Planejamento é caminho para cidades garantidas pela Constituição
06/04/2017 15:14
Camila Gouvea

Em 40 anos, dobrou número de habitantes e triplicou o de moradias no país, mas governos não conseguiram acompanhar expansão. Especialistas apontam que cidade mais planejada é segredo para  prosperidade econômica, redução da segregação social e da violência.

Foto: Freepik

 Em 40 anos, o Brasil dobrou seu número de habitantes e triplicou a quantidade de moradias, mas os governos não conseguiram acompanhar a expansão das cidades. A falta de planejamento urbano e a desassistência do Estado em considerável parte do território nacional propiciam a segregação social e perdas de oportunidades de crescimento econômico.

 Para o arquiteto e presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), Sérgio Magalhães, o primeiro passo é reconhecer o problema:

 – Se nós continuarmos ignorando o fato de que parcelas importantes da cidade estão fora da proteção constitucional e acharmos que isso é normal ou que não existe, não vamos conseguir enfrentar o problema. afirma. E completa: – As cidades brasileiras em geral estão sem planejamento. Precisamos de sistemas de planejamento que sejam estáveis.

 

Sérgio Magalhães. Foto: Camila Gouvea

 A falta de planejamento leva a um crescimento horizontal da cidade, que se torna cara, pela necessidade de ampliação das redes de energia, esgoto, água. Para Magalhães, a ocupação extensiva, espalhada pelo território e rarefeita de população e serviços públicos, leva à perda do controle do Estado sobre grande parte do território, que acaba desassistido, resultando no aumento da violência e do domínio de traficantes:

 – Muitas partes das cidades, não só no Rio de Janeiro, não estão protegidas pelo Estado. Há áreas onde a prefeitura não está presente adequadamente, não faz cumprir as leis urbanísticas e não tem controle sobre o espaço público. Isso permite que quem se destaque de certo modo, com algum poder extra, consiga dominar parte desses territórios que estão à deriva, e que vão aos poucos se fortalecendo. Logo, não adianta botar polícia. A ida e vinda da polícia é apenas um episódio; não é assim que funcionam bairros onde a lei está lá fazendo seu papel. Onde isso não ocorre, sempre vai ter alguém que assume esse poder, porque nunca há espaço vago no poder. Se não é o Estado que preenche, alguém preencherá.

 Ainda segundo Magalhães, embora o crescimento populacional esteja em queda, nessa geração a cidade terá 50% de acréscimo no número de domicílios, em decorrência da queda no número de membros da família que habitam a mesma casa. Com esse aumento, é preciso ter atenção ao planejamento de uma cidade mais compacta, de uso mais intensivo, com serviços públicos mais baratos e usados de forma mais racional:

 – Temos que fazer com que a cidade se contenha, pois ela não está mais crescendo em população, mas está aumentando em número de casas. Se nós formos construir mais 50% do que temos hoje expandindo a cidade com o mesmo número de moradores, iríamos acabar espalhando essas pessoas, tornando a cidade mais cara e mais difícil de suprir as exigências contemporâneas. A cidade tem muitas possibilidades de absorver a nova demanda de moradias, mas é preciso desenhá-la para que ela se viabilize, e isso se faz com planejamento.

 A desigualdade de territórios traz consequências preocupantes no ponto de vista social. O cientista social Marcelo Burgos, professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, acredita que é preciso investir na mistura social – políticas urbanas que favoreçam a mobilidade urbana, e a construção de habitações populares em áreas de classe média e alta. E completa:

 – Nesse sentido, a própria urbanização e valorização das favelas consolidadas das cidades é também uma política importante. É possível trabalhar com a ideia de equidade urbana, operando com indicadores que permitam atacar a desigualdade de acesso a serviços públicos fundamentais.

 Burgos lembra que uma cidade mais igualitária é aquela que oferece acesso a serviços públicos, mobilidade urbana, habitação social e regulação do uso do solo – que gradualmente controla a lógica especulativa do mercado imobiliário das áreas informais. “Uma cidade mais igualitária é um mecanismo fundamental para reduzir a desigualdade de renda, cultural e social”, reforça o cientista social.

 

Belo Horizonte. Foto: FreeImages

 Para os especialistas, a melhor forma de desfazer a segregação social é fazer com que a cidade toda tenha uma qualidade urbanística básica, com qualidade em infraestrutura e o estímulo de polos de desenvolvimento econômico, para que a população tenha oportunidades de emprego e prosperidade econômica próximo da sua casa, eliminando a polarização centro-periferia.

 A falta de planejamento restringe uma cidade a usufruir dos seus potenciais econômicos e a condição para que o desenvolvimento econômico seja sustentado é que a cidade seja boa, segura e ofereça condições para que os agentes econômicos se desenvolvam plenamente. Se a cidade for extremamente desigual e tiver parcelas importantes subjugadas por facções criminosas, será uma cidade subestimada e parcialmente disponível. Sérgio Magalhães concorda que “não é só uma questão apenas de natureza social e natureza política, é também de natureza econômica importante, já que a cidade não se desenvolve como poderia” e explica que pessoas dispostas a trabalhar e prosperar acabam restringidas por causa da falta de condições e oportunidades da cidade:

 – Todas as pessoas possuem ambições naturais da vida não importa a condição social que tiverem. Todas aspiram ao progresso, bem-estar, à educação, e estão dispostas a produzirem e empreenderem para isso. Mas se o lugar onde elas moram não for suficientemente garantido, elas ficam contidas e sem a possibilidade de crescer o quanto poderiam. A mesma coisa com as empresas. Se elas crescem em uma área desfavorável, a tendência é se deslocar para outro lugar. Nessas emigrações de energia criadora, o local inicial se consolida como um ambiente que não oferece possibilidades.

 Como exemplo de desperdício de potencial, o arquiteto citou a Avenida Brasil como um local de ótimas condições logísticas e muitas oportunidades de aproveitamento de antigas fábricas: “Mas se ali for um ambiente negativo, ela vai deixar de ser um bom instrumento para que a cidade se desenvolva, e o Rio de Janeiro perde porque as condições urbanísticas e os serviços públicos não estão adequados aos tempos de hoje, fazendo com que o desenvolvimento econômico se restrinja” explica.

 Na década de 1990, iniciou-se no Rio de Janeiro um movimento de recuperação de loteamentos irregulares, com o programa de urbanização Favela-Bairro, que dava melhores condições de infraestrutura e de presença do governo. Ao mesmo tempo, houve um incremento da atividade econômica, com maior acesso ao mercado de trabalho e um sistema de distribuição com mais qualidade, acompanhado de uma redução expressiva da violência urbana. O arquiteto lembra que aquela experiência atraiu o interesse da Colômbia, que mandou técnicos para ver de perto a logística da cidade carioca e aplicar em Bogotá e Medelín.

 – Houve um progresso nesse aspecto, o que torna evidente que a urbanização e a presença do governo são fatores essenciais para que haja qualidade. Mas, dos anos 2000 para cá, isso foi minguando, a prefeitura e o governo do estado foram saindo e as coisas pioraram.

 

Bogotá

 Para o economista Sérgio Besserman, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio, é central o papel do estado na reestruturação urbana e formação de cidades igualitárias e constitucionais. Planos de segurança são necessários de imediato, mas sozinhos não serão a resolução de todos os problemas. Dessa forma, é preciso tomar providências de longo prazo e permanentes de uma política nacional de cidadania e recuperação de todo o território nacional para o domínio da Constituição.

 Besserman considera que todas as políticas públicas em qualquer nível (federal, estadual ou municipal) devem considerar seus impactos e eficiência em função do urbano, que é onde já vive mais de metade da população do mundo, desde que o caminho da reforma urbana é ter “o máximo de transparência, democracia de alta qualidade e máxima eficiência das políticas públicas segundo métricas conhecidas dos cidadãos”.

 Convidada a ministrar a aula magna do curso de arquitetura da PUC, a professora de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik destaca que as transformações urbanísticas hegemônicas nas cidades do Brasil e no mundo têm deixado de atender às meras questões de moradia e necessidades básicas das pessoas para se tornarem um ativo financeiro:

 – O espaço físico, o espaço construído, deixa de ter qualquer relação com as necessidades humanas e de vida da população que habita esses territórios, e passa a ser única e exclusivamente uma fonte de valorização através dos juros de um capital financeiro investido, um capital financeiro que é global.

 Raquel pontua também que o impacto da tomada do setor de construção e na produção do espaço urbano pelo setor financeiro significa o desenvolvimento da reestruturação urbana. A arquiteta lembrou que, na década de 80, os conjuntos habitacionais que existiam nos grandes centros ao redor do mundo eram habitados por trabalhadores que não tinham condições de sair deles. Com o tempo, esses prédios foram se degradando por falta renda para reforma. Também não havia verba pública para a manutenção porque na hora de criar esses conjuntos o governo concedeu isenção de impostos. Criou-se assim um tipo de moradia estigmatizada, longe das cidades e das oportunidades.

 

Raquel Rolnik. Foto: Dóris Corrêa

 Besserman pondera também que investimentos em mudanças como alterar a Constituição para que a questão da segurança deixe de pertencer aos estados e seja igualmente assumida pela União poderia colaborar com o estabelecimento de uma cidade mais igualitária, e ainda sobre medidas indispensáveis, complementa: “Garantir educação de qualidade (uma revolução que demorará décadas) e igualdade de oportunidades”.

 Para Marcelo Burgos, “é necessário que o tema esteja mais presente no processo político eleitoral, em especial nas políticas municipais” e ressalva: “Insisto que a reforma urbana é um tema que está no centro do enfrentamento da desigualdade brasileira”.

 A cidade hoje é um ser extremamente complexo que precisa ter respostas oferecidas pelo coletivo, não dá para ter respostas individualmente. Besserman afirma: “Não é mais possível separar o local do global. Pensar global, agir local e pensar local e agir global. Essa é a nova realidade planetária”. Por isso, o objetivo central do Congresso Mundial de Arquitetos, a ser realizado no Rio em 2020, é o diálogo entre arquitetura e sociedade.

 – O que estamos buscando com o congresso é ampliar o diálogo com a sociedade. É colocar na pauta política, o máximo possível, o interesse para a compreensão dessas questões de que o país precisa ser planejado – reforça Sérgio Magalhães.

  Magalhães destaca que um fator importante para estruturar uma cidade é o transporte público: “Se tivermos transportes públicos que sejam articuladores urbanisticamente, podemos fazer com que a cidade não se expanda e com que as pessoas não se dispersem” e salienta que “a qualidade do serviço de transporte desestimula o uso do automóvel e faz com que as pessoas ao construírem suas casas, optem por ficar em lugares que sejam bem abastecidas de serviços.

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