Luto: resgate emocional é paulatino, ponderam psicólogos
07/12/2016 10:03
Mariana Salles e Gustavo Côrtes

Para especialistas em trauma, tempo de enlutamento e apoio são essenciais após perda trágica e súbita como a do acidente com avião da Chapecoense, que matou 71 pessoas, entre atletas e dirigentes do clube, jornalistas e tripulação.

Foto: Agência Brasil

Um dos desafios inerentes a tragédias como a queda do avião que matou 76 dos 81 passageiros nas proximidades de Medellín, na madrugada de terça passada, envolve a reconstrução de ânimos, sonhos e perspectivas de vida de amigos e parentes das vítimas do acidente. Neste episódio, acompanhado de uma comoção internacional, o desafio de juntar os cacos emocionais foi amparado pelas manifestações mundo afora, solidárias à dor pela morte de jogadores, dirigentes, jornalistas e tripulantes que estavam no voo da Lamia. Embora comoventes e inspiradoras, homenagens como as que lotaram simultaneamente o estádio colombiano no qual Atlético Nacional e Chapecoense disputaria a final da Copa Sul-Americana e a Arena Condá, a casa da equipe do oeste de Santa Catarina, revelam-se insuficientes para resgatar da desolação os que passam por traumas desta ordem. Tal resgate, tão decisivo quanto o dos seis sobreviventes, contempla esforços e competências coordenados, sob a batuta de profissionais da área de psicologia. Assim observam o vice-coordenador do grupo Amigos Solidários na Dor do Luto (ASDL/RJ), Rodrigo Franca, formado pela Universidade de Ontario, no Canadá, e a também psicóloga Sônia Nascimento, da Uerj, especialista em Logoterapia (psicoterapia baseada na “busca de sentido”). Em entrevista ao Jornal da PUC, eles apontam alguns caminhos para o sucesso deste socorro tão delicado e complexo.

Jornal da PUC: Como resgatar da desolação amigos e parentes de vítimas de acidentes como a tragédia do voo da Chapecoense? Como lidar com o trauma de perdas tão trágicas, súbitas e precoces?

Rodrigo Franca: É muito importante criar uma rede de ajuda e ter acompanhamento de psicólogos. Muito provavelmente, famílias e amigos das vítimas estão em choque. Não conseguem fazer absolutamente nada, ou quase nada. A rede de ajuda serviria para dar um apoio que inclui, por exemplo, preparar as refeições, ir ao supermercado e até cuidar de crianças pequenas. O acompanhamento de psicólogos de plantão serve para ouvir e validar a perda, propondo suporte emocional e elaborando formas de rituais e homenagens. Se houver a necessidade, um psiquiatra pode ser chamado para fazer uma intervenção farmacológica, após a avaliação psicológica.

Sônia Nascimento: As diversas formas de manifestação emocional devem ser permitidas, não considerando a intervenção medicamentosa à qual comumente recorrem as pessoas mais próximas de quem está vivendo o luto. Do ponto de vista psicoterapêutico, a pessoa precisa expressar sentimentos genuinamente humanos, abertamente e com liberdade, sejam sentimentos de raiva, angústia ou simplesmente o recolhimento e o silêncio. A maior ajuda neste momento é o respeito à singularidade pessoal. Ficar próximo sem invadir, estar perto e abraçar.

Jornal da PUC: Quais as diferenças do suporte dado a pessoas em luto decorrente de perdas mais comuns e o dado a pessoas em luto coletivo?

Rodrigo: Depende de cada caso. O luto é bastante abrangente. Pode-se trabalhar com grupos de focos específicos ou não. Em tragédias como a da Chapecoense ou, há mais tempo, a da Boate Kiss, em Santa Maria, no Sul, é um pouco diferente, pois temos que agir primeiro no coletivo, diante da gravidade do acidente e das cenas fortes constantemente mostradas nas redes sociais e na televisão. É importante focar no coletivo, primeiro, mas não devemos descartar atendimentos individuais após o acidente.

Os atendimentos coletivo e individual envolvem formas de atuação distintas do psicólogo. Quando estamos num grupo, focamos no bem-estar comum das pessoas no grupo. Todos podem ver outros passando pela mesma dor. Ao proporcionar isso, há grande chance de os enlutados se sentirem um pouco melhor, pois sabem que não são as únicas pessoas a passar por aquela dor. Portanto, após um acidente as demonstrações coletivas são estimuladas. Apesar disso, é importante ressaltar que nem todas as pessoas se sentem bem em expressar os sentimentos em grupo. Nesse caso, cabe ao psicólogo fazer uma triagem inicial para manejar melhor a situação. Se houver necessidade, é recomendado que essa pessoa tenha um acompanhamento individual.

Sônia: Não há diferenças significativas. A morte é um processo doloroso para qualquer pessoa. O que possivelmente diferencia as manifestações da dor e do sofrimento são os rituais, as religiões, a cultura. O suporte passa, então, pela unicidade da pessoa enlutada. Muitas vezes a participação em grupos compostos pelos que vivenciam o mesmo sofrimento auxilia terapeuticamente no resgate do sentido de vida do enlutado.

 

Foto: Agência Brasil

Jornal da PUC: Quais os principais sintomas dos que passam por experiências traumáticas como esta? Como os profissionais da saúde e os amigos devem agir nesses casos?

Rodrigo: Os sintomas são os mais diversos. Em geral, as pessoas ficam em choque, há uma necessidade constante de chorar, não conseguem falar sobre o que aconteceu. Outros ficam incrédulos da realidade (negação do acontecimento), alguns são agressivos. Muitos dizem que perdem o chão, outros relatam que parte de si também se foi, outros tantos ficam em alerta, esperando a volta do ente perdido. Outros fogem da realidade, agindo como se nada aconteceu, e assim por diante. Cada ser humano tem uma reação própria para lidar com as perdas.

Independentemente da reação na hora, é importante que todos respeitem a dor dos enlutados, sem tentar minimizar os sentimentos, com frases do tipo “ele não sofreu”, ou “foi uma morte rápida”, ou “Deus quis assim”. Também não se deve fazer pressão para que fiquem bem, convidando-os, por exemplo, para festas, reuniões familiares ou viagens. O melhor a se fazer é ouvir e mostrar afeto, carinho, mostrar que o enlutado não está sozinho, sem julgamento e pressão. É normal que um enlutado queria ficar na cama chorando por horas. O importante nessa hora é acolher a dor, saber escutar sempre que quiser falar, por mais repetitivo que seja. As pessoas, de uma forma geral, têm necessidade de falar sobre os traumas, questionamentos, sentimentos, pois assim estão tentando se adaptar à nova realidade. Por isso, a terapia do luto é muito importante. 

Sônia: Nem todas as experiências traumáticas levam ao mesmo dano emocional, nem da mesma forma. Surpreendentemente, muitas pessoas reagem de maneira diferente ao que normalmente se espera. Não existe uma forma certa ou errada de expressar, na superfície, o que se sente na alma, no coração. Mas, como profissional da área de saúde mental, posso dizer que, com a prática clínica, observo que aqueles que perdem pessoas próximas e queridas apresentam alguns sintomas comuns, como comportamento mais introspectivo, depressão transitória, falta de apetite, perda de sono, medo, raiva, entre outros. A família e os amigos podem ajudar, sempre, estando próximos e aguçando a capacidade de ouvir, mesmo que somente o silêncio. Aos poucos, e no tempo do enlutado, deve-se tentar a inserção social. Aos profissionais da saúde, ouso dizer que devemos enxergar a pessoa que sofre para além do sintoma.

Jornal da PUC: Quais as principais técnicas de especialistas em psiquiatria e psicologia recomendadas como suporte aos que passam por traumas deste tipo?

Rodrigo: Em casos como esse acidente, psicólogos coordenam, em geral, grupos de atendimentos coletivo e individual. É importante também a participação de um psiquiatra de plantão, caso haja a necessidade de uma intervenção farmacológica.

Sônia: Cito um dos grandes médicos psiquiatra e psicoterapeuta, existencialista, da saúde mental, Carl G. Jung: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja somente outra alma humana”.

Foto: Agência Brasil

Jornal da PUC: Como fazer para conciliar a dor do luto com a necessidade de seguir a vida, as rotinas familiar e profissional, em compasso com a memória dos amigos ou parentes abruptamente perdidos?

Rodrigo: O que serve para algumas pessoas pode não servir para outras. É difícil falar especificamente o que fazer. Homenagens e rituais em determinadas datas normalmente ajudam os enlutados a passar por ocasiões como Natal, aniversário (da vítima), dia do acidente etc. O primeiro ano é o mais difícil para os enlutados, pois têm que aprender a passar por essas datas comemorativas sem os entes queridos. Ou seja, são constantemente lembrados do que aconteceu, como aconteceu, e obviamente os sentimentos também voltam. A ideia é deixar os enlutados à vontade e sem pressão. É muito importante dizer que o processo de luto não tem tempo. Ou seja, tudo dependerá do enlutado passar pelo processo do luto e ressignificar a vida, acolhendo os seus sentimentos, se permitindo, aos poucos, novas experiências, com calma, no seu tempo e sem afobação. No processo de luto não existe certo ou errado, não deveria ter pressão ou julgamento social. Só quem perde entende o que é perder. Assim, não podemos apressar o processo do luto. O luto é um divisor de águas na vida de uma pessoa.

Sônia: A espiritualidade nesses momentos vai ajudar muito. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a espiritualidade como fator de proteção nos casos de perda do sentido de vida ou vazio existencial vivido pelo paciente. Mas também não podemos desconsiderar a ajuda de profissionais das diversas áreas da saúde mental que também auxiliam neste processo. O luto é um processo de rompimento doloroso, um tempo também de reconstrução e ressignificação da vida para aquele que sepulta um ente querido.

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