Um ataque com armas químicas contra regiões controladas por rebeldes na Síria, atribuído ao governo Bashar al-Assad, deixou 86 mortos, entre eles 30 crianças, no último dia 4 de abril. Em represália, o presidente norte-americano Donald Trump autorizou, na noite do dia 6, um bombardeio à base militar síria de al-Shayrate. Para especialistas, a primeira intervenção direta de Washington na Guerra da Síria, que completou seis anos, indica uma mudança de estratégia na política externa adotada pela Casa Branca. A postura norte-americana no episódio também deixa no ar a possibilidade de conflito com a Rússia, principal aliada do regime sírio, e serve de advertência para os demais países que dispõem de arsenais de armas químicas ou nucleares.
A decisão de abrir fogo e intervir diretamente no conflito Sírio representa uma guinada na política externa norte-americana. Diferentemente do antecessor, Barack Obama, que evitou qualquer choque com o regime de Assad – estratégia vista como diplomática mas também como omissão –, Trump comandou o lançamento de 59 mísseis Tomahawk, desde dois destróieres da Marinha norte-americana baseados no Mar Mediterrâneo. E acusou o regime sírio pelo ataque químico à cidade de Khan Sheikhun.
Apesar de considerarem prematuras quaisquer análises mais aprofundadas, especialistas concordam que a imprevisível e pronta resposta de Donald Trump à Síria indica uma mudança de estratégia na política externa adotada pela Casa Branca na região e na própria postura do republicano, que busca recuperar seu prestígio no âmbito interno e reafirmar sua liderança internacional.
Ex-cônsul-geral do Brasil em Paris e ex-Embaixadora do Brasil junto à União Europeia, a diplomata aposentada Maria Celina Azevedo Rodrigues acredita que a decisão de Trump de abrir fogo sobre a Síria reafirma o seu discurso de campanha, em que se projetou como um defensor dos valores “puros” norte-americanos e as promessas de retomar o protagonismo de seu país no cenário internacional. Celina também ressalta a intenção do republicano de recuperar sua credibilidade, após ter ficado desprestigiado internamente:
– Donald Trump se projetou como defensor de certos valores norte-americanos puros, seus discursos têm sempre o mote da segurança americana, e a todo momento se mostrou disposto a retomar a posição de vanguardismo dos Estados Unidos no mundo. O bombardeio à Síria indica que ele não irá tolerar o uso de armas químicas, que colocam em risco a segurança dos Estados Unidos. Esse ato acontece após Trump ter ficado extremamente desprestigiado internamente em relação a temas como imigração e saúde, quando teve contestada sua capacidade de comandar o país. Com esse ato, ele busca recuperar sua credibilidade.
A ofensiva americana à base de al-Shayrate pode afetar, ainda mais, as já complexas relações entre Estados Unidos e Rússia, sobre a guerra civil na Síria e outros temas. Nos dias que sucederam ao bombardeio, a tensão entre Washington e Moscou se elevou – o que remeteu o mundo aos tempos da Guerra Fria.
O Kremlin classificou a ação americana de “agressão” e “violação da lei internacional”. Os americanos, entretanto, receberam apoio de nações europeias como Alemanha, Reino Unido e França. Preliminarmente, analistas internacionais apontaram o lançamento dos mísseis Tomahawk como um possível ato pontual por parte dos EUA, que serviu de advertência à Síria e aos demais países que dispõem de armas químicas e nucleares, principalmente a Coreia do Norte.
Para o professor Paulo Wrobel, do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI), a reação negativa da Rússia era previsível, em razão do Princípio da Não-Intervenção (que impede a intervenção de um país em questões internas de outro), e realmente dificulta as relações entre EUA e Rússia, mas não de forma incontornável. Mas destaca que este não é o aspecto mais importante a ser considerado neste caso, mas sim o simbolismo do ato praticado pelos americanos, que serve como um recado às demais nações que tenham intenções de fazer uso do gás sarín ou armas semelhantes.
– O aspecto mais importante é que Donald Trump reagiu, em nome do Direito Internacional, a um ataque com armas químicas realizado pelo governo sírio. Síria, Rússia e Coreia do Norte puderam ver que a reação do presidente norte-americano foi de não passividade. O que os EUA fizeram quinta-feira à noite foi um ataque aéreo cirúrgico a uma base militar, de onde, comprovadamente, ao contrário do que alega a Síria, partiu um ataque químico realizado pela Força Aérea síria. O bombardeio sinaliza, certamente, uma mudança na postura americana, não apenas em relação à Síria e à Rússia, mas também em relação a Coreia do Norte, Irã, Turquia, Arábia Saudita e a todos os envolvidos diretamente no conflito na Síria, além da China, cujo presidente assistiu a tudo isso “de camarote”, enquanto participava de um importante encontro bilateral na Flórida. A bandeira do ex-presidente Obama era a de não se envolver militarmente, de maneira direta. Foi a primeira vez que os Estados Unidos se envolveram diretamente com uso da força militar em seis anos de guerra na Síria. Se isso significa o início de uma intervenção, vai depender da reação da Síria – afirma.
A professora de Relações Internacionais da UFRJ Fernanda Barros dos Santos avalia que a reação norte-americana na Síria vai além do conflito interno e envolve temas como o controle do Mar Mediterrâneo, a hegemonia no Conselho de Segurança da ONU e as disputas entre as grandes potências mundiais:
– Para entendermos o que tem se dado na Síria, é necessário perceber a importância geopolítica e geoestratégica da área no Oriente Médio. Ou seja, para além e acima do conflito interno entre o Estado Islâmico, mercenários em Aleppo e o Governo de Bashar al-Assad, as potências ocidentais (Estados Unidos, França e Inglaterra) almejam o controle do Mar Mediterrâneo, bem como o isolamento do Irã e a hegemonia no Conselho de Segurança da ONU.
Para a professora Fernanda, o acontecimento de 6 de abril indica que o governo de Donald Trump põe em prática o hard power (poder duro ou poder coercitivo) – conceito cunhado pelo cientista político americano Joseph Nye nos anos 1980 – com o uso da força militar por intermédio dos bombardeios dos mísseis Tomahawk, com vistas a reafirmar sua hegemonia mundial e conter o uso de armas químicas de destruição em massa.
– Ademais, conflui para a possibilidade de um campo hostil, ou mesmo o início de uma possível Guerra Fria entre as potências mundiais. Doutro modo, o conflito traz à tona a competição entre Estados Unidos, França e Inglaterra contra a Rússia, China e Irã pelo domínio de regiões fundamentais para o poderio político, militar e econômico do Ocidente. Em última análise, a ofensiva dos Estados Unidos assinala o cessar do diálogo diplomático mediado pelo Conselho de Segurança da ONU e instaura a competição bélica – completa.
Relembrando o conflito na Síria
A guerra civil na Síria teve início em 2011, no contexto da Primavera Árabe, nome dado a uma série de protestos que eclodiram naquele ano contra governos ditatoriais árabes no Oriente Médio e no Norte da África (em alusão à Primavera dos Povos, onda de revoluções liberais na Europa, no ano de 1848), e tinham como raiz a crise econômica e a falta de democracia nestas nações.
Ao contrário do que aconteceu em países como Tunísia, Líbia e Egito, na Síria o ditador Bashar al-Assad não caiu, e reagiu de forma imediata e violenta aos protestos. Daí nasceu o embate entre as forças leais ao presidente e os rebeldes que eram contra a permanência dele no poder.
Grupos anti-Assad se reuniram para combater as forças oficiais e retomar o controle das cidades e vilarejos. Os conflitos chegaram até Damasco e Aleppo, capital e segunda maior cidade do país, em 2012.
Com o país em guerra interna, o grupo terrorista Estado Islâmico, nascido no vizinho Iraque, aproveitou para ocupar territórios sírios.
Potências regionais e internacionais passaram a intervir no conflito, tanto a favor de Bashar al-Assad (Rússia, Irã e China), como contra o estadista (Estados Unidos, França Reino Unido, Turquia e Arábia Saudita). As interferências externas têm contribuído para a longa duração dos enfrentamentos, e transformado a Síria em um campo de guerra. O saldo dos seis anos de conflito são mais de 400 mil mortos e feridos, além de uma grave crise humanitária, com cerca de 6 milhões de deslocados e refugiados por todo o globo.
– Em termos de direitos humanos, a vulnerabilidade de civis em meio à guerra tem apresentado o fracasso do Conselho de Segurança da ONU em sanar o conflito a partir de um cessar-fogo. O conflito também ressaltou a obsolescência dos protocolos, tratados e convenções humanitárias, bem como pôs em xeque a soberania dos povos na contemporaneidade – avalia a professora Fernanda de Barros Santos.