Artistas celebram 'revolução descolonizadora' de Oswald de Andrade
10/04/2017 17:25
Camila Gouvea

José Celso Martinez, Beatriz Azevedo, Roberto Corrêa dos Santos e professor e decano Julio Diniz debatem a importância do Manifesto Antropófago para identidade cultural brasileira, em aula inaugural do CTCH.

Da esquerda para direita: José Celso Martinez Corrêa, professor Júlio Diniz, Beatriz Azevedo e Roberto Corrêa dos Santos

José Celso, com seus recém-completados 80 anos e o espírito jovem e alegre, cantarolava junto ao ator Tulio Starling antes do início da Aula Inaugural do Centro de Teologia e Ciências Humanas: Antropofagia/Canibalismo – Notações Contemporâneas. Junto ao diretor e dramaturgo, estavam o artista Roberto Corrêa dos Santos e a poeta e compositora Beatriz Azevedo. O debate, mediado pelo decano do CTCH, professor Júlio Diniz, no último dia 6, promoveu a discussão da Antropofagia com base no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, publicado em 1928 com a finalidade de refletir a dependência cultural brasileira. A plateia foi composta por alunos e professores da PUC e de outras instituições, além da atriz Regina Casé e do antropólogo Hermano Vianna.

José Celso iniciou sua fala solta e descontraída levantando-se da cadeira, com a justificativa de que era a forma certa de falar de Oswald:

– Não podemos falar de Oswald de Andrade em uma língua careta. Não adianta falar dele com o corpo parado, sentado. É entediante, é insuportável. Ele era uma pessoa corporal, física. Toda a obra de Oswald é falada de uma maneira teatral, seja romance, poesia ou filosofia. Ele acreditava que sua poesia tinha uma potência capaz de transformar fisicamente o mundo.

O Manifesto Antropófago de Oswald não apenas transformou a maneira do povo brasileiro de enxergar o fluxo de elementos culturais do mundo, como acrescentou uma pitada brasileira na arte, na produção nacional, revelando a identidade tupiniquim no cenário artístico global. José Celso destacou que Oswald de Andrade virou do avesso as artes no Brasil, e todas as misturas e rituais vieram na música, nas artes plásticas, cinema e no teatro. Mas não imediatamente. O diretor explicou que, mesmo publicada em 1928, a obra oswaldiana foi explorada apenas pela geração seguinte:

– Ele trouxe tudo que ficou detido na geração dele. Era uma geração careta, que ele apelidou de “piolhos da revolução”. Decidiu passar a bola para outra geração, e a nossa pegou. A geração seguinte, a de antropófagos e da tropicália, agarrou essa ideia e teve o mérito de fazer uma revolução cultural que foi uma revolução descolonizadora.

Beatriz Azevedo lançou o livro Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Ed Cosac Naify, 2016), uma análise detalhada do Manifesto Antropófago, e contou que teve que pesquisar a antropofagia esquecendo todos os conceitos que já conhecia:

– Quando eu comecei a estudar e pesquisar esse tema, eu me defrontei com décadas e décadas, diversos livros de uma imensa produção e fortuna crítica. Em paralelo, a gente já percebia no mundo da mídia, da comunicação, entre os jornalistas, o uso indeterminado do termo ‘antropofágico’. Teve um momento em que tudo era antropofágico. Isso começou a me incomodar como um excesso de vestimentas em cima de um conceito e de uma poética na qual tudo que o Oswald dizia era que é preciso ouvir o homem nu. Para tanto, eu mesma tive que me entregar ao exercício de ver com olhos livres, que é outra formulação oswaldiana: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”.

Em seu significado original, antropofagia consiste na prática, comum em muitas tribos indígenas, de ingestão da carne de inimigos capturados com intenção de absorver suas forças, conhecimentos e energias. Metaforicamente usada, essa expressão passou a significar a “ingestão” de valores estrangeiros para “expelir” um produto original e novo. A estratégia criativa de Oswald era questionar a influência política-econômica-cultural determinadas pelo colonizador no meio cultural e artístico brasileiro. Beatriz pontuou:

– Eu vejo a antropofagia como uma versão poética, criada por um poeta, dos saberes e práticas de conhecimento indígenas. Eu vejo a antropofagia como uma descolonização permanente do pensamento.

José Celso criticou também a situação política atual, afirmando que é um momento de mudança, com a necessidade de uma união maior da população:

– A política precisa disso. A única maneira de uma transformação do que estamos vivendo hoje no mundo, mas especialmente aqui no Brasil, é através de uma revolução cultural antropófaga. Os corpos devem se juntar, é o momento de união. Fico impressionado com a distância entre as pessoas, a sensação de solidão, de monólogo. Isso é uma tragédia.

José Celso Martinez Corrêa, formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, é dramaturgo, ator e diretor teatral. Começou a se destacar como um dos mais revolucionários diretores teatrais do Brasil nos anos 60. Conhecido por suas produções originais e polêmicas, José Celso procura sempre integrar o público à peça e quebrar a habitual relação entre palco e plateia. Criou, em parceria com Renato Borghi, Amir Haddad, Jorge da Cunha Lima e outros, o Teatro Oficina, em 1958, com a peça de sua autoria Vento forte para um papagaio subir.

Foi preso durante a ditadura militar por problemas com a Censura e exilou-se em Portugal, onde formou o grupo Oficina Samba. Em Portugal, fez o documentário O parto, sobre a Revolução dos Cravos, produzido pelo Oficina e pela Rádio Televisão Portuguesa, além do filme Vinte e cinco, sobre a independência de Moçambique. Retornou ao Brasil em 1978.

Recebeu mais de 20 prêmios, como melhor autor por A incubadeira, em 1958 (Festival de Teatro de Santos); melhor direção no Festival Latino-Americano por Os pequenos burgueses e Andorra (1965); Prêmio Shell de melhor direção por Ham-Let (1993); Mambembe de melhor ator em 1998 por Ela (Jean Genet); e Prêmio Shell de melhor autor e diretor por Cacilda! (1999).

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