Educadores apontam lacunas na nova Lei do Ensino Médio
07/06/2017 14:58
Diana Fidalgo

Especialistas observam brechas e indefinições na reforma, que retirou do texto História e Geografia, restringiu disciplinas obrigatórias a 40% da carga horária total e criou cinco itinerários flexíveis, que serão distribuídos por secretarias de Educação entre as escolas de acordo com "vocações locais". Coordenador-geral do Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do MEC responde dúvidas.

Arte de Beatriz Meireles

Sancionada pelo presidente Michel Temer em fevereiro, a Lei 13.415, do Novo Ensino Médio, deixou escolas públicas e privadas de todo o país com uma grande interrogação, acentuada pela crise política. A lei restringe as disciplinas obrigatórias a 40% da carga horária total do Ensino Médio e cria uma nova subdivisão do conteúdo em cinco itinerários ­– Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional. A adoção do novo sistema, porém, ainda depende da atualização da Base Nacional Comum Curricular – que estabelece direitos, conhecimentos, competências e objetivos de aprendizagem para os estudantes brasileiros, garantindo unidade mínima aos currículos em todo o território nacional, e que precisa ser aprovada pelo Conselho Nacional de Educação antes de ser homologada pelo Ministério da Educação. O MEC anunciou inicialmente que o texto referente ao Ensino Médio ficaria pronto em meados de 2017, e depois adiou para o fim do ano. As escolas precisam de tempo para adaptar o currículo.

O professor Edgar Lyra, do Departamento de Filosofia da PUC-Rio, vem acompanhando a reforma desde o ano passado e expressa preocupação. Ele chama atenção para o fato de a Lei 13.415 ter sido aprovada antes da Base Nacional Comum Curricular ser discutida e aprovada, o que gera insegurança e abre uma série de lacunas:

– A lei cita 13 vezes a Base Nacional Comum Curricular, que ainda nem foi publicada. É uma lei que se baseia em lacunas e incertezas – afirma o professor, que debateu sobre a Reforma do Ensino Médio com professores e estudantes secundaristas na Universidade para o PUC por Um Dia, no último dia 5 de maio.

O professor Edgar Lyra analisa a Lei ponto a ponto Foto: Dóris Duque

Aluno decide entre opções dadas por secretarias estaduais e escolas

Mas a maior crítica de especialistas em educação é em relação à suposta liberdade de escolha dos alunos. Nos comerciais do Ministério da Educação sobre a Reforma do Ensino Médio, o slogan “Você decide o seu futuro” sugere que é decisão do aluno escolher a área de conhecimento ou de atuação profissional. Porém, as instituições de ensino só têm a obrigação de oferecer um dos cinco itinerários aos alunos, que poderão decidir, sim, mas apenas entre as opções disponíveis na sua unidade.

Chefe do Departamento de História do Colégio Pedro II, a professora Silvana Bandoli considera este o “lado mais perverso” da lei:

– Equivocadamente, a propaganda do governo faz crer que a escolha seria o aluno, só que ele vai decidir a partir do que a escola oferecer. Pode acontecer de o aluno querer fazer linguagens, e a instituição só oferecer matemática e suas tecnologias. E se linguagens só for oferecida em outra escola, em outro bairro, fora do acesso dele? E, quando tiver acesso, será que o estado terá condições de oferecer na sua rede um ensino de qualidade? É um retrocesso. Estamos investindo na desigualdade.

O MEC esclarece que a reforma delegou aos estados definir que escolas oferecerão que itinerários formativos: “No Amazonas, a rede pode identificar que é melhor estudar botânica com exemplos da região”. O coordenador-geral do Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do MEC, Wisley Pereira, acrescenta:

– A quantidade de itinerários formativos ficará a cargo das redes de ensino. Essa questão é com as secretarias estaduais. É preciso ver como vão organizar suas escolas. A proposta é valorizar o aprofundamento de acordo com a vocação e a realidade em que cada escola está inserida, seja o bairro, a cidade ou a região. Mas o estudante pode optar pelo itinerário de Ciências da Natureza e eleger ter aulas de Ciências da Filosofia, que é do itinerário de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

Lyra observa que 53% dos municípios brasileiros têm apenas uma escola de Ensino Médio, e que muito poucas escolas têm capacidade para oferecer o que está sendo prometido – dependem de professores, laboratórios, investimentos, num momento de recessão e controle de gastos:

– Então o aluno estuda numa escola no interior do Ceará, e estão dizendo que ele vai poder escolher ser designer de games, professor etc. A escola pública do interior do Ceará vai oferecer esse leque de opções para esse menino?

Critica, ainda, a distribuição dos itinerários por vocação local, em que a formação do aluno será definida pela opção que a escola mais próxima oferecer, esbarrando ainda nas dificuldades e no custo da mobilidade:

– Como um menino de Japeri que quer ser eletricista vai se deslocar para o Rio Comprido e voltar para Japeri? É tempo, alimentação, dinheiro. Nosso professor Ralph Bannell diz que vai passar a vigorar a loteria do CEP: “Qual o seu CEP?” 22631390. “Então você vai estudar matemática”. “Qual o seu?” 28738500. “Então você vai estudar carpintaria”.

Ensino de História foi reduzido

Outra preocupação dos especialistas é o futuro do ensino de História, que integra o currículo do ensino brasileiro desde o século XIX, e deixou de ser especificado como componente curricular obrigatório no texto aprovado no Congresso Nacional. A lei cita como obrigatórios no Ensino Médio Língua Portuguesa, Matemática e, após reação de educadores, Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes, que estavam de fora – o que acabou ocorrendo com História e Geografia na última versão. A carga horária das demais disciplinas, como História e Geografia, serão reguladas pela Base Nacional Comum Curricular.

O professor Paulo Cesar de Araújo. Foto de Felipe Fittipaldi

O historiador Paulo Cesar de Araújo, professor de Comunicação na PUC-Rio e de História na Faetec, considera as disciplinas fundamentais para a formação da cidadania e central dentro das ciências sociais, e lamenta:

– Eu e muitas pessoas achamos que foi um engano não citarem História nem Geografia na lei. Eu custo a crer que isso ficará assim... Eu, nos anos 70, em plena ditadura militar, tive História no Segundo Grau, mesmo diminuída. Esse contato iluminou o meu caminho. Sou resultado dessa disciplina numa perspectiva de formação de cidadania.

O coordenador-geral do Ensino Médio do MEC justifica que as disciplinas não deixaram de ser obrigatórias, mas confirma a redução da carga horária mínima:

– Geografia e História não são opcionais, assim como vários outros conteúdos, obrigatórios na Base Nacional Comum Curricular. Foi retirada a obrigatoriedade como disciplina para poder colocar em discussão dentro da BNCC. Se a BNCC, feita com ampla discussão popular e de especialistas, achasse que deve ser obrigatória, como achou no documento, elas são obrigatórias. Foi necessário deixar Português e Matemática como obrigatórias legalmente para poder serem dadas em todo o Ensino Médio – afirma Pereira.

Persistem também dúvidas em relação à flexibilização do conteúdo. Em resposta às indagações de educadores encaminhadas pelo Jornal da PUC, o Ministério da Educação afirma que não há redução na variedade de disciplinas, nem obrigatórias em cada um dos itinerários formativos: “O estudante pode optar para o itinerário formativo dele a área de ciências da natureza e suas tecnologias e eleger ter aulas de ciências da filosofia, que é de outro itinerário formativo – o de ciências humanas e sociais aplicadas”. Porém, não esclarece como se dará essa organização: “Isso vai depender do protagonismo dos sistemas de ensino”.

Notório saber

Em relação aos “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino para ministrar conteúdos de áreas afins à sua formação para atender o disposto no início V do caput do art. 36”, a partir de 2019, o professor e coordenador de História da PUC-Rio, Henrique Estrada, observa que o notório saber pode ser interessante por possibilitar a inclusão de pessoas não diplomadas numa área específica. Mas alerta para o desconhecimento dos critérios de concessão:

– São pequenas armadilhas no texto da lei que dependerão de certas interpretações que vão abrir o mercado a pessoas não necessariamente submetidas a uma licenciatura como de história ou de geografia. Há uma brecha na própria obrigatoriedade da licenciatura para lecionar, mas não sabemos quem vai ditar esse parâmetro. Por isso, o notório saber é preocupante caso ocorra o rebaixamento das exigências para o exercício da profissão docente.

A admissão de profissionais com notório saber também preocupa universitários. O estudante de História da PUC-Rio Douglas Lomar, 26 anos, que vai se formar em meados de 2018, manifestou apreensão:

– Tivemos um susto. Não sabemos como será o parâmetro, é uma concorrência desleal conosco, até porque a comunidade acadêmica não está sendo consultada. Além de provar que está pronta para assumir o cargo de professor, há todo um esquema de didática. Sabemos que mudanças são necessárias, mas dar aula são técnicas de ensino: um aluno não entra na sala de aula como um vidro vazio. Ele já tem toda uma carga social, familiar, religiosa... O professor tem várias maneiras para apresentar novos conteúdos.

O estudante Douglas Lomar. Foto de Diana Fidalgo

Especialistas criticam ainda o que entendem como a antecipação da escolha profissional, hoje feita apenas na saída do Ensino Médio. O Ministério da Educação alega que “de forma nenhuma antecipa a escolha profissional”.

– Este novo modelo dá opção ao estudante para que ele trilhe itinerários formativos com maiores subsídios e, principalmente, para que ele tenha um maior aprofundamento. O Novo Ensino Médio propõe um modelo mais atrativo de ensino, que oferte uma formação ampla ao jovem, tanto nos aspectos cognitivos quanto nos aspectos socioemocionais, o que é fundamental para tornar a escola atrativa e significativa com objetivo de reduzir as taxas de abandono e aumentar os resultados de proficiência – responde o coordenador-geral do Ensino Médio do MEC.

A lei ainda instituiu o programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, que estabelece a ampliação da carga horária de todas as escolas de 800 para 1.000 horas em até cinco anos, “no ritmo que acharem melhor”, segundo Pereira, que ressalva: nem a escola em tempo integral e nem o novo Ensino Médio, que prevê o aumento progressivo para 1.000 horas/ano, totalizando 3.000 horas, são divididos em etapas. A carga horária destinada ao cumprimento da BNCC não poderá ser superior a 1.800 horas do total da carga horária do Ensino Médio de 3.000 horas, e será comum a todos os estudantes, garantindo os conhecimentos básicos de formação geral:

– Os sistemas de ensino poderão oferecer as 1.800 horas da BNCC diluídas nos três anos do Ensino Médio, sendo 600 horas em cada ano ou, por exemplo, dividi-las em 1.000 horas no primeiro ano e 400 horas no segundo e o restante das 400 horas no terceiro ano. Isso também vale para os itinerários formativos: as 1.200 horas poderão ser ofertadas de acordo com a distribuição que o sistema de ensino optar.

Especialistas questionam ainda se haverá espaço físico ou recursos para acomodar todos os alunos simultaneamente. O MEC afirma que a reforma não prevê expansão do ensino integral para todas as escolas: “Caberá aos Conselhos Estaduais de Educação normatizar a implementação da Lei”. Pereira acrescenta que o período integral – igual ou superior a sete horas – é calculado somando-se a duração da escolaridade com atendimento complementar.

O professor Edgar Lyra destaca que não se trata de criticar o governo, mas de apontar incoerências no texto aprovado, vago em vários pontos:

– Minha postura tem sido mostrar as incoerências e as dificuldades que essa legislação traz. Lacunar do jeito que isso está, vai deixar todo mundo doido na hora da implementação.

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