Sertão paraibano: seca perpetua um Brasil esquecido no tempo
30/04/2017 20:33
Paula Strecht

Na abertura da série sobre desafios à universalização da água, a repórter Paula Strecht revela a luta dos moradores de Conceição contra a estiagem. Nem o pó dos açudes sufoca a confiança de que a Transposição do São Francisco e esforços conjuntos poupe-lhes do flagelo eternizado em Vidas Secas. Engenheiro da PUC-Rio sugere soluções para captar o recurso.

CONCEIÇÃO, PB – A seca prolongada, que assola o Nordeste desde 2012, uma das mais severas enfrentadas pela região em pelo menos cinco décadas, exaure rotinas e esperanças. Açudes consumidos pelo pó desidratam a fé em dias melhores. Perpetuam um traço crônico da desigualdade brasileira. Nos últimos cinco anos, minguaram por lá apenas 516 milímetros de chuva, um quarto, aproximadamente, do registrado no Sudeste pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC). Os 20 mil habitantes da cidade paraibana de Conceição, a 500 quilômetros da capital João Pessoa, revelam-se emblema de um Brasil esquecido no tempo.

O município é abastecido por dois açudes. Um deles, quase seco, abriga meros 130 mil metros cúbicos de água, bem abaixo da capacidade máxima de 12 milhões. A chegada de água doce no eixo leste de Pernambuco e da Paraíba, por meio das obras de transposição do São Francisco, representa uma penumbra no fim do túnel para moradores do semiárido assombrados pela calamidade. Mesmo desidratados de fé, eles protagonizam uma luta abnegada, diária, por água – uma luta pela vida. Resistem ao flagelo eternizado por Luiz Gonzaga em Asa Branca (1947) e por Graciliano Ramos em Vidas Secas (1938), ainda longe do fim.

Animais no Sítio de Campos velhos. Foto: João Felipe Knoller

Os abdnegados de Conceição reforçam números tão perversos quanto renitentes. Dos 25 milhões de habitantes do Nordeste, pelo menos três milhões sofrem com o desabastecimento total de água. A escassez não afeta só atividades triviais como lavar roupas, cozinhar e manter a higiene pessoal. Atinge também a indústria e a produção agropecuária. Um levantamento recente da Confederação Nacional dos Municípios aponta que, entre 2013 e 2015, a estiagem causou um prejuízo de R$ 103,5 bilhões à região.

Atrofiadas pela seca, as atividades dos setores Primário e Terciário não dão conta de produzir a quantidade de renda necessária tanto ao sustento físico daquela população nordestina quanto ao desenvolvimento intelectual. Assim avalia a ex-líder do projeto social Crianças com Cristo Jaqueline Santos, para a qual a economia esturricada com o estio prolongado reflete-se também numa escassez de iniciativas culturais, educacionais e de lazer. "Isso desmotiva os sertanejos de Conceição, fecha seus olhares para visões de um futuro próspero", alerta. Alimenta também, acrescenta ela, um estado de espírito entre o conformismo, a resignação e o velho pendor à migração: 

– Muitos dos que sobrevivem com o auxílio do Bolsa Família, ganhando 100, 150 reais, estão satisfeitos. Não cultivam a ambição de se desenvolverem profissionalmente – observa – O pensamento do povo daqui é o seguinte: como não vai chover, e consequentemente não vai ter água, de nada vai adiantar elaborar projetos para o sertão. Por isso, quando as pessoas querem crescer, ganhar dinheiro, vão para outros estados, como São Paulo, Rio, Brasília. Sem água, não há como manter grandes empresas. Isso prejudica a oferta de emprego e, consequentemente, a perspectiva de uma vida melhor.

Em Conceição, como noutros cantos onde a seca se perpetua, os poucos que terminam o ensino médio dificilmente cogitam embarcar em cursos profissionalizantes. Pois o convívio diário com a seca sem precedentes, lamenta Jaqueline, sequestra-lhes o tempo e o fôlego para buscar qualificação profissional. Não raramente, rouba-lhes também a dignidade. "Vivem ou sobrevivem sem ideia de como será o dia de amanhã. Dormem sem saber o que vão fazer no dia seguinte, porque não têm emprego, nem com o que se ocupar. Assim, vão levando a vida com o pouco que têm", relata. Talvez a pior seca seja a de esperança:

Trabalhador do Sítio de Campos Velhos-PB. Foto: Paula Strecht

– Além de todos os problemas logísticos para obtenção de água, a seca rouba a expectativa do sertanejo de curtir a vida. A nossa luta vai muito além de prejuízos financeiros. É uma luta pessoal e diária contra a falta de esperança ­– resume a moradora so sertão paraibano.

O relato de Jaqueline expõe um passado persistente, ecoado na arte, na música, na literatura. Em meio à batalha cotidiana para reaviver os açudes invadidos pela poeira, às preces por nuvens carregadas, à busca por algum sustento, moradores de Conceição reeditam as páginas de Vidas Secas. Retrato preciso das misérias enfrentadas por retirantes da seca no sertão nordestino, o romance de Gracliano Ramos mantém-se dolorosa e vergonhosamente atual. Espelho de um passado histórico que não arreda o pé, uma das principais referências modernistas da literatura brasileira mostra que problemas como a negligência caminham por trás do estio crônico.

Para especialistas, a saída envolve, entre outras iniciativas, o reajuste de verbas voltadas a oxigenar a economia do Nordeste, que recuou quase 6% no ano passado, em relação a 2015. Na contabilidade do Ministério da Integração Nacional, a geração de emprego e renda tem sido impulsionada por empréstimos superiores a R$ 430 milhões do Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste. Ainda de acordo com o governo, mais R$ 30,6 milhões destinam-se a projetos financiados pelo Fundo de Desenvolvimento do Nordeste na Paraíba.

Os avanços, inclusive aqueles proporcionados pelas obras de Transposição do Rio São Francisco, mostram-se ainda insuficientes para reehidratar as vidas secas nas zonas rurais de Pernambuco e da Paraíba. No fim do ano passado, 196 dos 233 municípios paraibanos amargavam, oficialmente, "situação de emergência". Conceição, por exemplo, segue na lista. Com boa parte dos mananciais secos, as áreas rurais do estado depositam a esperança hídrica no abastecimento cada vez mais seletivo dos carros-pipa e em nuvens que eventualmente subvertam o estio teimoso.

Em 2015, o Ministério da Integração Nacional sugeriu que o Exército Brasileiro ampliasse o atendimento da Operação Pipa nos "sítios rurais". Com o corte de R$ 42,1 bilhões no Orçamento de 2017, para reequilibrar as contas públicas e cumprir a meta fiscal (déficit) de R$ 139 bilhões no ano, desenha-se a perspectiva de se enxugar a verba para a distribuição de água. Embora não haja ainda prognósticos oficiais sobre os impactos nos serviços de carros-pipa, autoridades e moradores do agreste pernambucano e paraibano preveem novos torniquetes num fornecimento já hesitante.

Em dezembro do ano passado, o Exército somava 7 mil caminhões-pipa contratados para abastecer a região Nordeste. O provável recuo decorrente dos cortes orçamentários sinaliza um risco de se agravar a rotina entre as deficiências no abastecimento hídrico e os serviços inflacionados pela queda de uma oferta já limitada. 

Zona rural de Conceição. Foto: Paula Strecht
 

Algumas carências são dirimidas por esforços conjuntos entre populações e administrações públicas locais. Outras, contudo, pioram com intensidade proporcional à desidratação dos açudes ou à falência de poços artesianos. O funcionário público André Filho, morador de Campos Velhos, zona rural de Conceição, reconhece que o governo estadual "fornece ajuda", mas ressalva: "não na qualidade necessária":

– Os sítios aqui dependem muito de poços artesianos. Eles têm a vantagem de demorarem mais para secar, já que a água flui diretamente do solo, sem a necessidade de bombeamento. Aqui na zona rural, construir um açude com a ajuda do governo demora bastante. Quando surge algum projeto para abastecer o nosso povoado, não é construído direito. Infelizmente, tem desvio de verba.

Açude do Roçado em Conceição. Foto: Carlos Vilmar da Silva

Apesar do dique orçamentário, o Ministério da Integração Nacional anunciou, para 2017, o repasse de R$ 22,3 milhões dirigidos a obras hídricas na Paraíba e ao abastecimento por meio de carros-pipa. Aos esforços e às esperanças por dias menos reféns da seca, somam-se os ganhos derivados da Transposição do São Francisco, embora não cheguem ainda a boa parte das áreas rurais.

Tecncologias devem convergir para melhores captção e armazenamento, ressalta especialista da PUC-Rio

Pelas projeções do governo, as obras iniciadas há quase dez anos, e cujo custo beira R$ 10 bilhões, vão beneficiar 12 milhões de moradores de 390 municípios do Nordeste. Dividida em dois eixos, Leste e Norte, a iniciativa desviará até 3% das águas do São Francisco para rios e açudes de regiões sacrificadas pela seca. Sob a estiagem prolongada, grande parte deles, como o de Conceição, fica consumida pelo pó. Inaugurado no mês passado, o Eixo Leste compreende 217 quilômetros e contempla 186 cidades do sertão e do agreste pernambucano e paraibano. Já o Norte, de 260 quilômetros, será concluído só no fim do ano e promete atender 222 cidades de Paraíba, Ceará, Pernambuco e do Rio Grande do Norte. Talvez só no próximo ano, seja possível precisar os efeitos efetivos de um projeto cercado por números e expectativas grandiosos, e pela desconfiança de ambientalistas.   

Aliadas ao remanejamento de verbas públicas e pelos benefícios derivados do desvio de águas do Velho Chico, as possíveis soluções deste problema crônico enfrentado do Nordeste devem convergir, segundo o professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da PUC-Rio José Araruna, para melhores captação e armazenamento do recurso. De acordo com o especialista, os solos subcristalinos daquela área dificultam a missão de armazenar a água, que entra por meio das rachaduras. "Sem contar que o balanço hídrico da região também não é dos melhores. Sendo assim, com as temperaturas muito elevadas, por mais que se consiga armazenar um pouco de água, a média histórica de perda é de um metro por ano, resultado do grande volume de evaporação", esclarece. O resultado finca raízes na paisagem e na rotina dos moradores de Conceição, e de outros trechos esquecidos na aridez do interior paraibano pernambucano.  

– Quando os açudes já não são muito profundos e ainda há essa perda d’água, num período de cinco anos de estiagem, é impossível manter os reservatórios cheios. – constata Araruna.

O ideal, sugere o professor, seria adotar a tecnologia que criasse uma espécie de cobertura nos reservatórios, para evitar ou dirimir a constante exalação. Além disso, Araruna ressalta a importância de sistemas de captação de água pelo telhado, com calhas até as cisternas, e de captação subterrânea, que consiste basicamente em escavar poços, geralmente com mais de 80 metros, como alternativa para conquistar o tão almejado recurso.

Há muito poços artesianos compõem o cotidiano de famílias do sertão e do agreste nordestino. Morador também de Conceição, André conta que "hoje a situação até melhorou", mas frequentemente enfrenta dramas para ter água em casa:

– Eu me lembro bem, foi na seca de 1998. Quando dava meia-noite, meu pai e minha mãe andavam até um poço artesiano. Ficava a uns cino quilômetros de casa. Cada um deles carregava um galão na cabeça. 

As filas de balde chegaram ao Sudeste na crise hídrica de 2014. São Paulo, Minas Gerais e Rio foram os mais afetados pela queda no abastecimento. Acometido pela falta de água nas cabeceiras de rios do Sistema Cantareira – conjunto de represas que abastecem 9 milhões de habitantes da maior região metropolitana do Brasil –, São Paulo experimentou a luta contra a seca comum no sertão nordestino. O Cantareira depende das chuvas de verão que, em anos normais, soma cerca de 600 milímetros. Em outubro de 2013, no entanto, as chuvas começaram a escassear, registrando níveis abaixo da média dos últimos 30 anos, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Nos três primeiros meses do ano seguinte, 2014, os esperados 600 milímetros caíram para menos de 300.

Com a falta de chuvas no Sudeste, a principal nascente do São Francisco quase secou. Próximo à foz, no Nordeste, a dificuldade para se bombear a água usada nas plantações comprometia o cultivo dos projetos irrigados às margens do Velho Chico. A conclusão das estações de bombeamento do Eixo Leste, vistoriadas pela Sudene, carega a expectativa de resolver parte do problema, já a partir do próximo mês, em municípios paraibanos.  

Mais água – ou simplemente água – significa irrigar a esperança também por emprego. Nela se fia Armando Moraes. Em dezembro do ano passado, ele deixou a ocupação de ajudante de obra na transposição do São Francisco para reforçar a fila de 13 millhões de desempregados no país. Enquanto dedilha uma prosa com os vizinhos nas calçadas de Conceição, sonha com uma recuperação econômica hidratada pelo aumento da oferta de água.

Fim de tarde no Sertão Paraibano. Foto: Paula Strecht

"Cada chuva que cai é uma grande alegria"

Muitos dos conterrânos de Armando se apegam à religião para manter a confiança de um dia a seca arredar dali. Em meio à estrutura hídrica precária, oram pela chuva. Yago Marinho, morador de Patos, também no interior paraibano, prefere "agraceder a Deus" pela pouca água que chega, vagarosa, do que entregar-se à lamúria ou à desesperança:

– Tem locais aqui na minha cidade em que os moradores passam seis dias sem água. É um dia com água, dois sem. Quem tem reservatório em casa ou pode pagar um caminhão-pipa sai no lucro. Já os que moram em periferias, não. É muito triste, por exemplo, ver vizinhos sofrendo com a morte do gados por falta d’água. Mesmo assim, sempre agradeço, e posso falar em nome de todo o povo daqui: somos muito gratos a Deus porque, apesar dessa seca, Ele tem mandado a água do céu, mesmo que de pouco a pouco. Posso afirmar que cada chuva que cai é uma grande alegria para nós.

Secas deixam marcas profundas desde o século XIX 

Entre as secas severas que historicamente assolam o Nordeste, talvez nenhuma tenha provocado uma migração tão intensa, nem tanto sofrimento, quanto a seca de 1877 no Ceará. Os três anos de estiagam foram marcados pela fome. Em busca de sobrevivência, famílias famintas saqueavam depósitos de mantimentos do governo.

Outra marca correspondeu ao fluxo carregado de retirantes. Boa parte deles migrou para Fortaleza, que subitamente viu a população diminuir de 20 mil para pouco mais de 10 mil habitantes. A salvação era sair do Ceará. Na devastadora fatura da seca, estima-se que morreram cerca de 500 mil pessoas de fome e complicações de saúde dela derivadas. O ano de 1877 cravou a seca na consciência nacional.

A de 1915 também foi das mais terríveis na região. Para impedir que os retirantes se dirigissem à capital, o governo cearense criou espécies de campos de concentração nos arredores das grandes cidades. Lá ficavam recolhidos milhares de flagelados. A varíola fez centenas de mortos no Campo do Alagadiço, próximo a Fortaleza, onde se espremiam 8 mil pessoas. A falta de condições sanitárias e de comida agravou o trágico quadro. O sofrimento das famílias nesta estiagem é retratado por Rachel de Queiroz no romance O quinze.

A igualmente trágica seca de 1958 gerou a Sudene. Resultado da percepção de que, mesmo com o processo de industrialização, crescia a diferença entre o Nordeste e o Centro-Sul do Brasil. Tornava-se necessário, assim, haver uma intervenção direta para estimular o desenvolvimento da região. Em 1958, a história se repetia. Desta vez, nordestinos fugiram para o Sul e o Sudeste, numa das maiores migrações da história do país. 

Em 1998, apenas 270 milímetros de chuva foram registrados. Com exceção do Maranhão, todos os outros estados do Nordeste foram atingidos pela seca. Cerca de 5 milhões de habitantes acabaram afetados. A seca motrou-se tão grave que o Recife passou a receber água encanada apenas uma vez por semana. O rastro de miséria reunia de lavouras perdidas e animais mortos a saques a armazéns por parte de uma população faminta e desesperada.

Água e a falta dela irrigam a música 

Ao som de compositores brasileiros, a árdua trajetória de vida dos sertanejos fica marcada na memória nacional.

Súplica Cearense - O Rappa 

Vozes da Seca - Luiz Gonzaga

Planeta Água - Guilherme Arantes

 

 

 

 

 

 

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