líquido contaminado com vírus e bactérias através do ozônio. São pastilhas de cloro que podem ser jogadas diretamente na água que vai ser consumida. Além disso, distribuímos filtros de barro e sistema de nano tubos que captam a água da chuva e a filtra, tornando-a própria para consumo. 

Eduardo Taveira, mestre em Ciências do Ambiente e Superintendente Técnico-Científico da ONG Fundação Amazônia Sustentável (FAS), defende que sua preocupação é trabalhar em parceria com o governo para “tornar as políticas públicas para unidades de conservação mais eficientes e, dessa forma, fazer a floresta valer mais em pé do que deitada”. Taveira explica que o uso da floresta para o próprio sustento não é condenável, mas ela deve ser feita de forma consciente.

– Apesar de estarmos na maior bacia hidrográfica do planeta, o acesso à água tratada é um desafio para a maior parte das comunidades. Por isso, desenvolvemos um filtro que capta água dos rios e a trata com placas solares que fazem esterilização com raios ultravioleta, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) – explicou ele, garantindo que esse procedimento elimina 100% dos micro-organismos.

Em relação à estrutura das casas de palafita, o cientista social defende que esse modelo é adequado ao meio ambiente amazônico – quente e rico em madeira –, não devendo ser visto como um problema:

– O que é inadequado é ter esse tipo de moradia no meio urbano, onde os rios recebem resíduos industriais e acumulam esgoto e lixo da cidade – ponderou ele, citando os métodos de saneamento de fossas simplificadas, usando tecnologia com uso de plantas, sistema de compostagem para lixo e identificação e diminuição de agrotóxico na área rural como alternativas para diminuir a poluição das águas.

Voltada para o transporte, a FAS adapta serviços identificando o rio como melhor mecanismo de escoamento na Região Amazônica. Por isso, promove serviços de lanchas para deslocamento de doentes, as “ambulanchas”. Para Taveira, o ideal para a Amazônia é criar hidrovias, com menor impacto ambiental que estradas.

* A repórter viajou a convite da Coca-Cola.

Veja também: Startups desenvolvem inovações com foco na Amazônia

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