Para pesquisadora, nova Lei da Migração tende a melhorar acolhida a refugiados
25/05/2017 17:06
Helena Carmona

A coordenadora do IRI, Carolina Moulin, avalia que iniciativa deve favorecer coordenação de agentes envolvidos com o "tema migratório", como Polícia Federal e Ministério da Justiça. Na contramão da onda xenófoba, novidade tende a fortalecer direitos humanitários.

A ONU contabiliza, nos últimos anos, 60 milhões de deslocados por conflitos políticos, religiosos, desastres naturais ou tsunamis econômicas. Cerca de 20 milhões deles são, formalmente, refugiados. Revelam a pior crise humanitária desde o fim da Segunda Guerra. Na contramão dos muros visíveis e invisíveis para barrar refugiados, o Senado brasileiro aprovou, no mês passado, a nova Lei de Migração. De acordo com seus artífices, as novas regras buscam fortalecer o direito à mobilidade humana e resolver, no longo prazo, um problema que várias resoluções normativas tentavam sanar desde 2012: impasses entre a lei de refúgio de 1997, avançada em termos humanitários, e o Estatuto do Estrangeiro, da década de 1980, considerado por especialistas extremamente restritivo.

Uma das resoluções normativas, de 2013, válida até setembro próximo, favoreceu acolhimento de sírios por meio da concessão de vistos humanitários. Com a nova Lei de Migração, a caminho da sanção presidencial, a abertura a refugiados tende a ser ainda maior. O texto substituirá o Estatuto do Estrangeiro. Herança da ditadura, trata o migrante como uma ameaça à segurança nacional e, em muitos casos, o criminaliza. Portanto, não raramente entra em choque com a Constituição, de 1988, quanto aos direitos e deveres de um migrante. Segundo o antigo estatuto, um estrangeiro não pode participar de manifestações políticas, por exemplo.

Em 2012, havia sido criada uma resolução normativa para acolhimento de haitianos, em razão do grande número de vítimas dos terremotos de 2010. No começo de 2017, gerou-se uma outra, para migrantes vindos de países que fazem fronteira com o Brasil – destinada principalmente aos venezuelanos. Essas resoluções precisam ser renovadas a cada dois anos, e o Brasil carecia de uma legislação permanente alusiva ao acolhimento de egressos de países sob fragelos como perseguição política e religiosa, guerra civil, desastres ambientais e até crises econômicas muito graves, como a da Venezuela.

Diante de tais demandas, foi proposta, em 2013, pelo então senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), licenciado por assumir o ministro das Relações Exteriores, a nova Lei de Migração. Reúne, entre as principais mudanças, a descriminalização da situação irregular no Brasil, o combate à discriminação e a concessão ampliada de vistos humanitários. Para a coordenadora da graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio, Carolina Moulin, a novidade representa um novo olhar do poder público para o imigrante:

— A lei vai ter um forte impacto. Primeiro, porque muda a ótica a partir da qual os poderes públicos olham e interagem com o imigrante. Vai alterar, inclusive, os mecanismos de regularização dessas populações. O caso dos haitianos foi emblemático: eles chegavam ao país por uma questão humanitária que não se encaixava na categoria de refúgio. Não havia uma categoria migratória para incorporá-los e atender às necessidades deles, que eram até muito próximas das dos refugiados.

Ainda de acordo com a professora, a lei “abre espaço para outras possibilidades de acolhimento e permanência que fazem parte da experiência migratória contemporânea.” Ela acrescenta:

— Na prática, facilita o processo de entrada no território brasileiro. Este é um elemento fundamental para a atuação das principais agências que trabalham com o tema migratório: Polícia Federal, Conselho Nacional de Migração, instâncias do Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho e Emprego e os órgãos de acolhimento básico no âmbio municipal, associados a educação e saúde, por exemplo. A lei serve como uma diretriz para todos esses servidores. Na medida em que agora defende que eles [os migrantes] são sujeitos de direitos e deveres dentro de uma ótica mais progressista, vai ser facilitado o acolhimento e a integração dessas pessoas na sociedade — prevê.

A perspectiva de melhores acolhida e integração social coindide com uma mudança representativa do panorama migratório no Brasil. Enquanto recua o número de pedidos de refúgio por sírios, castigados por uma guerra civil que se prolonga por seis anos, cresce em ritmo intenso a entrada de venezuelanos, deslocados pela crise econômica e política sem precedentes: aumento de 22.000% em três anos. Eles se concentram no estado de Roraima, que chegou a decretar estado de emergência no sistema público de saúde no fim do ano passado, tamanha a sobrecarga decorrente do fluxo migratório. Sem condições de se alojarem todos em Boa Vista, os venezuelanos têm seguido para o Amazonas. Manaus também decretou estado de emergência depois da chegada de quase 500 índios waraos no início do mês. 

O cenário irriga a proliferação de discursos xenófobos, como se observa mundo afora, e tende a dificultar a regulamentação da nova Lei de Migração.  Na página eletrônica referente à nova lei, vinculada ao Senado, o resultado da consulta pública confirma a apreensão com o fluxo migratório: mais de 80% eram contrários à aprovação. O senador licenciado Aloysio Nunes, autor da proposta, foi hostilizado nas redes sociais, acusado de “traidor da pátria”. O receio de parte da população à entrada de estrangeiros deve-se, entre outras justificativas, a um suposto risco de avanço da criminalidade. Carolina garante, no entano, que “não há indício factual de que a presença de imigrantes aumente a criminalidade numa área.”

— Muitos estudos mostram que a contribuição líquida dos imigrantes (pagamento de impostos, contribuições sociais, empregos gerados por pequenos negócios) quase sempre é maior do que aquilo que eles usufruem do sistema. O que temos é um conjunto de mitos acerca da presença desses estrangeiros no Brasil. É uma ansiedade, um temor generalizado, que gera a criminalização da figura do imigrante. — explica.

Pedro Alvarez, de 27 anos, confirma a apreciação da professora. Radicado há um ano em Boa Vista, o refugiado conta que, quando "as pessoas descobrem que é venezuelano, passam a tratá-lo de maneira diferente", com desdém:

— Fazem um julgamento errado, porque pensam que todos os venezuelanos são pilantras. Tenho minha consciência limpa e minha cabeça erguida. Nunca fiz e nem farei nada errado.

Na cidade venezuelana de Maturín, Pedro trabalhava como agente de carga e cursava engenharia do petróleo na Universidade Bolivariana. Parou de estudar por conta da crise econômica. Precisava ficar nas filas para conseguir comprar comida. No Brasil, leva uma vida simples: trabalha na construção civil, vai à igreja três vezes por semana e, às sextas-feiras, joga futebol. Além do preconceito, Pedro luta para se sustentar financeiramente.

— Lá na Venezuela, quase todos os serviços (essenciais) são de graça. Mas aqui, para quem recebe só um salário mínimo, é muito duro [se manter]. Pagar aluguel, água, luz — compara.

Ainda assim, o refúgio verde-amarelo garante-lhe paz e um horizonte socioeconômico menos duro que no país vizinho mergulhado numa inflação de 700% ao ano. Ele nunca pediu ou recebeu ajuda de ONGs, "só do chefe e do vice-presidente da igreja que frequenta, a Assembleia de Deus". Não visita a Venezuela há 6 meses. Quando pode, manda comida e dinheiro para a família, por meio de cambistas. Com a iminente sanção da nova lei, a tendência é Pedro trazê-los para o Brasil sem dificuldade ou burocracia, pois é assegurado ao imigrante o direito à "reunião familiar".

Para o casal Maria Elias Elwarrak, de 51 anos, e Jose Joaquin Rodriguez Alvaras, 48, também da Venezuela, as maiores dificuldades desde que chegaram ao Brasil, há um ano e sete meses, têm sido conseguir trabalho e aprender o português. Diferentemente da maior parte dos quase 3 mil conterrâneos em refúgio no país, concentrados no Norte, eles estão radicados no Rio. 

Maria já se confrontara com deslocamentos forçados na família. Os refugiaram-se na Venezuela por conta da guerra civil do Líbano, de 1975 a 1990. Quando a crise econômica passou a assombrar drasticamente o casal, sobretudo pela dificuldade em conseguir produtos básicos, ela e o marido cogitaram migrar para o Brasil. Pesou também a perseguição a Jose, funcionário de uma empresa estatal. Depois de dez anos pagando por segurança na Venezuela, decidiram pedir refúgio no Brasil.

Maria e Jose Joaquin vivem com os dois filhos, de 8 e 18 anos, num quarto na casa da esposa de um primo. Na Venezuela, ela era técnica em informática e ele, engenheiro civil. Aqui, vendem comida árabe para eventos e feiras gastronômicas, como a Chega Junto, da qual participam refugiados de vários países. Foi a saída encontrada, justifica Maria, diante da dificuldade em validar diploma estrangeiro comprovar a qualificação profissional. O dinheiro que ganham "é o suficiente para viver". Fora a dificuldade financeira, o casal demorou a adaptar à língua portuguesa. No início do negócio de comida árabe, os cartões de visita apresentavam a "comida muito esquisita": "esquisito", em espanhol, quer dizer "gostoso". Desfeita a confusão, hoje uma lembrança pitoresca, passaram a construir uma clientela.

O casal participou de aulas de português, na Uerj, organizadas pela Cáritas-RJ. Nesta inciativa da ONG, voluntários  ensinam também francês, espanhol e árabe aos que precisam se adaptar rapidamente a um contexto totalmente estranho.

A Cáritas também ajuda os refugiados a cumprir exigências jurídicas inerentes a pedidos de refúgio. Mas as ações prioritárias convergem ao acolhimento e à integração social. Tendem a ser favorecidas com a nova legislação migratória, supostamente mais pródiga à superação de obstáculos como a língua estrangeira e a adaptação no mercado de trabalho. 

A novidade renova a esperança de dias melhores para o casal Mereana Salloum, de 23 anos, e Salim Douri, 35. Há dois anos, eles deixaram a cidade de Homs, na Síria, uma das mais afetadas pela guerra civil instalada no país desde 2011, em busca de paz no Brasil. Lá deixaram família, amigos, até documentos. Contam que amigos e parentes estranharam a escolha do refúgio: "Por que o Brasil, um país na América do Sul, com taxas de criminalidade tão altas, com língua e culturas tão diferentes, passando por uma econômica?", indagaram

A língua tem sido um desafio diário. Por sorte, Mereana e Salim conheceram outros sírios, já radicados no Brasil, que os ajudaram com o português. O mercado de trabalho também exigiu aprendizados e adaptações. Na Síria, Salim era representante de vendas e Mereana, manicure. No Brasil, trabalharam em três restaurantes árabes – "a única área na qual conseguem emprego", constata o refugiado. Eles dizem que os brasileiros são "bastante receptivos", mas pouco informados a respeito do Oriente Médio.

— Quando cheguei, os brasileiros me perguntavam por que eu não usava burca ou hijab. Todos achavam que eu era muçulmana só porque sou síria. Mas não, eu sou cristã ortodoxa e nunca usei burca, nem mesmo na Síria. —  esclarece Mereana.

Mesmo tendo se adaptado bem ao Brasil, o casal sente falta da família e dos amigos. Apesar disso, eles "não se enxergam voltando à Síria em menos de dez anos", por conta dos conflitos.

Categorias dos estrangeiros

Migrante é toda pessoa em trânsito que sai do país de origem para entrar em outro.

Emigrante é aquele que deixa o país de origem e, ao entrar em outro, torna-se imigrante.

Refugiado é uma categoria de migrante, definida pela Convenção de 1951. Deixa o país de origem sob alegação se “fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”. O refugiado não pode ser "devolvido ao país de origem".

Asilado é um termo cuja definição pode variar de acordo com a região, pois não há um consenso universal. Na prática, um asilado se aproxima de um refugiado, com a diferença de que não há garantia para o requerente de asilo antes que o pedido seja aprovado. O asilo pode ser territorial, quando o requerente está no território nacional, ou diplomático, quando o requerente pede asilo numa embaixada em outro país.

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