Cultura esportiva precisa de aparatos e incentivos em escolas públicas, propõe ex-secretário do Ministério do Esporte
05/09/2016 16:32
Gustavo Côrtes

Em entrevista ao Jornal da PUC, o também professor do IRI Luís Manuel Fernandes aponta caminhos para aproveitar as heranças da Copa e dos Jogos Olímpicos

Luís Manuel Fernandes. Foto: Nina Cardoso

 

Com o fim dos Jogos Olímpicos, precedidos pela Copa do Mundo de 2014, o Brasil – em especial, o Rio – encerra um ciclo movido pela organização dos maiores eventos esportivos do mundo. Quando o poder público decidiu guiar o bonde para sediá-los, as condições econômicas, políticas e sociais eram bem distintas. Entre 2007 e 2009, período no qual o país obteve a chancela para recebê-los, vivia-se ainda uma trajetória de crescimento econômico e redução de desigualdades sociais. Com as sucessivas perdas de renda e emprego, culminadas na maior recessão da nossa história, e a instabilidade política refletida no afastamento da presidente Dilma Rousseff, pairam sobre as investidas no Mundial e, mais recentemente, na Olímpiada expectativas ou cobranças associadas à capacidade de legarem benefícios econômicos, sociais e urbanos efetivos. Até porque consumiram, juntos, quase R$ 50 bilhões. Dos 12 estádios preparados para a Copa – oito dos quais já deficitários, segundo levantamento feito em 2015 pela Folha de S.Paulo – às instalações esportivas da Rio 2016, por exemplo, torna-se iminente o debate sobre os caminhos para converter a singular sequência esportiva em vetores de desenvolvimento socioeconômico.

 

Para o ex-secretário executivo do Ministério do Esporte Luis Manuel Fernandes, é preciso expandir a prática do esporte nas escolas e criar mecanismos públicos de incentivo à melhoria de gestão de clubes e federações. Em entrevista ao Jornal da PUC, Fernandes, que ocupou o cargo de 2012 a 2015, avalia que Copa e Olimpíada cumpriram o esperado, foram exemplos de organização e expuseram uma imagem positiva do Brasil. Ex-coordenador do Grupo Executivo da Copa do Mundo, o professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio ressalva, contudo, que perdemos “grande oportunidade de despoluir a Baía de Guanabara”. Entusiasta do mundo esportivo, como indica o chaveiro com escudo do clube estimado, Fernandes sugere também um modelo misto na formação de talentos (escola-clube) e mais rigor em relação à responsabilidade fiscal das associações, para melhorar a governança e encaminhar o pulo do gato no esporte brasileiro.

 

 

Jornal da PUC: Gostaria que o senhor fizesse um balanço dos resultados e da organização da Copa e da Olimpíada, levando em conta o planejamento do Ministério do Esporte para os dois maiores eventos esportivos do mundo sediados no Brasil. Noves fora, o que fica de concreto?

 

Luis Manuel Fernandes: Ambas foram grandes sucessos, embora precedidas de pessimismo generalizado. No Caso da Copa, a negatividade da imprensa brasileira, temerosa pela qualidade dos serviços públicos, contaminou a cobertura internacional. Assim cunhou-se o “Imagina na Copa”. Contudo, depois do início do evento, houve uma inversão de postura por parte da imprensa internacional, que passou a rasgar elogios ao Brasil, ofuscado apenas pelo fiasco da nossa seleção (risos). A inversão da opinião pública sobre a Copa impactou a expectativa em relação à organização da Olimpíada, tornando as críticas mais cautelosas. A preocupação só cresceu na véspera dos Jogos, em razão da crise política e da epidemia de zika, que amedrontou os atletas e a imprensa estrangeira. A ausência de competidores por compromissos firmados anteriormente com patrocinadores para a data dos Jogos também gerou desconfiança. Apesar de tudo isso, a organização foi bem-sucedida. As cerimônias de abertura e encerramento expuseram a imagem que queríamos do Brasil: a de um país aberto, tolerante, que valoriza o desenvolvimento sustentável e prioriza o acolhimento, em detrimento do preconceito. Só lamento muito a grande oportunidade que perdemos de despoluir a Baía de Guanabara. Não sei quando haverá outro pretexto para mobilizar tantos recursos em um projeto ecológico tão importante.

 

Jornal da PUC: Em relação aos Jogos Olímpicos recém-encerrados, que contribuições podem ou devem ser aproveitadas para o desenvolvimento do esporte no país?

 

Fernandes: Foram criados centros de treinamento para cada uma das modalidades olímpicas que não dispunham dessa ferramenta e um para esportes paralímpicos, em São Bernardo do Campo (SP). No caso dos esportes que já contavam com essa estrutura, houve aprimoramento, como o centro de treinamento do vôlei em Saquarema. Foram disponibilizados recursos para trazer profissionais estrangeiros com conhecimento em esportes ainda novos no Brasil. Houve também investimentos em tecnologia de acompanhamento de desempenho. Mas minha visão é um pouco mais ampla. Os projetos dessas competições esportivas envolvem um plano que vai além do legado esportivo, mas que se preocupa com o desenvolvimento do país. No caso da Copa, esses avanços são mais dispersos, mas eu citaria a modernização de aeroportos e o transporte urbano. São legados não só para os atletas, mas para a população. No caso da Olimpíada, as melhorias no transporte público do Rio, com o VLT e a Linha 4 do metrô, que ligam regiões da cidade que ainda não haviam sido conectadas.

 

Jornal da PUC: Mas o Ministério Público cobrou da organização da Olimpíada um plano de legado para as associações esportivas, tradicionais formadoras de atletas do país.

 

Fernandes: Já tive muitas discussões com o Ministério Público, que tem uma visão restrita de legado. O órgão cobra a decisão de quem vai ficar com a administração das obras que foram feitas, o que é válido, pois é importante discutir qual modelo ideal de gestão das arenas. Mas esta decisão é do estado, da prefeitura e do Comitê Organizador, não do governo federal.

 

Jornal da PUC: Embora a formação de talentos seja fundamental para gerar renda e emprego, supõe-se que o desenvolvimento do esporte como instrumento de educação e socialização sejam prioridades das políticas públicas. Como melhorarmos nesse sentido?

 

Fernandes: Quando se fala de legado esportivo, é preciso distinguir a democratização da prática esportiva do esporte de alto rendimento, que não faz parte da realidade da maior parte da população. A Olimpíada, por si só, ajuda a criar a cultura do esporte. Isso deve ser complementado por investimentos em aparato esportivo nas escolas públicas e incentivos à prática do esporte pelos alunos no período em que eles não estão em sala de aula, como foi feito pelo programa Segundo Tempo.

 

Jornal da PUC: Ainda quanto ao modelo de formação de talentos, sabe-se que a matriz brasileira é centrada nos clubes. O que foi feito para incrementar essas associações fornecedoras de atletas olímpicos, no que diz respeito à infraestrutura e à governança? E o senhor acha que essa matriz é a ideal, ou o Brasil deve se aproximar do modelo americano, baseado no trabalho feito pelas instituições de Ensino Médio e Superior?

 

Fernandes: Embora seja preciso aprimorar as políticas esportivas nas escolas, não podemos simplesmente propor uma mudança completa no modelo brasileiro de formação de atletas e ignorar o trabalho que clubes e federações vêm fazendo competentemente há anos. Às vezes esquecemos, mas as federações de esportes pouco populares, como o handebol, fazem todo o trabalho que, no caso do futebol, é feito pelos clubes. O esporte nas escolas deve ser encorajado como forma de educação, convívio social e identificação de talentos, para que, então, eles sejam direcionados aos clubes ou federações, que o auxiliariam na transição para a prática esportiva de alto desempenho. Acho que o melhor caminho é um modelo misto, que distribua funções entre clubes, escolas e federações. Também não podemos esquecer o Exército. As 13 das 19 medalhas conquistadas pelo Brasil nas Olimpíadas foram ganhas por atletas militares, porque houve investimento em centros de treinamento das Forças Armadas. Essa é uma política importante, que deve ser mantida.

 

Jornal da PUC: E quanto à governança dos clubes e federações? Escândalos como os que atingiram cúpulas do futebol e do atletismo indicam a renitência de práticas associadas a clientelismo e corrupção. Como banir de vez esses velhos vícios?

 

Fernandes: Por mais que o esporte mexa com nossos brios e com nosso espírito cívico, principalmente o futebol, que é paixão nacional, a CBF, os clubes e as demais federações são privadas. Têm, portanto, autonomia garantida pela Constituição, o que impede uma intervenção direta do Estado nessa questão. O que tem sido feito pelo governo federal é oferecer crédito e recursos públicos aos clubes, exigindo deles contrapartidas que aprimorem as práticas de gestão e promovam mudanças estatutárias, como a limitação da reeleição de dirigentes e a emissão de certidões negativas provando o pagamento ao fisco. Flamengo e Vasco, inclusive, receberam recursos dessa maneira recentemente. Outra medida saneadora, pela qual eu briguei enquanto estive no Ministério do Esporte, mas que infelizmente não foi aprovada, é a punição esportiva ao clube que não estiver em dia com o Fisco. No dia em que o torcedor vir seu time rebaixado porque o clube deixou de pagar impostos adequadamente, os dirigentes irresponsáveis serão vistos de outra forma. Isso teria um efeito moralizador enorme.

 

Jornal da PUC: Ainda em relação aos esforços para captar mais e melhores investimentos no setor esportivo, consultores e gestores da área apontam o crowdfunding como uma das alternativas mais promissoras, inclusive para subsidiar modalidades olímpicas. O senhor concorda?

 

Fernandes: Vejo essa opção com bons olhos. O Vasco recentemente usou essa ferramenta para revitalizar um ginásio do clube. O projeto foi um sucesso. Em cerca de três meses, o dinheiro arrecadado já havia superado, e muito, o valor estipulado como meta. Além disso, o receio de muitas pessoas em doar dinheiro para projetos de clube em razão da desorganização caiu, pois o processo arrecadatório por crowdfunding envolve necessariamente a transparência. Todos sabem de quanto o clube precisa, quanto o clube angariou e o que será feito com a verba. Portanto, é uma alternativa excelente.

 

Jornal da PUC: Está em discussão no Congresso o anteprojeto da nova Lei Geral do Desporto, que, entre outras novidades, prevê maior autonomia dos clubes e a maior participação deles no processo decisório, além de regulação de apostas, como uma forma de controlá-las e coibir evasão fiscal. O que o senhor pensa dessas medidas?

 

Fernandes: O assunto apostas é muito controverso. Confesso não ter opinião formada a respeito, embora tenha receio. Na Europa, essa é uma das maiores fontes de arrecadação dos clubes, mas isso dá margem à manipulação de resultados, que é um problema gravíssimo. Não sei se seria bom. Entendo a necessidade de discutir esse tema, pois de fato tem um enorme potencial gerador de receitas. Se não for para proibir, é preciso estabelecer regras claras, para que não fuja do controle.

 

Jornal da PUC: Muitos estádios da Copa se transformaram em elefantes brancos. Como podemos evitar que o mesmo aconteça com instalações olímpicas?

 

Fernandes: Não acho que seja essa a marca deixada pelos estádios da Copa. O Beira-Rio, o Maracanã, a Arena da Baixada e a Arena Corinthians, a Fonte Nova e o Castelão definitivamente não viraram elefantes brancos. Os outros são menos usados, mas não ficam sempre inutilizados. O Mané Garrincha, por exemplo, vem sendo bastante usado por clubes do Rio.

 

Jornal da PUC: Mas isso não ocorre porque o consórcio responsável pela administração do Maracanã impõe condições muito duras aos clubes que querem jogar lá? E quanto aos estádios menos utilizados, mesmo que eles recebam jogos ou outros eventos, a arrecadação muita vezes não é suficiente para cobrir os custos de arenas de última geração.

 

Fernandes: As condições do consórcio do Maracanã realmente são ruins para os clubes, mas essa foi uma escolha do governo estadual, que optou por conceder o estádio à iniciativa privada. Quanto aos estádios menos utilizados, é preciso analisar também o retorno econômico que os estados onde essas arenas se situam obtiveram em razão da exposição proporcionada pela Copa. Cuiabá, por exemplo, foi mostrada ao mundo. O ganho com turismo também tem que entrar nessa conta.

 

Jornal da PUC: Quais os principais desafios do esporte brasileiro hoje e como aproveitar a maré olímpica para superá-los ou, ao menos, encaminhar soluções?

Fernandes: Os principais desafios são democratizar o esporte e formar mais e melhores atletas, para que o Brasil possa, cada vez mais, aproximar-se dos países com melhores desempenhos olímpicos. Para isso, é preciso estimular a prática esportiva cotidiana nas escolas e fortalecer os clubes e federações, com políticas públicas que induzam à moralização da gestão dessas entidades.

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